Essa redoma criada pelos pais, para a especialista, pode ter o efeito reverso: em vez de proteger, pode fazer com que as crianças fiquem ainda mais expostas. Não ter noção da violência das grandes cidades prejudica o instinto de autopreservação dos pequenos, por exemplo. “Algumas crianças não têm essa vivência de andar na rua, só andam de carro. Não sabem que precisam olhar para os lados para atravessar a rua”, exemplifica Ana Kernkraut. No futuro, quando a idade de se locomover pela cidade sem a tutela de um adulto chegar, a especialista alerta que a segurança pessoal desse indivíduo ficará seriamente comprometida. “Acredito que os jovens de hoje são mais ingênuos, porque não os preparamos para a realidade”, opina a psicóloga. “Não há como blindá-los totalmente.”
A psicóloga clínica Tânia Lobountchenko explica que, em sua visão, essa necessidade de proteger os filhos das más influências exteriores se dá no intuito de resgatar uma família que, durante décadas, foi deixada em segundo plano. A necessidade que a geração anterior tinha de se manter sempre atualizada e preparada para o mercado de trabalho teve como consequência uma educação mais liberal, já que os pais não tinham como administrar as duas coisas. “Pais totalmente perdidos, desorientados, despreparados buscam ajuda por não saberem dar aquilo que nunca tiveram”, completa.
Ter que trabalhar cada vez mais fez com que o desenvolvimento do ciclo vital da família ficasse prejudicado, segundo Lobountchenko. Sem perceber, os pais dos que hoje têm filhos passaram a gratificá-los cada vez mais, na esperança de suprir o vazio, a falta de intimidade e o distanciamento causados em prol da vida profissional. Como resultado, essa geração que cresceu em um ambiente em que tudo foi permitido sentiram a imposição de limites como um dos maiores desafios da paternidade.
Compromissos
Como fazer para que a criança não entre em contato com influências negativas? Como detectá-las? A psicóloga clínica Tânia Lobountchenko explica que identificar o que não é bom para os filhos passa por um conceito simples, mas pouco seguido: bom senso. Não permitir que os filhos assistam a filmes, programas de TV, escutem músicas ou leiam livros que façam com que eles se tornem precocemente sexualizados, agressivos ou sem limites é um começo. Segundo ela, os pais devem avaliar a “maturidade psíquica” dos pequenos antes de expô-los a certos conteúdos. O filtro, porém, é limitado. “A criança precisa ser, pensar, sentir, agir, explorar e se desenvolver como criança.”
A terapeuta corporal Thaiani Tolfo Carneiro, de 25 anos, conta que uma de suas maiores preocupações com relação à criação da filha, Liz Lopez Carneiro, de 1 ano, são as influências a que ela estará exposta quando crescer. Por isso, ela tenta criar um ambiente “protegido”. Por exemplo, durante a gestação, Liz já escutava “música boa”. “Geralmente, era jazz, mas também Beethoven para crianças.” O parto da filha foi humanizado, feito na piscina de casa.
Liz está ensaiando seus primeiros passos, anda segurando a mão de um adulto e quase não encontra obstáculos, já que a mãe dispensou o uso do “chiqueirinho”. Também não há tapetes em que possa tropeçar. “Eu e o pai dela deixamos ela livre para andar por onde quiser”, justifica Thaiani. Mesmo com a pouca idade, a garotinha já faz aulas de motricidade, musicalização, artes e natação, para ajudar em seu desenvolvimento.
A menina já tem contato com a televisão, mas nunca viu um desenho animado. “Não queremos que ela assista a coisas comerciais. Ela não vai ser uma criança alienada, criada como um robô”, justifica a mãe. A alimentação é regrada e preparada por Thaiani diariamente, só com produtos naturais. A ideia é acostumar o paladar da filha a alimentos saudáveis para que, no futuro, eles se sobressaiam às opções gordurosas e açucaradas. “Quero que ela tenha autonomia, que não seja influenciada por publicidade”, diz.
A maneira “politicamente correta” que Thaiani educa a filha recebe críticas e elogios. “A família interfere muito, quer passar hábitos antigos”, conta. De indicações de desenhos animados que “acalmam” os bebês a receitas à base de farinhas para complementar o leite da mãe, ela diz que já ouviu de tudo. Mas não se abala. “A criança pode ter outras opções.” Thaiani não trabalha fora, mas acorda às 6h para preparar as refeições da filha. Enquanto a menina vai à escolinha, ela continua sua pesquisa. “Quero aprender a massagem tranquilizadora Shantala”, conta.
Atividades variadas realmente ajudam no desenvolvimento infantil. Dependendo da idade e do tipo de atividade, Ely Harasawa, psicóloga e gerente de Programas da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, no Rio de Janeiro, diz que elas podem ser benéficas para o desenvolvimento físico, social e mesmo cognitivo da criança. Porém, é preciso prestar atenção ao que alguns psicólogos apelidaram de “síndrome do miniexecutivo”, ou seja, o excesso de compromissos durante a infância.
“De modo geral, inscrever as crianças em várias atividades diferentes não é positivo porque compromete o ‘sagrado’ tempo do brincar”, reforça. Por meio das brincadeiras, a criança reproduz a realidade de forma controlada, para compreendê-la melhor e vivenciar seus medos, anseios e emoções, segundo a especialista. Sobretudo na primeira infância, período que engloba os cinco primeiros anos de vida, Harasawa salienta que o excesso de atividades pode acabar prejudicando o desenvolvimento da criança, seja pelo grau de esforço, seja pelo tempo dedicado.
Além de não ter tempo para brincar, a criança pode ficar estressada ou se ver obrigada a administrar uma agenda compatível com a de um adulto superatarefado. Outro efeito colateral pouco percebido pelos pais são as expectativas deles próprios com relação ao que a criança aprende. “Consciente ou inconscientemente, muitos pais começam a esperar um ‘craque’ de futebol, um ‘virtuose’ no piano, um ‘campeão’ de caratê ou um ‘gênio’ da pintura”, enumera a psicóloga. “A criança sente essa expectativa e passa a tentar atendê-la, o que é algo muito pesado e frustrante.”