A atenção é uma característica como o peso e altura – cada um tem a sua. Não necessariamente a diferença indica um transtorno. E todas as abordagens sobre o TDAH esbarram no controverso metilfenidato, que no Brasil se tornou sinônimo de ritalina. Indicada de forma indiscriminada – o Brasil é o segundo consumidor mundial desse derivado das anfetaminas -, a ritalina passou a fazer parte de receitas sem o devido rigor no diagnóstico e trazendo consigo o risco da dependência química, do uso incorreto por jovens que querem emagrecer ou 'ficar mais espertos'. Com efeitos colaterais consideráveis, a substância passou a vilã, colocando no limbo milhares de pessoas que realmente receberam um diagnóstico de transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH).
De acordo com o psiquiatra Guilherme Polanczyk, professor de Psiquiatria da Infância e Adolescência do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP, as questões de saúde mental em geral são subdiagnosticadas em qualquer país do mundo. A situação é ainda mais frequente em crianças e inclui problemas como o autismo, transtorno de ansiedade, depressão e o TDAH. “O reconhecimento de problemas mentais em crianças é recente, vem da década de 50 do século passado. Em todo o mundo, o número de profissionais treinados e especializados em psiquiatria infantil ainda é reduzido. Consequentemente, ainda há poucos serviços públicos e privados capazes de acolhê-las. Aliado aos preconceitos e estigmas, o resultado é que muitas vezes, quem não tem TDAH é diagnosticado com o problema; e quem tem pode ficar anos sem tratamento correto”, explica o psiquiatra.
Um dos maiores estudos sobre saúde mental já realizados mostrou que apenas 14% das crianças e adolescentes estadunidenses que apresentam problemas recebiam tratamento adequado. “No Brasil, nem temos esse dado. Fora do que chamamos de ilhas de atendimento – no sul e sudeste do país – a situação é ainda pior e não existem nem serviços privados suficientes”, lamenta o médico e pesquisador.
Polanczyk participou de um trabalho, baseado nos registros de venda da medicação indicada para o transtorno, que apontou a impressionante marca de que apenas 20% das crianças e adolescentes brasileiros com TDAH recebem a medicação correta. “Considerando que, pelas estimativas mundiais, 5% da população tem a doença e que o medicamento também é usado com outras indicações, o percentual de pacientes com a atenção completa é muito baixo”, explica o professor. Esté é um dos pontos em que o TDAH mostra seu lado polêmico: há especialistas que questionam essa porcentagem e questionam sua invariabilidade de acordo com o país e o estilo de sociedade. Leia também:
Todos ou nenhum?
O psicólogo Ronaldo Ferreira Ramos, diretor executivo da Associação Brasileira de Déficit de Atenção (ABDA - instituição fundada por pacientes, sem fins lucrativos - www.tdah.org.br), explica que uma criança com TDAH vai demonstrar esses sinais dentro e fora da escola. “Em uma sala com 30 crianças, por exemplo, no máximo dois ou três terão algum tipo de transtorno. O problema é que esses dois ou três ficam negligenciados, porque muitos pais e muitas escolas acreditam que todos - porque estão passando por fases de agitação ou introspecção - têm problemas”, alerta.
A observação apenas na sala de aula, como acontece em muitos casos, não é suficiente. “A desatenção, a timidez e a dificuldade no contato social se manifestam em todas as situações para aqueles que têm TDAH. O diagnóstico do transtorno ainda é muito mal realizado”, define o psicólogo. Momentos de desatenção podem ser fruto de um conflito psicológico; e não de um transtorno neurobiológico, mas muitos profissionais de saúde e educação têm poucas informações sobre o tema. “Atendi uma moça de 18 anos que havia recebido o diagnóstico de TDAH aos 8, mas a psicopedagoga que a atendeu na época recomendou aos pais apenas que eles oferecessem outras atividades à menina e desaconselhou a medicação. Ela passou por 12 anos de dificuldades escolares e de relacionamento, depressão e alterações de humor que poderiam ter sido evitadas”, exemplifica o diretor.
Entre depoimentos como esse, de um lado, e médicos que desaconselham a medicação em todos os casos, de outro; é fato que a falta de informação causa sofrimento aos pacientes, que se tornam o elo mais frágil.
Diagnóstico tardio
Ronaldo Ramos sustenta que pesquisas recentes apontaram o diagnóstico tardio de TDAH como causa de menor grau de escolaridade, mais situações de desemprego, depressão e de abuso de álcool e drogas entre seus portadores. “Como são pessoas intempestivas, impulsivas e ciumentas, esse traço vai interferir em todos os aspectos da vida. Tratar a pessoa antes reduz drasticamente o grau de prejuízo que a criança vai ter. Daí a necessidade de uma avaliação muito criteriosa, porque apenas 30% dos portadores têm os sintomas clássicos do TDAH - desatenção, hiperatividade, impulsividade”, resume o psicólogo.
