Saúde

Pelos, cicatrizes e imperfeições: iniciativas na internet confrontam padrões de beleza

De uma dupla de fotógrafos, 'Pelos Pelos' questiona a ditadura da depilação. No 'A Batalha dos Corpos', mulheres são convidadas a mostrar a parte do corpo que não gostam. No meio desse embate de visões de mundo, a dúvida: a sociedade tem avançado para uma percepção mais diversa da beleza e do bem-estar?

Valéria Mendes

Revista feminina muda título de matéria após indignação de leitoras
Revista feminina muda título de matéria após indignação de leitoras
Na semana passada, uma revista de circulação nacional mudou o título de uma reportagem em que elogiava a magreza da modelo Izabel Goulart com a expressão corpo perfeito. A mobilização de leitoras nas redes sociais que questionavam a idealização de um patamar inatingível pelas mulheres “reais” pautou a decisão da publicação feminina que se desculpou publicamente: “(...) acompanhamos a reação das leitoras nos comentários e nas redes sociais e, de fato, reconhecemos que muitas delas (vocês) tinham razão. O texto não estava de acordo com a linha editorial de Marie Claire, que é a favor da diversidade e de um padrão de beleza saudável”. Sim, por que não se pode esquecer que, para além da ditadura do padrão de beleza, essa estética de passarela está, de alguma maneira, associada a distúrbios alimentares como anorexia e bulimia e é uma questão de saúde.


Veja galeria de imagens de projetos que questionam padrão de beleza

Foi também na última semana que aconteceu o casamento de Perséfone, interpretada pela atriz Fabiana Karla, na novela 'Amor à Vida', da Rede Globo. Depois de passar por sucessivas humilhações por ser gorda, a personagem, enfim, subiu ao altar. O desfecho desagradou feministas. Para a professora da PUC Minas, Samantha Braga, mais do que uma questão estética, o problema é a mídia, mais uma vez, apontar como solução para toda a mulher casar e ter filhos. Mas a insatisfação não para por aí. Na internet, foi criado um abaixo-assinado em agosto (clique) direcionado ao autor da trama, Walcyr Carrasco, que pedia a mudança de comportamento da personagem. Blogueiras como a mineira Kalil Fonseca, do Beleza sem Tamanho, explicitaram indignação em relação à forma como Perséfone era apresentada em horário nobre. “Estamos cansadas da forma ridícula que vem sendo mostrada a mulher gorda através da personagem”, escreveu na apresentação da “petição” online. A reviravolta ainda não veio.

A atriz Fabiana Carla interpreta Perséfone em novela. Depois de muitas humilhações por ser gorda, a personagem sobe ao altar e as críticas ao rumo da história continuam
Projetos na internet questionam padrão de beleza
A internet tem se consolidado como palco de repercussão para o conteúdo publicado nas mídias tradicionais. Ainda que o acesso não seja amplo no Brasil, o ambiente propicia o diálogo e o debate. Nessa onda, não param de surgir projetos de fotógrafos, coletivos, artistas, estudantes e blogueiros questionando, por exemplo, o padrão de beleza e, em casos raros, pautando grandes veículos. A estudante de Ciências Sociais da USP, Marina Macedo Rego, de 22 anos, é autora do projeto A Batalha dos Corpos. Para ela, a internet funciona tanto fortalecendo esse tipo de padrão quanto o enfraquecendo. “Sem dúvidas há maior conteúdo fortalecedor. As incontáveis publicidades sexistas e “dicas para emagrecer” são prova disso. Porém, muitos trabalhos feministas que lutam contra isso também possuem hoje como maior ambiente de ação a internet. A meu ver, a internet possui em maior parte conteúdo mais opressivo, mas ao mesmo tempo consiste em uma ótima ferramenta para subverter isso”, acredita.

Clique aqui, veja imagens e saiba mais sobre o 'A Batalha dos Corpos'.

Em seu projeto, Marina convida mulheres a mostrarem a parte do corpo que as desagrada. Ela conta que a ideia surgiu por razões políticas e emocionais muito fortes. “Como toda mulher me sinto pressionada a seguir um padrão de beleza que nunca alcançarei. Perceber que esse é um problema sistemático e social me fez ver que para além de trabalhar minhas questões internas, devo tentar mudar isso em um âmbito amplo que englobe toda a sociedade, já que enquanto houver esse tipo de padrão - ou seja, essa força coercitiva que é maior que expressões individuais - não há como qualquer mulher sentir-se adequada. Esse não é um problema meu. Esse não é um problema de algumas mulheres ou de algum grupo. É uma pressão que todas nós sofremos desde o dia que nascemos”, explica.

