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Os fragmentos da proteína beta-amiloide estão presentes no cérebro inicialmente como pequenos aglomerados solúveis que circulam livremente. Com o passar do tempo, elas formam as placas, levando a um processo inflamatório crônico nos neurônios e prejudicando a condução dos impulsos nervosos. De acordo com o trabalho publicado na edição de hoje da revista científica Science, ainda em forma de aglomerados solúveis, a proteína é capaz de se ligar tão fortemente a receptores que passa a corroer as sinapses nervosas antes mesmo de as placas serem formadas. As sinapses são as regiões de comunicação entre neurônios em que são transmitidos os impulsos nervosos, essenciais para o armazenamento da memória, por exemplo.
Para investigar essa possível parceria entre os receptores PirB e LilrB2 e a proteína beta-amiloide, os cientistas utilizaram um modelo de camundongo produzido em laboratório bastante suscetível ao desenvolvimento do Alzheimer. As cobaias foram divididas em dois grupos, sendo que o primeiro tinha receptores PirB e o segundo não os expressava. Cerca de nove meses depois, surgiram apenas nos animais do primeiro grupo os primeiros sinais relacionados à doença, como problemas de aprendizagem e de memória. Surgiu daí a teoria de que o PirB, que reside na superfície da célula, poderia atuar como um cúmplice da beta-amiloide, permitindo que ela se ligue às células e enfraqueça as conexões sinápticas.
Frente a esses resultados, a primeira pergunta feita pela equipe de Carla Shatz, professora de neurobiologia da Universidade de Stanford, na Califórnia, foi: Como o PirB poderia interagir com a beta-amiloide e influenciar na evolução do Alzheimer em humanos? Ao examinar o tecido cerebral de pessoas com Alzheimer, eles encontraram evidências de que o LilrB2 pode desencadear as mesmas reações nocivas que o PirB.
Para Neil Buckholtz, diretor da Divisão de Neurociência do Instituto Nacional do Envelhecimento, ligado ao Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos, a compreensão existente até hoje das várias proteínas envolvidas no desenvolvimento do Alzheimer e de como essas proteínas interagem umas com as outras pode um dia resultar em intervenções que atrasem, tratem ou mesmo previna a doença neurodegenerativa. “Esses resultados fornecem informações valiosas sobre essa doença complexa, que envolve o acúmulo anormal de proteínas, inflamação e uma série de outras alterações celulares”, comenta.
Cúmplice
Em um novo experimento — liderado por Taecho Kim, pesquisador no Laboratório de Shatz e principal autor do trabalho publicado hoje na Science —, foram comparadas as proteínas produzidas no cérebro dos dois grupos iniciais de camundongos, mais suscetíveis à doença de Alzheimer. Curiosamente, aqueles que tinham o receptor PirB também apresentaram um aumento significativo da enzima cofilina. O mesmo foi observado na análise post mortem do tecido cerebral de pacientes com Alzheimer.
A cofilina trabalha na modulação e na consequente quebra da actina — uma proteína que, no caso dos neurônios, exerce papel essencial para a conservação da estrutura sináptica. “Olhamos para os cérebros humanos nesse estudo e descobrimos que uma perturbação semelhante da atividade da cofilina está presente nos cérebros de pessoas com Alzheimer, mas não o cérebro saudável”, conta Shatz. A ligação da beta-amiloide com o PirB (em camundongos) e com o LilB2 (em humanos) resultou em alterações bioquímicas na cofilina, o que acelera a quebra de actina, levando a uma atividade de desmontagem sináptica. “Sem actina, sem sinapse”, resume Shatz. “As pessoas estão começando a olhar para o que essas proteínas fazem no cérebro. Mais pesquisas são necessárias, mas essas proteínas podem ser um novo alvo para drogas de Alzheimer.”
A professora de neurobiologia sugere que drogas que bloqueiem a ligação entre os receptores e a beta-amiloide na superfície das células podem ser capazes de exercer um efeito terapêutico. Até o momento, apenas dois outros receptores beta-amiloide (PRP-C e EphB2) foram encontrados e estão sendo estudados como alvos de drogas. Hoje, nenhum medicamento trata as possíveis causas subjacentes da doença de Alzheimer, já que a maioria das intervenções que atinge a fase de testes clínicos é projetada para limpar a beta-amiloide das células nervosas.
Para saber mais: caminho inusitado
A neurocientista Carla Shatz não tinha o Alzheimer como foco de pesquisa. Durante décadas, ela estudou a capacidade do cérebro de aprender e adaptar (plasticidade) focada principalmente no sistema visual. Durante o desenvolvimento, os olhos competem para se conectar a uma parte limitada do cérebro, processo conhecido como plasticidade de dominância ocular. Se a experiência visual através de um olho é prejudicada durante o início da vida — por exemplo, por uma catarata congênita (presente desde o nascimento) —, pode perder permanentemente território para o outro olho. Esse é um exemplo clássico de como um circuito cerebral pode mudar com a experiência. A pesquisa conduziu eventualmente ao PirB. Shatz descobriu que as cobaias sem o gene para a expressão do PirB tem um aumento na plasticidade da dominância ocular. Na idade adulta, quando as partes visuais do cérebro devem ser maduras, as conexões ainda são flexíveis. Isso estabeleceu PirB como uma “trava da plasticidade” no cérebro saudável. Não demorou muito para que ela começasse a se perguntar se o PirB pode também colocar um freio na plasticidade na doença de Alzheimer.