A transformação violenta da história do nascimento, que de um evento familiar entre mulheres se tornou um evento hospitalar é de, no máximo, 50 anos. “As mulheres perderam o poder do nascimento e entregaram aos médicos. Elas acabaram se conformando a padrões rígidos estabelecidos pelo sistema médico de que têm que parir em determinado número de horas e que têm que se comportar de uma determinada forma padronizada”, corrobora o médico-obstetra Ricardo Jones, um dos vários especialistas entrevistados no longa-metragem. E esse é um ponto importante que ninguém gasta tempo para refletir sobre ele. Como pode, em tão pouco tempo, o parto hospitalar se consolidar de tal maneira a ponto de a maioria das brasileiras se sentir mais segura em um lugar para pessoas doentes do que na própria casa? Talvez esse seja um dos pontos mais polêmicos do filme. Se hoje em dia, grávidas sequer cogitam um parto normal, que dirá o parto domiciliar?
Para a antropóloga Robbie Davis-Floyd, que também está no documentário, esse tema diz respeito a toda a sociedade porque todo mundo nasceu. Apesar de a obra - que já estreou em outras cidades brasileiras e vem repercutindo país afora –, em nenhum momento se posicionar contra a cesariana e deixar claro que o procedimento cirúrgico existe para salvar vidas, muita gente insiste em interpretá-la de forma equivocada e evocar opiniões, principalmente nas redes sociais, para afastar o público que vê nessa opção a maneira mais segura de colocar uma criança no mundo. Eduardo Chauvet, diretor do filme, quer que seu registro chegue aos rincões do Brasil. A expectativa é de que ele alcance muitas salas de cinema do país. “Fizemos em todos os formatos digitais possíveis e o filme está pronto para chegar em qualquer lugar”, diz. O diretor gosta de lembrar, entretanto, que apenas 9% dos municípios brasileiros têm cinema. Por isso, faz parte do projeto de divulgação disponibilizá-lo em dvd e promover exibições em parceria com secretarias municipais de saúde no máximo de cidades possível.
Segurança
O desafio lançado à sociedade brasileira é abandonar o ranço cultural de que a cesariana é um parto mais controlado, menos arriscado e que não traz nenhum risco ao bebê. É exatamente o contrário: ela é uma cirurgia, desnecessária na grandíssima maioria dos casos, com todos os riscos que a palavra carrega consigo. A situação é especialmente grave na rede de saúde particular, onde 82% dos partos são por cesariana, enquanto na rede pública o percentual é de 37% do total de nascimentos, ainda muito acima da recomendação da OMS.
“Quando mal indicada, a cesariana coloca a mulher e o bebê em risco três vezes mais do que se fosse um parto normal”, afirma Esther Vilela, gestora do Ministério da Saúde. Outro ponto abordado é que perto do final da gestação existe a margem de erro de duas semanas para mais ou para menos, o que pode ocasionar a prematuridade do bebê e levá-lo a uma UTI neonatal. “Isso acontece e a sensação entre o público leigo é de que o bebê foi salvo. Se na cesárea nasceu daquele jeito, imagina se tivesse esperado mais três semanas?”, reflete obstetriz Ana Cristina Duarte, também entrevistada no filme.
Sim, o ato de parir deixou de ser um evento fisiológico para se tornar um procedimento médico cheio de intervenções desnecessárias, incluindo a prática indiscriminada da episiotomia, no caso do parto normal. O que os estudos mostram é que apenas 5% das mulheres podem precisar desse corte e não que ele deva ser adotado como padrão. No caso das cesáreas, as justificativas médicas para isso se tornaram até um documento público na internet, com pitadas de humor (clique e acesse), que lista, atualmente, 110 razões que os profissionais usam para convencer as mulheres a adotarem a opção cirúrgica. “Por que ela é muito nova para parir. Por que o bebê é grande e não passa. Por que a mulher é velha. Por que ela é muito gorda. Por que ela é muito magra. Por que ela é sedentária. Por que ela pode ficar larga. Por que dói muito”, cita Ana Cristina Duarte em depoimento ao documentário. A médica obstetra Melania Amorin cita, também no filme, outras: “bebê pequeno demais, bebê grande demais, grau de placenta avançado. Muito líquido, pouco líquido. Circular de cordão. São indicações que não existem, são entidades fantasmagóricas que se criaram”, argumenta.
Entre os motivos apontados no filme dois merecem atenção especial: bebê com cordão enrolado no pescoço e falta de dilatação. No primeiro caso, as mães se assustam acreditando que a circular de cordão pode matar seus filhos ou filhas. “40% dos bebês nascem com o cordão enrolado no pescoço, é um evento completamente fisiológico, mas que se criou o mito do cordão assassino”, comenta Melaine. Em relação à dilatação, a obstetra é enfática: “ela não acontece num passe de mágica”. Outra informação falaciosa, de acordo com Ana Cristina Duarte, é que a mulher não entrou em trabalho de parto. “Toda mulher entra em trabalho de parto, mas se o médico operar a mulher antes de ela entrar em trabalho de parto ela não entra em trabalho de parto”, ironiza.
As histórias
Apesar do turbilhão de informação que culmina com a falta de evidências genuínas, científicas ou médicas para os métodos obstétricos e pediátricos adotados nos hospitais do Brasil, são os depoimentos de mulheres que viveram experiências traumáticas ou daquelas que pariram da forma como desejaram que faz o filme ter grandes chances de tocar até aqueles que têm sedimentada a convicção na cesariana.
Entre as histórias marcantes está a da bióloga Carol Lobo que admite, já no início do filme, não ter conhecimento da fisiologia do parto e, no nascimento de sua primeira filha, ter passado por uma cesariana por ter levado em conta apenas a sua ansiedade e a opinião do médico. No depoimento, ela narra a reação da primogênita ao assistir à gravação do nascimento: “Ela (a filha) ficou chocada. Ela ficava me perguntando: ‘mamãe, por que estou sozinha? Eu nasci e não tem ninguém comigo. Eu estava na sua barriga e agora eu estou sozinha. Cadê você, cadê o papai?’. Eu pedi para me desamarrarem, não me desamarraram. Minha filha se sentiu abandonada e apesar de, na época, eu já ter assistido ao vídeo várias vezes, naquele momento ele me chocou”, relembra. Mãe de duas meninas, a segunda de parto domiciliar, Carol diz, que até então, pensava que seu parto tinha sido perfeito.
Talvez a história mais revoltante seja a da professora Carmem Campbell. No documentário, ela conta que o médico trocou seu ultrasson e, bem no final da gestação, lhe mostrou o suposto filho com o cordão enrolado no pescoço. A “sorte” é que a mãe já conhecia o rosto do bebê, questionou aquela imagem e mudou de médico.
Andréa Santa Rosa Garcia é nutricionista, esposa do ator global Márcio Garcia e mãe de três filhos. No primeiro parto, apesar de ela ter demonstrado a vontade pelo parto normal, o mesmo argumento para a cesariana foi apresentado também a ela ao final da gravidez: bebê com cordão enrolado no pescoço. “Eu era muito jovem, eu acreditei piamente nela, mas tinha uma coisa muito forte no meu inconsciente que me falava que eu estava errada. Mas quem, com 38 para 39 semanas, vai mudar a médica? A família inteira falando que tem que fazer o parto agora...”, recorda. Desmentindo outro mito – de que depois que a mulher faz cesárea não pode ter parto normal -, Andréa colocou sua segunda filha no mundo sem a cirurgia e o terceiro, de parto domiciliar.
Uma imagem, mil palavras
Pela repercussão e alcance do depoimento, o ator Márcio Garcia foi o único pai que aparece no documentário dando sua versão para o nascimento de seus três filhos. “Criaram-se muitos mitos em cima dos riscos e, a mãe protetora, quer amenizá-los”, declara. Ele admite que precisou estudar muito para ser convencido pela esposa do parto domiciliar. Nas outras histórias, mães também relataram que foi necessário um esforço para persuadir seus companheiros a mudar de opinião. Natural nesse processo de inversão de paradigmas: atualmente, no Brasil, é a cesariana que carrega o status de tipo de parto mais seguro.
Apesar de o filme focar no protagonismo e empoderamento da mulher – que ao longo da gestação vai se resignando a ter suas vontades minadas pelo “conhecimento” médico - não foi por ideologia que os homens das histórias narradas ficaram de fora. “São 90 minutos e priorizamos o relato das mulheres. Se eu pudesse mudar alguma coisa, colocaria mais pais falando, mas em todos os vídeos de parto os pais estão presentes e acreditamos que a imagem vale mais do que as palavras. Apesar de a prioridade da via de parto ser da mulher, é muito importante a presença do companheiro ao longo da gestação e no momento do nascimento”, declara Érica de Paula.
