Saúde

Captar órgãos de pacientes que não estão mortos divide opiniões

Segundo especialistas, a questão torna-se mais urgente em países onde as causas de morte dificultam o procedimento

Bruna Sensêve

Um caso recente relatado na revista científica New England Journal of Medicine, neste mês, reacende a discussão em torno da determinação da morte de um paciente para a doação de órgãos, conhecida na medicina como “a regra do doador morto” (DDR, em inglês). Uma jovem americana havia sofrido um acidente que a deixou com danos cerebrais devastadores e irreversíveis. Os pais dela optaram pela doação de órgãos e todos os planos para o procedimento foram feitos. O suporte de vida foi retirado e, como determinam as regras vigentes, assim que a morte encefálica da menina fosse confirmada, os órgãos seriam removidos. No entanto, a morte da paciente foi muito mais lenta do que esperava a equipe médica, tornando a colheita de órgãos inviável. O fracasso na doação foi sentido pelos pais da paciente como uma segunda perda. Para eles, a jovem poderia ter sido anestesiada e os órgãos retirados antes da interrupção do suporte de vida.


“Não havia chance para a nossa filha sobreviver… Eu posso seguir o argumento do especialista em ética, mas essa situação me parece totalmente ridícula”, teria desabafado o pai da garota, como relata o artigo. A regra é simples. Os órgãos vitais somente devem ser retirados de pessoas que estão mortas. Porém, o debate revela que não é tão óbvio o motivo pelo qual certos pacientes vivos — como aqueles que estão perto da morte, mas em suporte de vida — não devem ser autorizados a doar os órgãos se isso beneficiaria outras pessoas e seria coerente com os interesses deles.

Os órgãos vitais somente devem ser retirados de pessoas que estão mortas. Porém, o debate revela que não é tão óbvio o motivo pelo qual certos pacientes vivos - como aqueles que estão perto da morte, mas em suporte de vida - não devem ser autorizados a doar os órgãos se isso beneficiaria outras pessoas e seria coerente com os interesses deles
Em outro caso, dessa vez descrito por Joseph Darby, do Centro Médico da Universidade de Pittsburgh, também nos Estados Unidos, a família de um homem com uma lesão cerebral definitiva solicitou a retirada do suporte de vida. Durante toda a vida, o paciente foi reconhecidamente um forte defensor da doação de órgãos, mas não se configurava como um candidato para as abordagens tradicionais de retirada, de acordo com a lei americana. Dessa forma, a família dele pediu permissão para que fossem doados os órgãos não vitais (um rim e um lóbulo do fígado) antes da morte do homem. A ideia era retirar esses órgãos enquanto o paciente estava sob anestesia e, em seguida, levá-lo de volta à unidade de terapia intensiva, onde a sustentação de vida seria retirada. O plano foi aprovado pela equipe clínica, pela comissão de ética e pela administração do hospital, mas não foi possível honrar os desejos do paciente porque os vários cirurgiões contactados se recusaram a recuperar os órgãos. Eles declararam que as regras do United Net-work for Organ Sharing ( Rede Unida para a Doação de Órgãos, em tradução livre ) determinam que o paciente deve dar o consentimento direto para a doação, impossibilitado, nesse caso, pela lesão neurológica.

“Por isso, ele morreu sem a oportunidade de doar. Se não houvesse necessidade de cumprir a DDR, a família teria sido autorizada a doar todos os órgãos vitais do paciente”, comenta Robert Truog, professor de ética médica, anestesia e pediatria da Escola de Medicina de Harvard. “A lealdade à DDR limita, assim, a colheita de órgãos para transplante, negando a alguns pacientes a opção de doar em situações em que a morte é iminente e a doação é desejada”, complementa. Truog sugere que uma fundamentação resistente para a ética do transplante de órgãos deve ser encontrada em dois princípios éticos fundamentais: autonomia e não maleficência. “O respeito à autonomia requer que sejam dadas escolhas às pessoas nas circunstâncias da morte, incluindo a doação de órgãos. A não maleficência exige proteger os pacientes do mal.”

Dessa forma, os pacientes devem ser autorizados a doar órgãos vitais, exceto nos casos em que isso iria prejudicá-los. Quando a morte é iminente, eles não seriam prejudicados devido a uma decisão de parar o suporte de vida. “Quando a morte está muito próxima, alguns pacientes podem querer morrer no processo de ajudar os outros a viver, mesmo que isso signifique alterar o tempo ou a forma da morte. Acreditamos que os políticos responsáveis devem tomar essas solicitações dos cidadãos a sério e começar a se envolver em uma discussão.”

