
O cérebro humano tem cerca de 100 bilhões de neurônios conectados. Essas células, no entanto, não são coladas umas às outras: elas conversam pela sinapse, um pequeno espaço em que substâncias químicas circulam, sendo liberadas e absorvidas. Uma delas é a dopamina. Quando o corpo recebe um estímulo de prazer — que pode ser uma fatia de bolo de chocolate ou uma droga como a cocaína —, algumas células nervosas liberam a dopamina, que é absorvida por outros neurônios que têm receptores para isso. Assim, a substância circula e garante satisfação à pessoa.
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“A grande novidade do estudo é apontar que a droga age indiretamente no sistema inibitório, e não tínhamos conhecimento disso. A cocaína é um estimulante do sistema nervoso e, portanto, ela ativa os circuitos. O que esses pesquisadores viram é que ela estimula o neurônio dopaminérgico, mas inibe um outro centro, que tem como função inibir essa excitação”, explica Rogério Tuma, neurologista do Hospital Sírio-Libanês de São Paulo, que não participou do estudo.
Para chegar a esse resultado, os pesquisadores aplicaram injeções de cocaína em ratos geneticamente modificados e observaram o efeito no cérebro dos animais por meio de optogenética, técnica que consiste na expressão de uma proteína sensível à luz, facilmente manipulada pelos cientistas. Christian Lüscher, um dos autores, afirma ao Correio que o estudo inovou ao olhar para os processos inibitórios na VTA. “Não há outras pesquisas olhando especificamente para a transmissão inibitória nessa região”, garante. O especialista acrescenta que a investigação traz muitas pistas sobre como o vício se forma e por que usuários podem sofrer com a síndrome de abstinência, grande desconforto físico que surge quando o uso da droga é interrompido. Isso porque essa inibição do Gaba perdurou por muito tempo. “O efeito foi observado nos animais por dias, senão por semanas.”
Esse resultado também é importante, segundo Rogério Tuma. “O estudo mostra que o neurônio, sob efeito da droga, muda seu comportamento de forma duradoura e, talvez, até permanente, o que é ruim. Claro que mais estudos precisam ser feitos, mas, se descobrirmos uma droga que iniba a ação desse neurônio, vamos diminuir o risco da dependência e diminuir os efeitos da substância”, avalia o neurologista.

Dartiu Xavier, coordenador do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (Proad) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), considera o estudo interessante porque ele amplia o conceito da dependência química. “Antes, só se falava em receptores de dopamina, mas, agora, sabemos que há mais coisas no cérebro acontecendo para que a pessoa fique dependente”, diz. “Hoje, temos um grande questionamento: muitas pessoas consomem drogas, como cocaína e crack, mas nem todas são dependentes. Por que uma certa minoria fica dependente dessas substâncias? Essa é nossa grande interrogação”, prossegue.
Para ele, é preciso estudar tanto o cérebro dos dependentes quanto daqueles que não sofrem com o vício. Nesse sentido, as pesquisas sobre plasticidade neuronal ganham cada vez mais espaço. “Isso porque determinadas áreas se adaptam à entrada da substância e modificam a arquitetura dessas regiões e da disposição das células. Saber como isso ocorre, portanto, abre novas perspectivas para o tratamento.”
Na Unifesp, há estudos que investigam o potencial de substâncias usadas no chá ayahuasca, consumido nos rituais da doutrina do Santo Daime, para frear o desejo pela cocaína e pelo crack. Segundo Xavier, há pessoas que, ao iniciarem os rituais, abandonam o uso das drogas. “No início, achávamos que era a filiação religiosa, algo relacionado com a fé. Mas descobrimos que não é só isso, pois esses alucinógenos têm influência na plasticidade do cérebro. Hoje, sabemos que eles têm potencial para futuros tratamentos”, explica o especialista, para quem a dependência é uma mistura de fatores psicológicos e biológicos.
“Se uma pessoa é submetida ao estresse e nasce no meio da cracolândia, vive tensa, com medo de agressão, há grandes descargas de adrenalina. O mesmo ocorre em pessoas que têm pais opressores, por exemplo, ou possuem outros problemas familiares. Isso os leva a uma descarga de alguns hormônios que também modificam funções cerebrais. As terapias hoje são uma junção de psicoterapia com remédios”, conta.