— A Barbie.
— Zombaram de você?
— O Vitor pegou a Barbie e mostrou para todo mundo me chamando de mulherzinha.
— Você precisa aprender a se defender, filho...
— Só por que eu brinco de boneca não significa que sou menina. Meu pai não cuidou de mim, por que não posso cuidar de boneca?
— Então é isso que você vai dizer aos colegas da próxima vez.
Joana* é mãe de Francisco*, de 6 anos, e Pedro*, de 7. Desde os 3 anos do caçula, começou a ficar intrigada pelo fato de o menino não se empolgar com qualquer presente que recebia. “Notava que meu filho não sorria e me perguntava: ‘do que ele gosta’? Nessa mesma época da vida do Pedro, tudo virava carrinho na mão dele”, observa a mãe. Aos 4, Francisco e os pais iniciaram um acompanhamento terapêutico. “Eu queria dar a Barbie para ver se ele se alegrava com algum presente, mas a orientação é que nós não podíamos dar a boneca, mas se ele ganhasse de outra pessoa não teria problema, segundo o terapeuta”, relembra Joana.
Foi das mãos de uma coleguinha da escola que o menino recebeu a boneca no dia do aniversário. Joana conta que a mãe da garotinha se aproximou constrangida explicando com todo o cuidado que a filha insistiu muito para que aquele fosse o presente. Despachada, Joana tranquilizou a outra mãe e, finalmente, Francisco foi agraciado com o brinquedo que tanto queria.
Para Francisco, o que existe é a vontade de brincar com a boneca. Já para muitos adultos, e até para as crianças socializadas por eles, o interesse do garoto causa estranheza e desperta questionamentos sobre o significado desse comportamento.
Em contraponto ao fatalismo de rótulos precipitados, o professor de psiquiatria infantil da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Arthur Melo e Kummer, provoca: “se você pudesse imaginar uma máquina em que as pessoas pudessem entrar e sair como alguém do sexo oposto, quantas pessoas entrariam por curiosidade?”, pergunta.
O especialista cita dados de pesquisas realizadas nos Estados Unidos que mostram que a curiosidade ou interesse em ocupar o lugar do outro gênero é mais comum nas meninas do que nos meninos durante a infância. “Varia entre 2 a 4% no caso dos meninos e entre 5 a 10% de meninas”. Na adolescência, o desejo de “bisbilhotar” o gênero oposto também prevalece entre as garotas. “Entre os meninos fica em torno de 10% e, nas meninas, a incidência é de 20%”, completa. Para Arthur, é uma frequência relativamente alta de, em algum momento, desejar pertencer ao sexo oposto. “Isso não é patológico, existem vantagens e desvantagens de ser de cada gênero”, observa.
O outro gênero: mistério e curiosidade
“Ele não pode confundir o gênero. Precisamos dar a certeza ao Francisco de que ele é um menino. Desde que ele entenda quem ele é, poderá fazer a escolha que quiser”, sentencia Joana. Segundo ela, o filho se identifica mais com o universo feminino. “Minhas amigas brincam: ‘ele é você colorida’. É até aflitivo”, conta. Em função da profissão, a belo-horizontina precisa viajar muito e Francisco ficava mais sob os cuidados do pai. “Ele falou cedo, a evolução da linguagem dele é absurda... O Francisco sempre se expressou com muita clareza e autenticidade e uma das coisas que ele me disse em um retorno de viagem foi: ‘você ainda é da nossa família?’”, relembra. Em outra ocasião, o pequeno também soltou: “mamãe, você mora nessa casa ainda?” A mãe chegou a imaginar que as ausências frequentes tivessem relação com o comportamento do filho, hipótese que depois descartou. “Eu voltei a ficar mais em BH e ele continua com esse gosto”, afirma Joana.
A mãe conta que aos 4 anos “ele enlouqueceu com a figura da sereia. Tudo era a sereia, cabelo tem que ser grande, o caderno rosa. Ele imitava cantoras e canta muito bem, desenha lindamente e escreve muito bem. O que ele vai ser eu não sei, mas ele representa a mulher em tudo”, observa. De uma amiga da mãe, Francisco ganhou a Barbie Sereia que precisou vir de fora do Brasil, já que por aqui não se vendia ainda. “Respeito a sensibilidade dele, mas trato essa Barbie como qualquer outro brinquedo dele ou do meu outro filho”, diz ela.
Joana conta uma história que aconteceu na escola que revela a personalidade autêntica do filho: “a professora me contou que estavam preparando a encenação de uma peça de teatro e escolhendo os papeis. Ela perguntou quem queria fazer a madrasta e o Francisco respondeu empolgado “eu, eu”. As coleguinhas da turma retrucaram argumentando que ele não poderia fazer a personagem porque era um menino. A educadora, tentando mediar a situação, sugeriu então que a personagem fosse mudada para padrasto. Foi então que Francisco retrucou: “então eu não quero” e foi para o fundo da sala.
“Queremos fortalecê-lo porque ele já se magoou com zombaria”, afirma a mãe. Apesar de Francisco já ter verbalizado que preferia ter nascido menina, a mãe lembra que ele perdeu a empolgação com a boneca como já deixou de lado outros brinquedos, comportamento comum da infância. O pequeno até se “livrou” da primeira Barbie que ganhou passando o presente para uma coleguinha, mas não sem antes customizá-la. “Ele mudou o cabelo e com saquinhos de pipoca fez uma roupa nova. Eu não vi, mas meu marido disse que a boneca ficou sensacional”, conta.
Da boca do filho saem muitas frases de efeito e uma que Joana gosta muito é: “Eu não quero ser o Clodoaldo Valério, mãe”, se referindo ao personagem interpretado pelo ator Marcelo Serrado em uma novela. Ela também ouviu da professora do filho que o menino não é lembrado na turma como alguém que gosta de brincar de boneca, mas como quem lê melhor, escreve melhor, desenha melhor e canta melhor.
