Primeira parte: a pesquisa, a reação, os números em outros países
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Ela se recorda também de outra situação, em que chegou a ficar na dúvida se tinha culpa pelo assédio: “Há uns 3 anos, estava em Búzios com minha mãe. Durante um passeio de barco, um dos guias se ofereceu pra me dar uma aula de mergulho como cortesia. Fiquei desconfiada, mas acabei aceitando – minha mãe incentivou, sem saber a real intenção do moço. Já embaixo d’água, ele começou a me tocar nos seios. Fiquei desnorteada: não sabia se, por ter concordado em mergulhar, eu tinha concordado com aquilo também. Em um primeiro momento eu até não reagi, mas a sensação era desconfortável demais. Tirei a mão dele de mim e me afastei. Voltamos pro barco e ele me pediu desculpas”, conta a estudante. Professora do Programa de Ciências Sociais e da graduação em Ciências Sociais e Publicidade e Propaganda da PUC Minas, Juliana Gonzaga Jayme afirma que o problema é que as vítimas de assédio sexual ou estupro são, muitas vezes - e pelas próprias mulheres -, transformadas de vítimas a culpadas pela situação que viveram. “Não é incomum ouvir frases do tipo ‘o que você estava fazendo ali?’ ou ‘mas com essa roupa você provoca os homens’”, explica.
Segundo a jornalista Juliana de Faria, responsável pelo site thinkolga.com, que abrigou e divulgou o questionário da pesquisa ‘Chega de Fiu Fiu’ nas redes sociais (e depois revelou os resultados), o assédio sexual em locais públicos é tratado como uma não-questão. “É um monstro invisível, sem estudos, pesquisas, matérias, relatórios sobre o fato. E é impossível lutar contra um problema que não temos nenhuma informação a respeito. Por isso, criei a campanha ‘Chega de Fiu Fiu’, para dar cara e tamanho para o assédio sexual. A primeira fase contou com a divulgação de ilustrações feita pela designer Gabriela Shigihara”, explica.
O próximo passo de Juliana foi criar um espaço para os depoimentos das leitoras. Eram três objetivos:
-mostrar que é um problema coletivo e não individual, ou seja, todas sofrem com assédio e têm histórias parecidas. E se é algo tão generalizado, quem o sofreu não tem culpa por isso;
-permitir que as mulheres trocassem experiências sobre como lidar com isso, desde como se defenderam na hora até como processaram ou o que aconteceu;
-criar empatia nas pessoas que ainda acreditam que o assédio sexual não existe ou é bobagem. Uma coisa é falar em termos genéricos sobre a cultura do estupro. Outra coisa é você ter exemplos de todas as situações constrangedoras que sua mãe, irmã, prima, amiga, namorada vivenciaram.
O terceiro passo foi a divulgação da pesquisa, que não foi elaborada dentro do contexto de uma pesquisa acadêmica e metódo científico. Conforme informa a própria Juliana, o questionário foi criado pela também jornalista Karin Hueck, em colaboração à campanha. O formulário ficou disponível no Think Olga por duas semanas e recebeu 7762 respostas. “Sofro com o assédio desde os 11 anos. Nessa idade, ao voltar da padaria, um carro passou perto de mim e o motorista gritou palavras de tão baixo calão que não ouso repetir. Não entendi direito o que tudo aquilo significava, mas mesmo assim senti a violência. Tanto é que na mesma hora comecei a chorar, constrangida. Agressões verbais também machucam e traumatizam. O medo se torna algo tão corriqueiro que nem percebemos que deixamos fazer coisas por causa dele - seja usar uma saia, ou pegar um caminho que passe na frente de um bar. Mas ninguém deveria ter medo de caminhar na rua somente porque nasceu mulher”, defende a jornalista.
A blogueira sustenta que os números são revoltantes. “Mais do que isso, são assustadores. Mas, infelizmente, não são uma surpresa alguma para as mulheres. É uma prova de que nós não sentimos segurança em fazer atos corriqueiros, como caminhar pela rua. Além disso, as agressões são vistas com naturalidade. Mas as mulheres já demonstram cansaço e querem mudar esse cenário. Em apenas cinco horas de divulgação da pesquisa, os resultados foram compartilhados por mais de 10 mil pessoas”, comemora.
Questionada sobre ações reais que possam pelo menos amenizar essa realidade, a jornalista acrescenta que reconhecer o problema e debater sobre ele são os primeiros passos. “Acho que estamos fazendo isso com a campanha”, finaliza.
Doutor em ciência política e professor da PUC Minas, Malco Camargos diz que cada vez mais as pesquisas em internet vêm crescendo em importância. No entanto, no caso da campanha ‘Chega de Fiu Fiu’, o mérito que o pesquisador enxerga é o de apontar a necessidade de pesquisas sobre o tema. “O resultado sinaliza alguma coisa, mas não metrifica ou quantifica. É necessário uma investigação maior sobre o tema”, afirma.
Para ele, o resultado poderia até representar o pensamento dos leitores do blog, mas não o faz. “Um dos pré-requisitos para que uma pesquisa tenha validade científica é que não tenha a indução de quem vai participar, garantindo a aleatoriedade. Quando é voluntário, não há controle sobre o perfil de quem responde. Já a aleatoriedade poderia ser garantida com um sorteio para selecionar quem responderia o questionário”. A conclusão é que a pesquisa não pode ser generalizável para o universo feminino.