Ao contrário da pediatra Maria Aparecida Moysés, da Unicamp, o diretor da ABDA não acredita que a vida moderna tenha criado ou ampliado o número de pessoas com TDAH, ou seja, que o transtorno seja um mal produzido pela nossa sociedade. Mas acha que o stress pode ser um gatilho para desencadear os sintomas. “Quando a pressão aumenta, vêm as cobranças, na escola ou no trabalho. E isso pode facilitar a percepção dos sinais. Antes, eu mandava uma carta e ela demorava dias para chegar ao destino. As coisas tinham um tempo maior, exigiam menos da nossa atenção e alguém poderia ter TDAH a vida inteira sem perceber. Hoje, precisamos estar atentos o tempo todo”, explica.
Pensando em esclarecer esses mitos, a ABDA pretende realizar o 1º Fórum Nacional de Pessoas com TDAH, reunindo legisladores, políticos, educadores e lideranças da sociedade civil para discutir a criação de políticas públicas para os portadores do Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade. “Se o diagnóstico e o tratamento já são difíceis na rede de atendimento particular, na rede pública o processo é ainda mais restrito. O tratamento envolve um ônus financeiro considerável e temos que ir de passinho em passinho – primeiro, precisamo de mais reconhecimento dentro das escolas, depois, abertura para que os portadores de TDAH se manifestem e exijam políticas públicas”, define o diretor.
Para promover o evento, a associação criou um vídeo com depoimentos de estudantes, músicos, advogados, auxiliares administrativos e do ator Otávio Muller. Eles relatam a sucessão de erros de diagnóstico, a dor de ouvir que os amigos não queriam ficar mais perto e a sensação de ser de 'outro planeta', confira:
Associação de terapias
Além do tratamento medicamentoso, há outras indicações, como a psicoterapia – principalmente a terapia cognitivo-comportamental (TCC) - , mas elas não são oferecidas na rede pública e são bastante dispendiosas. “Existe muito diagnóstico precipitado. E existem também muitas escolas que não criam ambiente adequado para receber essas crianças, muito pela falta de profissionais qualificados. E existe, sim, muita confusão – pessoas que não têm TDAH recebem medicação; e pessoas que têm ficam à margem”, define Polanczyk.
Para oferecer opções às famílias que buscam informações sobre o tema, a ABDA mantém um cadastro de profissionais com experiência e conhecimento reconhecidos. “A avaliação para o diagnóstico de TDAH não é feita em poucos minutos. Ela deve ser feita por um profissional capacitado, incluindo a participação dos pais e dos professores”, explica Polanczyk. Essa avaliação deve incluir todo o histórico de dificuldades da criança – e não só os problemas escolares – com detalhes abrangentes sobre o o processo de desenvolvimento e o histórico de sintomas. “Não é porque alguém é distraído ou agitado que tem um transtorno. Mas é muito perigoso também confundir os sintomas do TDAH com traços da personalidade”, alerta o médico.
Segundo o psiquiatra, o transtorno tem um componente genético muito forte e se expressa de forma semelhante em várias fases da vida, mantendo os sintomas centrais mesmo em adultos – desatenção, dificuldade de controlar a atividade motora e impulsividade. “Não existe um adulto com TDAH que já não tivesse a doença na infância. A principal diferença é que os sintomas clássicos de agitação diminuem no adulto, mas ele passa a se envolver em acidentes de trânsito, toma decisões precipitadas sobre a vida pessoal e profissional, envolve-se facilmente em discussões, pede demissão com poucos meses em qualquer emprego, termina relacionamentos amorosos de forma repentina e se arrepende constantemente de falar o que não deve. Planejar o futuro e uma habilidade que esse adulto não vai ter”, define o psiquiatra.
Oportunismo
Polanczyk pondera que a falta de diagnóstico na infância ou adolescência abre as portas para outros transtornos. Ivan Monticelli sustenta essa hipótese. “Fumei por 25 anos, sempre abusei do álcool. Não ficava mais do que um ano e meio em nenhum emprego, mesmo que o salário fosse bom. E também não concluí a universidade”, relata ele, que hoje é dono de uma empresa que instala equipamentos de segurança em residências em São Paulo. Segundo médico, em situações como essa, é comum que o foco da família esteja voltado apenas para a dependência química, sem olhar o que está por trás do problema.
O efeito da medicação também depende da resposta individual. “A medicação mais eficaz é comporta por psicoestimulantes. No Brasil, há quatro grupos de substâncias dessa classe aprovadas. Cerca de 70% dos portadores de TDAH respondem bem só tratamento com psicolestimulantes, mas isso é um processo em que nem sempre se acerta de primeira e pode haver necessidade de associação com outras drogas”, explica Polanczyk.