Ainda assim, muitos observadores insistem que a regra deve ser mantida para garantir a confiança do público na chamada “empresa-transplante de órgãos”. Essa é a opinião de James Bernat, professor de neurologia e medicina da Escola de Medicina Geisel, da Universidade de Dartmouth. Ele acredita que, embora existam pacientes informados para os quais uma nova prática funcione, “violar a DDR é equivocado e levará medo aos pacientes que podem perder a confiança nos médicos e no sistema de doação de órgãos, levando a um declínio vertiginoso na doação de órgãos”.

Uma preocupação expressa em pesquisas de público e de profissionais de saúde é que o doador não esteja realmente morto no momento em que a morte é declarada. Bernat lembra que, em circunstâncias de não doação, o momento preciso de separar vivos dos mortos é geralmente irrelevante. Porém, nos casos de doação, o tempo é fundamental para minimizar a exposição isquêmica quente dos órgãos a serem transplantados — isto é, o período desde a parada da circulação para o órgão e o início da armazenagem fria para a doação. “Assim, um juízo fundamentado deve ser feito sobre o momento da morte, que é conceitualmente coerente, fisiologicamente plausível e socialmente aceitável.”

No Brasil
A situação em discussão nos países desenvolvidos não reflete a realidade brasileira. Segundo o professor de cirurgia geral da Universidade do Estado do Pará Ney Conceição Alvarenga Figueira, a queda na mortalidade desses países limita a doação de órgãos. No Brasil, porém, os índices de homicídio e acidentes de trânsito fatais ainda são muito altos. “Temos uma média de um doador para cada 10 mortes. O problema é que os órgãos não chegam a esses doadores, estamos perdendo órgãos”, comenta o também diretor da Adote Pará (Aliança Brasileira pela Doação de Órgãos e Tecidos).

Figueira explica que o principal desafio do país está no caminho entre o doador e o paciente que espera o órgão. “As deficiências do sistema de saúde brasileiro, com certeza, refletem também no transplante do órgãos, apesar de já termos iniciativas muito bem-sucedidas.” De acordo com os dados do Registro Brasileiro de transplante da Associação Brasileira de Transplante do Órgãos (ABTO), durante o 1º semestre de 2013, foram notificados 4.222 potenciais doadores, sendo 1.273 doadores efetivos e 2.949 de não doadores.

O passo principal para se tornar um doador é manifestar claramente o desejo para os familiares. Não é necessário deixar nada por escrito, somente após a morte os responsáveis devem se comprometer a deixar uma autorização escrita. Segundo o Ministério da Saúde, a doação de órgãos é um ato pelo qual o cidadão manifesta a vontade de que, a partir do momento da constatação da morte encefálica, uma ou mais partes do corpo (órgãos ou tecidos), em condições de serem aproveitadas para transplante, possam ajudar outras pessoas.

Coração comprometido
De acordo com o Ministério da Saúde, é a morte do cérebro, incluindo o tronco cerebral, que desempenha funções vitais, como o controle da respiração. Quando isso acontece, a parada cardíaca é inevitável. Embora ainda haja batimentos cardíacos, a pessoa com morte cerebral não pode respirar sem os aparelhos e o coração não baterá por mais de algumas poucas horas. Por isso, a morte encefálica já caracteriza a morte do indivíduo. É fundamental que os órgãos sejam aproveitados para a doação enquanto ainda há circulação sanguínea os irrigando. Ou seja, antes que o coração deixe de bater e os aparelhos não possam mais manter a respiração do paciente. Mas, se o coração parar, só poderão ser doadas as córneas.

Legislação brasileira
A lei que dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante é a Lei 9.434, de 4 de fevereiro de 1997, posteriormente alterada pela Lei 10.211, de 23 de março de 2001, que substituiu a doação presumida pelo “consentimento informado do desejo de doar”. Segundo a nova lei, as manifestações de vontade à doação de tecidos, órgãos e partes do corpo humano, após a morte, que constavam na Carteira de Identidade Civil e na Carteira Nacional de Habilitação, perderam a validade a partir do dia 22 de dezembro de 2000. Isso significa que, hoje, a retirada de órgãos/tecidos de pessoas falecidas para a realização de transplante depende da autorização da família. Sendo assim, é muito importante que uma pessoa que deseja, após a sua morte, ser uma doadora de órgãos e tecidos comunique à família sobre o seu desejo para que autorize a doação no momento oportuno.