“Na época, década de 1980, o padre disse que não batizaria de forma alguma uma criança filha de mãe solteira. Tive um ato de rebeldia, cuspi na cara dele e fui para outra igreja onde consegui batizar a Mariana”, conta. Passado pouco tempo, Francisca voltou a namorar a se casou com aquele que seria o pai da segunda filha, Daniela. Foi ele quem assumiu a paternidade da primogênita. Porém, com o fim do relacionamento, ele se tornou ausente.
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“Novamente, senti o preconceito por estar na condição de mãe solteira. Tínhamos casais de amigos e fui excluída. Ninguém queria ser amiga de uma mulher solteira, de 30 e poucos anos, com duas filhas. Eu era uma espécie de ameaça para as mulheres casadas, como se fosse um alvo para esses maridos. Fiquei sozinha em relação às amizades da época”, lembra.
Era Francisca quem pagava a escola das filhas, com a ajuda financeira de um irmão. Trabalhava em três turnos e ainda fazia uma pós-graduação para oferecer uma melhor qualidade de vida às filhas. “Quando o meu ex saiu de casa, estava por um fio: fiquei completamente endividada. Não tinha dinheiro para comprar o leite do dia seguinte. Com muita força e perseverança, eduquei as meninas. Lutei por tudo que temos hoje.” Consciente de que venceu muitos obstáculos, Francisca sabe que, hoje, mães sem cônjuge têm outra perspectiva. “As mulheres, inclusive, planejam — querem ser mãe, escolhem ter ou não um parceiro. Essa questão é mais bem tratada hoje do que na minha época. Apesar de os meus pais terem me apoiado, especialmente meu pai, porque minha mãe me falava: ‘Minha filha, não desce muito do apartamento não’, ‘Não se exponha tanto, não’. Porque ela queria me proteger do olhar dela e da geração dela. Foi difícil”, resume.
Ao serem questionadas sobre a história da mãe, Mariana, 27 anos, bancária, e Daniela, 23, estudante de psicologia, orgulham-se. Ambas não guardam mágoa do pai, que as visita esporadicamente. Mas sabem que, mesmo no Dia dos Pais, a mãe merece presente e reconhecimento. “E, se não damos, ela fica brava”, brinca Daniela, que, na formatura de ensino médio, dançou a valsa com Francisca. É com ela que, um dia, a jovem pretende entrar na igreja, quando se casar.
Descobrindo as diferenças
Um dos momentos mais importantes vivenciado por mães que optaram por produções independentes é escolher a hora e o que falar para o filho sobre o pai. “Em primeiro lugar, não mentir. Agora, quanto a hora certa de contar, isso vai depender dos questionamentos da criança e do nível de compreensão dela. Por isso, voltamos à importância de um preparo anterior. Porque, se essa escolha for tranquila para a mãe desde o primeiro momento, automaticamente ela vai interferir no modo como a mãe vai explicá-la ao filho”, reforça a psicóloga Helena Montagnini.
Lançado este ano, Descobrindo as diferenças — a família de leãozinho é assim (Ensinamento Editora) conta uma história diferente daquelas encontradas em livros infantis. Escrito pela jornalista e pesquisadora Laísa Freire em resposta às indagações do afilhado, fruto de uma produção independente por meio de reprodução assistida, o enredo descreve o cotidiano de um filhote de leão às voltas com a pergunta: “Quem é meu pai?”. No livro, a mãe — uma pata — responde que um homem generoso doou uma semente para que ela pudesse realizar o sonho de ter um leãozinho. Fora das páginas, no entanto, Talita (nome fictício), 40 anos, amiga de infância da autora, se junta a outras mães que ainda não sabem como ou quando contar aos filhos que eles fazem parte de uma configuração familiar que ainda gera questionamentos.
Motivada por essa dificuldade de Talita, a escritora pensou em personagens e situações que pudessem mostrar ao afilhado, hoje com 3 anos, que entre tantos contextos familiares, o dele não estava excluído. “Se a criança já cresce sabendo a realidade sobre sua origem, e esta é apresentada a ela sem mentiras, ela compreenderá com maior facilidade a própria história. Por isso, esse livro é para todas as crianças, uma vez que cada família é diferente uma da outra: algumas vivem com o pai e a mãe, outras só com a mãe, outras com dois pais, e por aí vai”, descreve a escritora.
Por enquanto, Talita, a mãe do “leãozinho” não faz ideia de como o filho reagirá quando souber sobre sua origem. No entanto, resguardado pelo anonimato determinado por normas éticas do Conselho Federal de Medicina, os doadores só serão identificados mediante um processo judicial, que pode se estender por anos. Para o médico Maurício Chehin, não é preciso criar um bicho de sete cabeças sobre o assunto — quando essas crianças chegarem à adolescência, a sociedade estará mais aberta, mais apta a aceitar configurações familiares alternativas.
“Infelizmente, não temos dados sobre como os adultos, filhos de reprodução assistida das primeiras mães solteiras que procuraram a clínica há duas décadas, se comportaram e se comportam hoje porque não recebemos esse feedback das mães ou deles. Porém, com certeza, as gerações futuras vão ser muito diferentes das atuais. Vai ser muito mais comum encontrar na escola uma criança gerada nesses termos”, aposta Chehin. Roberta (nome fictício), que, assim como Talita, optou pela reprodução assistida, concorda e aposta nesse cenário. “A gente pensa com a cabeça da nossa geração, mas minha filha já tem contato com outros modelos familiares. Quanto a mim, só posso dizer que, hoje, por ter realizado o sonho de ser mãe, sou uma mulher mais feliz.”