Reagir ou não reagir?
Sobre reagir a uma situação constrangedora na rua, Bárbara diz que já xingou de volta e empurrou, por impulso. “Normalmente, fecho a cara e ignoro. Não sei se o ideal é reagir com uma postura mais enérgica (apesar de ser essa a vontade), pois ando vendo vários casos com desfecho muito triste pelo simples fato de a menina ter virado o rosto. Infelizmente é essa a realidade. A maioria das cantadas que recebo são mais leves, assobio, “linda”, “boneca”, “princesa”. Mas tem umas que são mais pesadas e são uma invasão, uma agressão, dão nojo. Independente de qual tipo acho que algo tem que ser feito para isso parar. Por outro lado, tenho esperança de que, caso reagisse, eu teria solidariedade dos transeuntes, pois percebo que esse comportamento (de amparar a vítima) vem crescendo”, relata a professora de moda.
O incômodo é tão grande que Bárbara chegou a pesquisar sobre a legislação que poderia ampará-la. Por outro lado, ela diferencia claramente uma cantada/paquera do assédio. “Agora, se você diz não para a outra parte e não é respeitada, ou seja, quando há uma insistência, independente do local em que acontece, a cantada pode se tornar assédio”, explica. Seguindo a professora de 27 anos, o assédio na rua, além de constrangedor, é um incômodo que leva à raiva e ao mau humor diário’. “O assédio traz angústia, pelo medo de revidar, além de ansiedade por se livrar da situação e insegurança”, descreve.
JFV diz que, muitas vezes, nem há tempo para uma resposta ou reação quando um cara sussurra alguma frase grosseira ao pé do ouvido. “Eles fazem isso no meio da rua e seguem caminhando. Não dá tempo de contê-lo e reagir, expondo-o ao ridículo. Eu acho que seria ridículo para quem soltou a ‘pérola’ se eu revelasse para as pessoas em volta o que essa pessoa disse pra mim”, acredita a estudante.
Sobre a possibilidade de fazer uma denúncia, J aponta a dificuldade de levar uma testemunha à delegacia e desconfia das consequências que a ação teria. “Não temos nem como indicar o ‘culpado’. Reagi apenas com olhares, mas acho que me sentiria segura para ser mais enérgica se necessário ou se desse tempo. Espero que algum transeunte se solidarize comigo, dependendo da situação”, afirma.
A estudante aponta ainda um aspecto cruel de toda essa discussão. “Como se não bastasse o constrangimento e a humilhação, fica parecendo que reclamar disso é picuinha, coisa de ‘feminista mal comida’. Não entendo de maneira alguma como alguém me chamar de gostosa ou elogiar minha bunda me faria sentir orgulho de mim e/ ou do meu corpo. Acho que esse comportamento masculino nos torna mais envergonhadas e receosas de simplesmente ‘ser’. De andar na rua, independentemente do horário, de trabalhar, de ir a academias, boates, etc. Se a mulher é vaidosa, isso não significa que ela goste ou espere ouvir comentários chulos ou investidas ainda mais invasivas de outras pessoas, em geral, outros homens”, resume.
Assédio na rua não é uma exclusividade brasileira
A organização não governamental “Pare o assédio na rua” (www.stopstreetharassment.org), fundada nos Estados Unidos e com escritórios em vários países do mundo, também tenta combater não só o constrangimento quanto a falta de dados sobre o problema.
Utilizando a internet, a Ong realizou duas pesquisas online e anônimas, como parte de um trabalho de mestrado apresentado na Universidade George Washington, em 2007; e para publicação de um livro, em 2008. Somando as duas pesquisas, foram 1.141 entrevistados, sendo uma pequena porcentagem de homens no primeiro estudo. Quase todos os respondentes do sexo feminino tinham sofrido assédio rua pelo menos uma vez. A pesquisa não inclui situações de assédio no trabalho ou em boates e especifica as situações consideradas como “assédio”, veja:
Poder masculino e subordinação feminina são comportamentos aprendidos
A pesquisadora Juliana Gonzaga Jayme afirma que o termo cantada não se aplica a situações em que a mulher é constrangida com palavras, olhares ou gestos. “Isso é assédio sexual, é óbvio que incomoda e, mais que isso, amedronta e oprime. Não é raro ouvir que as mulheres têm medo do que pode acontecer quando cruzam com homens que, sem a conhecerem, se sentem no direito de proferir palavras sobre o seu corpo. Isso é violência, opressão”, argumenta.
A pesquisadora afirma que os resultados das pesquisas brasileira e norte-americana apenas corroboram a literatura dos estudos de gênero e dos estudos feministas que discutem e rediscutem a violência de gênero. “Embora não possamos negar que haja avanços em relação à equidade de gênero, o poder masculino - e a subordinação feminina - ainda se manifesta. E isso é aprendido. Os estudos sobre masculinidade mostram como existe um ideal de chamada masculinidade hegemônica, que, entre outras características, está associada à violência que pode se manifestar tanto por agressões físicas e ameaças, como pelo assédio sexual e o constrangimento no espaço público e mesmo doméstico”, afirma.
Para ela, o homem tem completa noção de que comportamentos desse tipo são de natureza violenta e opressora. “Eles têm plena ciência do absurdo que é fazer isso, tanto que não é comum que tenham essa atitude em situações que eles têm menos poder”, analisa.