O que o psiquiatra faz questão de destacar é que o tratamento não funciona sem acompanhamento da família. O diálogo e a paciência vão ajudar tanto para a melhora dos sintomas – stress, baixa autoestima e sentimento de incompetências, por exemplo - quanto para minimizar as consequências negativas do TDAH no ambiente familiar. “Com tratamento adequado, a pessoa com TDAH pode realizar todas as atividades do dia a dia e ter uma adaptação normal. Em 1/3 dos pacientes, os sintomas podem até desaparecer e em muitos casos a medicação pode ser suspensa. Nos outros 2/3, haverá a necessidade de continuidade da medicação e acompanhamento”, explica Polanczyk.
Monticelli conta que, por não ter tido o acompanhamento adequado quando criança, acabou desenvolvendo estratégias para se adaptar. Durante muito tempo, acreditou que o problema era a depressão – chegou a procurar oito médicos, buscou religiões diferentes, três terapeutas, participou de grupos como o Neuróticos Anônimos. “Fiz exames de sangue, tomografias e acabei achando que me enquadrava mesmo na depressão. Depois comecei a observar que eu não era o único com essa condição na família”, relata Ivan.
Segundo ele, sempre faltava alguma coisa, apesar de algum alívio momentâneo. “Fiquei sem esperanças, achei que a minha vida estava caminhando para o fim e que eu ia morrer como o meu pai, aos 60 anos. E uma dica que eu dou é essa – o tratamento do TDAH corretamente diagnosticado deve começar com esperança”, conta ele. A dificuldade de lidar e mesmo de classificar os sentimentos colocou Ivan em várias saias justas. “Eu falava coisas em horas inadequadas, e muita gente achava que eu era engraçado”, diz o empresário. “Passei minha juventude buscando o sentido de 'normal'”, desabafa.
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Um traço da personalidade com o qual ele aprendeu a lidar foi o hiperfoco. “Aprendi a tirar proveito disso. Como trabalho com sistemas de segurança e os manuais dos equipamentos são todos em inglês, uso meu poder de concentração para traduzi-los em uma sentada só”, ensina. O problema é quando o hiperfoco faz com que o portador de TDAH negligencie a família. “Antes, eu era muito eficiente na minha profissão, mas infeliz em casa, não tinha amizade profunda com ninguém. Agora estou reaprendendo a viver. Se antes eu achava que minha vida estava no fim, agora vejo que posso fazer muitas coisas”, resume o empresário. Ele, que já bateu o carro várias vezes, colocou a família em situação financeira complicada mais de uma, é taxativo: as pessoas que estão por perto é que sentem. “Eu gostava de entrar em discussões e debates só para tumultuar, pelo prazer de provocar. E tem gente que acha que isso é qualidade. Entendi também as características de autoboicote. Se o GPS me mandava virar à direita, eu achava que ele estava errado e fazia o contrário. E também não sabia falar 'não' para ninguém. Depois era um problema para consertar, mas eu continuava achando que estava certo. Descobri que sou o hiperativo compulsivo típico”, pondera.
Grupos de apoio
Uma opção para quem está tentando lidar com um possível diagnóstico de TDAH é vencer a resistência e procurar grupos de apoio. “Muitas vezes, os pais vão com os filhos a contragosto, dizendo: 'mas eu sempre fu assim, nunca tive problema'. Eu desconfio que esse pai pode ser bem sucedido profissionalmente, mas talvez sua esposa não concorde que ele não tenha problemas”, aponta Ivan. Hoje, Ivan observa que sua mulher já anda de carro com ele sem medo. Percebe que as filhas estão mais amorosas e que os amigos se abrem mais com ele. Ele já se permite planejar uma viagem, a longo prazo. Deu entrada no pedido de aposentadoria. “Minha vida melhorou também nas coisas mais simples. Eu anotava dez coisas para fazer durante um dia, sem distinguir a prioridade. Agora,eu anoto só duas – as mais importantes.
Ele procura ajudar outras pessoas na mesmas situação, admnistrando grupos de portadores de TDAH em redes sociais. “Se eu puder deixar uma mensagem, é: permita-se errar. Os novos hábitos vêm devagar, não precisam ser um fardo. E você fica bem mais leve”, ensina o empresário. “Existe muita desinformação e uma medicalização excessiva. Só que o excesso de prescrição – fruto de pais omissos e escolas incompetentes - acabou se tornando uma campanha difamatória contra o TDAH, e isso precisa ser esclarecido”, afirma Ivan.
Apesar de a Associação Médica Americana considerar o TDAH um dos “transtornos mais bem pesquisados do mundo", há médicos que lançam dúvidas sobre o rigor científico que envolve esse transtorno. Leia agora: