O conceito de que comer em excesso pode representar um comportamento compensatório em pessoas com deficiência na produção de dopamina é recente. Em obesos, essa disfunção tem sido relatada em uma área do cérebro chamada estriado dorsal. Segundo o estudo divulgado na Science, essa condição pode ser a grande vilã das dietas, induzindo ao comportamento compulsivo e, consequentemente, ao ganho de peso. “Essa deficiência produz grandes limitações durante o consumo de dietas de baixa caloria, pois elas passam despercebidas pelos circuitos cerebrais associados ao controle do consumo alimentar”, explica o pesquisador brasileiro Ivan Araújo, um dos autores do trabalho.
Segundo Araújo, quando consumimos gordura, como os triglicerídeos, os ácidos graxos que fazem parte dela são modificados pelas células intestinais. Esse processo gera moléculas, entre elas, a OEA. “Esses lipídios transformados, além de proverem energia, funcionam como mensageiros celulares ao enviar sinais de saciedade para outras células vizinhas ou ativar terminações nervosas do intestino”, explica o pesquisador do Laboratório John B. Pierce, nos Estados Unidos.
O cientista brasileiro diz que há evidência de que a presença de calorias oriundas da OEA no trato gastrointestinal pode disparar um circuito que eventualmente leva à liberação da dopamina, o principal mensageiro químico desse sistema de recompensa. “O interessante é que a comunicação entre trato gastrointestinal e sistemas cerebrais de recompensa parece estar alterada nos organismos de obesos”, observa Araújo. Segundo ele, o consumo excessivo de alimentos ricos em gordura também parece produzir uma redução drástica na resposta de dopamina às calorias no trato gastrointestinal.
Recompensa
Para tentarem explicar como comer muita gordura enfraquece o sistema de recompensa e induz à compulsão por comida, os pesquisadores dos Estados Unidos e da China analisaram dois grupos de ratos. O primeiro foi alimentado com níveis altos de gordura. O outro, com baixo teor de gordura. Eles constataram que o primeiro grupo produziu baixa quantidade de OEA no intestino, e as respostas de dopamina nos cérebros também caíram. O mesmo não foi detectado nos roedores alimentados com a infusão light.
A segunda etapa do experimento consistiu em aplicar uma infusão de OEA nos ratos que ingeriram gordura em excesso. Como os pesquisadores esperavam, o tratamento restaurou as respostas do sistema de recompensa. Além de normalizar a produção de dopamina, a OEA criou nos roedores o desejo de consumir alimentos menos gordurosos. Diante dos resultados, os pesquisadores sugerem que o aumento da OEA no intestino poderia frear o desejo por alimentos gordurosos por meio da restituição do sistema de recompensa.
Ivan Araújo ressalta, no entanto, que a infusão de OEA ainda precisa ser testada em humanos antes de que se comece a transformá-la em um medicamento ou em uma técnica de combate à obesidade e à compulsão alimentar. “O interessante será analisar se tratamentos similares em humanos também reverterão as respostas anormais observadas em cérebros de obesos. Outra coisa seria analisar o papel do OEA nos efeitos comportamentais que se seguem aos procedimentos de cirurgia bariátrica”, analisa o pesquisador.
Sistema complexo
Marcio Mancini, diretor do Departamento de Obesidade da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM) e professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), observa que o sistema de recompensa é complexo e que a dopamina pode não ser o único neurotransmissor envolvido na obesidade. Segundo ele, há pelo menos outras 30 substâncias periféricas e centrais envolvidas na regulação do apetite.
O sistema de recompensa também não é o único, já que o canabinoide também pode influenciar o apetite e o ganho de peso. “Esse sistema recebeu esse nome por promover uma sensação parecida com a fome causada após o uso da maconha. Há substâncias parecidas com a cannabis, mas que são endógenas e também participam da regulação do sistema de recompensa”, explica Mancini.
Os especialistas frisam que cada pessoa apresenta um tipo diferente de relação com a comida. Portanto, para cada situação, um tratamento. Há casos de compulsão alimentar, por exemplo, que precisam ser tratados com antidepressivos para o controle da impulsividade. A endocrinologista Adriana Mendes, professora da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp), destaca que, além da influência bioquímica, há a emocional e a psicológica na compulsão por comida.
“É preciso investigar o motivo desse problema. Terapias que trabalhem isso também são desejáveis”, diz. Para ela, todos os estudos são interessantes e geram esperança em novos tratamentos contra o excesso de peso. “A obesidade não é influenciada só pela bioquímica, mas também pela genética, pelo meio ambiente e pelo psicológico. Quando encontramos um obeso, precisamos observar tudo isso.”
Até que um remédio ou um tratamento definitivo seja formulado, a sugestão da especialista é focar no equilíbrio dos hábitos alimentares. “Alimentos que contêm ácido oleico, como o azeite, as amêndoas e as castanhas, liberam o OEA. Durante uma época, passamos pela moda da dieta do Mediterrâneo, que é rica em ômega 9 e estimula a produção desse mesmo lipídio”, ensina.
Mais comum em jovens mulheres
A compulsão caracteriza-se por um descontrole alimentar, com sentimentos de culpa e autorreprovação acentuados. Esses episódios devem acontecer pelo menos duas vezes na semana, por seis meses. O processo terapêutico leva em consideração a quantidade de comida que o paciente diz ingerir, a frequência e os gatilhos desencadeadores. São pessoas com extrema preocupação com a alimentação e perda de peso. Dietas restritivas, uso de medicamentos para o emagrecimento e autoimagem distorcida são fatores desencadeadores desse problema. Os pacientes se sentem feios, desajeitados e acabam tendo problemas na esfera sexual por vergonha do próprio corpo. Restringem a vida social por não se sentirem bem nas roupas. A incidência mundial desses transtornos chega a 0,8% da população, sendo que, desses, 5% têm entre 14 e 18 anos e cerca de 90% dos pacientes são do sexo feminino.”
Luciana Kotaka, psicóloga especialista em transtornos alimentares