Uma civilização sem amor
Entre os depoimentos contundentes, está o do médico e pesquisador Michel Odent. Referência internacional na área, ele contextualiza a discussão sobre a “epidemia” de cesarianas a um sentimento que é caro a todas as pessoas, o amor: “Até recentemente, o amor era um tema para os poetas, filósofos e romancistas. Mas hoje é estudado por cientistas. Hoje nós podemos entender que a capacidade de amar é em grande parte organizada e construída durante o período em torno do nascimento. Para dar à luz a mulher precisa liberar uma mistura de hormônios. De acordo com cientistas modernos, trata-se de um coquetel de “hormônios do amor”. Em todo o planeta, o número de mulheres que dá à luz a seus bebês somente graças à liberação desse coquetel está chegando a zero. Zero, na era da ocitocina sintética e da cesariana fácil e rápida.
Quando falamos de ocitocina sintética, é uma forma de substituir o hormônio natural que as mulheres deveriam liberar por si próprias. É óbvio que quando uma mulher tem seu filho por cesárea ela não está no mesmo equilíbrio hormonal que uma mulher que dá à luz por ela própria. Isso significa, em outras palavras, que podemos tornar os hormônios do amor redundantes inúteis no momento crucial em torno do nascimento. Isso é inédito na história do nascimento e provavelmente na história da humanidade”.
A ciência também estuda a relação das taxas de suicídio, anorexia e autismo, por exemplo, com o tipo de parto. A conclusão é de que o nascimento tem influência no desenvolvimento de comportamentos autodestrutivos e que é preciso encarar o fato do quão importante para o indivíduo é o que acontece durante o seu parto.
De quem é a culpa?
Não existe um único culpado. A indústria do parto é lucrativa e é ingenuidade não tocar na questão monetária quando se fala na adoção indiscriminada de cesarianas sem qualquer indicação para o procedimento cirúrgico. “Já estava tudo tão pré-estabelecido e o filme chega para dar um chacoalhada total”, acredita o diretor Eduardo Chauvet. E é a demanda feminina que vai mudar esse cenário. Por isso, é importante restituir o protagonismo à mulher e dar a elas informação e uma visão integrativa do fenômeno. “Os profissionais têm que reconhecer que o compromisso ético deles é com o fazer o bem e não com o que é danoso, inefetivo e que deve ser abandonado. E os gestores de saúde têm que ter coragem de tomar medidas que são impopulares com os profissionais e assumir o controle das indicações de cesárea”, acredita a médica epidemiologista Daphne Rattner que é entrevistada no documentário.
Para os profissionais, é importante a vinculação dos procedimentos adotados com a medicina baseada em evidências, levando-se em conta as pesquisas mais modernas e não um comodismo de um modus operandi confortável à prática da obstetrícia atual.
Veja o trailer do filme:
Abaixo o vídeo promocional de 'O Renascimento do Parto':
SERVIÇO:
Filme: O Renascimento do Parto
Horário: De 23 a 29 de agosto: 17h40
De 30 de agosto a 5 de setembro: 19h40
Local: Usiminas Belas Artes
Sessão gratuita seguida de debate: 24 de agosto, sábado, 10h, com retirada de ingressos a partir das 9h.
Debatedores:
Ricardo Chaves (RJ) - pediatra e personagem do filme;
Marcos Dias (RJ) - ginecologista obstetra, do Instituto Nacional da Saúde da Mulher da Fiocruz e Ministério da Saúde.
Míriam Rego - enfermeira obstetra e integrante da equipe de parto domiciliar de BH
Hemmerson Magioni - ginecologista obstetra do Instituto do Nascer
Sônia Lansky - pediatra doutora em Saúde Pública e coordenadora da Comissão perinatal da Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte e Consultora do Ministério da Saúde
Filme: O Renascimento do Parto
Horário: De 23 a 29 de agosto: 17h40
De 30 de agosto a 5 de setembro: 19h40
Local: Usiminas Belas Artes
Sessão gratuita seguida de debate: 24 de agosto, sábado, 10h, com retirada de ingressos a partir das 9h.
Debatedores:
Ricardo Chaves (RJ) - pediatra e personagem do filme;
Marcos Dias (RJ) - ginecologista obstetra, do Instituto Nacional da Saúde da Mulher da Fiocruz e Ministério da Saúde.
Míriam Rego - enfermeira obstetra e integrante da equipe de parto domiciliar de BH
Hemmerson Magioni - ginecologista obstetra do Instituto do Nascer
Sônia Lansky - pediatra doutora em Saúde Pública e coordenadora da Comissão perinatal da Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte e Consultora do Ministério da Saúde