“Queremos deixar claro ao mundo que o photoshop é uma forma de fazer censura! Uma recente pesquisa britânica revela que metade das garotas de 6 anos já estão infelizes por causa da aparência de seus corpos. Isso acontece por que o que se vê no espelho não é aquilo que aparece nas revistas, o importante detalhe, porém, é que o que se vê nas revistas é mentira” – Marina Macedo, A Batalha dos Corpos.


O projeto 'A Batalha dos Corpos' quer lembrar que a beleza é um conceito socialmente construído. O questionamento é: se o que é belo pode ser mutável, por que escolher como beleza da mulher algo sofrível e custoso?
Depilação, não!
Outra iniciativa que nasceu na internet é o projeto Pelos Pelos, do coletivo Além. A dupla de fotógrafos Núbia Abe e Mateus Lima quer expor duas problemáticas que envolvem o tema: a opressão ao corpo fora de um padrão estético e a opressão à mulher. Mas essa pressão atinge também os homens? Para os idealizadores, sim. “Aqueles com o corpo muito peludo, cabelo comprido ou barba grande também sofrem com os olhares discriminatórios, chegando ao ponto de uma barba impedir o seu portador de ocupar certos empregos”, afirmam.

Qualquer pessoa pode ser fotografada para o projeto. Clique na galeria de imagens e saiba mais.

A dupla ressalta que apesar de a questão da aceitação do corpo envolver mulheres e homens, a opressão é sofrida em grau muito maior por elas. “A ideia de ter fotos de homens em meio às fotos das mulheres é também com a intenção de mostrar que se homens podem, mulheres também podem. Esse é o paralelo que queremos fazer, o paralelo do direito, e não o paralelo da opressão”, resumem.

“Acreditamos que as pessoas têm dificuldade em desejar o que é natural de cada indivíduo e em respeitar a diversidade. Assim, vivem em uma busca eterna de algo que é inatingível” - Núbia Abe e Mateus Lima, Pelos Pelos.


A motivação para não se depilar varia: "Algumas possuem fortes motivações políticas e mantêm os pelos como forma de enfrentamento social, algumas como forma de aceitação do próprio corpo, e outras por gosto", afirmam os fotógrafos do projeto 'Pelos Pelos'
De onde veio, para onde vai
A publicidade muitas vezes é apontada como o principal agente dessa estética padronizada. Para a professora da PUC Minas, Samantha Braga, não é o único. “Fico pensando até se é o principal. Outras mídias, como novela e filme, influenciam mais porque, além de serem mais constantes, os padrões de comportamento vêm em doses homeopáticas. A publicidade está descaradamente vendendo um produto”, afirma. A especialista considera a novela um agente mais pernicioso que a publicidade porque, segundo ela, na segunda situação o consumidor está diante de uma mensagem que quer vender e já lida com o conteúdo conhecendo a natureza do discurso. “A publicidade não é vanguardista, ela dissemina o que está colocado socialmente”, resume.

Samantha gosta de lembrar que, apesar de a mídia ser disseminadora de um padrão social e cultural, a aceitação é da sociedade. Para ela, as revistas femininas, por exemplo, ganham em cima do que a pessoa não consegue ter: um corpo ‘photoshopado’. “A pessoa lê aquelas dicas de beleza e funciona como se a informação fosse uma pílula para deixá-la mais tranquila: ‘leio, estou informada e já resolve pelo menos uma parte’”, observa.

O consumo passa justamente por esse ponto. “As pessoas compram para ficar mais perto de um universo do qual não fazem parte”, diz. Samantha afirma que a publicidade trabalha com o vazio existencial. “Se não existisse desejo, não existiria espaço para o consumo”, pondera.

Mudanças
Samantha Braga acredita que é a mentalidade social, o questionamento, que vai modificar a publicidade e afirma: “grandes marcas estão atentas ao que acontece nas redes sociais. A internet é um grande pólo de formação de opinião, mas enquanto a gente compra, a gente aceita”.

Para ela, o padrão de beleza já foi alterado nos últimos 20 anos. “A mulher gostosona, a boazuda, também é vista como mulher bonita hoje em dia”, diz. E cita outro exemplo: “qualquer roupa da moda hoje em dia tem numeração até 48 em lojas de departamento. O padrão mudou. Há pouco tempo, essa numeração só se fosse numa sessão plus size. Não acho que é uma causa perdida”, reforça.

A professora da PUC Minas lembra ainda que “as discussões estéticas estão aí desde que o mundo é mundo, desde que minorias tentam se mostrar”.

Outras iniciativas
O projeto da fotógrafa americana Rachel Barlow ‘Beauty Revealed Project’ (Projeto Beleza Revelada, em tradução livre) mostra os corpos de mulheres logo após o parto. A ideia é exibir as marcas que uma gravidez pode deixar no corpo feminino e valorizar a história de cada uma das mulheres. Clique e saiba mais.

Projeto Beleza Revelada registra os corpos de mulheres logo após o parto


COLABOROU GABRIELLA PACHECO.