O interesse e flerte com o outro gênero na primeira infância pode ou não significar um comportamento que vai seguir até a adolescência e a vida adulta. Há situações, entretanto, em que o desconforto e não aceitação do corpo, desde os primeiros anos de vida, é tão intenso que indica a existência de uma condição irredutível.
A história do garotinho norte-americano de 6 anos Coy Mathis, que se identifica como menina, ganhou repercussão internacional quando os pais decidiram denunciar a escola que passou a não permitir que ele utilizasse o banheiro feminino. A família divulgou imagens da criança que mostram sua aparência claramente feminina. Os pais dizem que desde os 18 meses ele age como se fosse uma menina. Na imprensa, a mãe relatou que enquanto o outro filho só queria saber de dinossauros, Coy brincava apenas com bonecas. Segundo ela, aos 4 anos ele falou que havia algo errado com seu corpo.
Para Arthur Melo e Kummer, a identidade de gênero é um tabu. “Não é raro aparecerem pais que procuram terapeutas para tentar corrigir um comportamento, como se tivesse alguma coisa errada”, afirma. No entanto, o professor da UFMG admite que precisa ser muito bem resolvido para encarar dessa forma. “Se o menino ou a menina tiverem uma aceitação em casa é muito melhor para eles que terão que enfrentar muito preconceito”, diz.
Disforia de gênero
A quinta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) foi lançada este ano. Conhecido como a bíblia da psiquiatria, o roteiro é elaborado pela Associação Americana de Psiquiatria (APA) e usado como referência por profissionais de todo o mundo e também pela Organização Mundial da Saúde (OMS). A edição não classifica mais como transtorno a insatisfação da pessoa com o sexo com o qual nasceu. O termo utilizado é disforia de gênero, ou seja, a angústia que sofre aquele ou aquela que não se identifica com o corpo.
“Essa manifestação muito acentuada de um desconforto com o gênero pode já começar a acontecer na primeira infância. Não seria exatamente com o gênero, mas com o sexo. A criança não aceita a forma do corpo dela”, explica a professora de medicina da Universidade de São Paulo (USP) e coordenadora do programa de Estudos em Sexualidade da mesma universidade, Carmita Abdo.
Ela explica que o desconforto é com os genitais, já que uma criança ainda não tem os outros atributos que definem um gênero. “O sexo é o anatômico e o gênero é o conjunto de características que identifica a pessoa. A partir de 3, 4 anos a insatisfação já começa a ser percebida pelos pais, professores e amiguinhos. A criança não aceita porque não se considera pertencendo ao sexo biológico”, afirma.
E é quando não existe a compatibilidade entre o sexo biológico e o psicológico que a literatura médica cunha o termo disforia de gênero. “É irredutível, o inconformismo é intenso e pode ser realmente necessário trocar de sexo. A situação vai tomar conta da vida dessa pessoa de forma abrangente, não é de vez em quando que ela pensa nisso, é o tempo todo pensando nisso e a pessoa não abre mão de consertar essa situação anômala que a natureza cometeu. Ela quer corrigir esse erro da natureza. O sexo não corresponde à forma como a pessoa se identifica. Esse é o transexual”, explica Carmita Abdo.
Os sinais são incessantes
Desde a mais tenra idade, o ser humano pode manifestar a necessidade de ser do gênero oposto e alguns sinais podem ser observados sem que isso queira necessariamente dizer que a criança vá querer mudar de sexo no futuro, de acordo com a professora. Caso seja, a classificação é de transexual primário. Ela cita alguns exemplos como o do menino que, ao vestir um short, gira a roupa para o lado contrário para que não tenha abertura na frente, mas ressalta que o comportamento precisa ser incessantemente repetido. “Não querer cortar o cabelo, desejar pintar as unhas, usar um sapato de salto podem ser motivos para se divertir. Não é uma atitude isolada que deve alarmar um pai ou uma mãe. É todo um conjunto de atitudes que faz pensar que um menino ou uma menina tem a incompatibilidade”, observa. O transexual secundário é essa manifestação na adolescência.
“Se a família percebe em casa algo que é superadequado se a criança fosse do sexo oposto e isso é uma constante em todas as atitudes e é impossível modificar, nos leva a conjecturar que seja um transexual”, pontua Carmita Abdo. O diagnóstico é melindroso e talvez por isso o Brasil seja considerado no contexto mundial como conservador. Apesar de o país ter reduzido a idade para a cirurgia de troca de sexo - que de 21 anos passou para 18 depois de dois anos de acompanhamento obrigatório de um psicoterapeuta - as opções de tratamentos anteriores à puberdade ainda não são aceitas. “Cada país tem uma normatização. Em alguns, o trabalho de “correção” começa antes da puberdade, pois é nessa fase que vão se estabelecer as características sexuais secundárias. Ou seja, na hora que o menino ou menina iria começar a produzir um hormônio, dão o hormônio do sexo anatômico oposto”, explica Carmita.
Por aqui, é proibido começar a dar hormônio para modificar a forma como o indivíduo vai apresentar os caracteres sexuais secundários antes que ele o produza. Os efeitos, por exemplo, seriam o de bloquear o crescimento das mamas ou evitar o surgimento da menstruação por meio de hormônios masculinos no caso de meninas.
O professor da UFMG Arthur Melo e Kummer diz que os EUA têm experiências interessantes de aumentar a janela de transição para a identidade de gênero com o uso de bloqueadores de entrada de hormônios na adolescência, fase em que aumenta o mal-estar com o sexo biológico, “A criança é mantida na infância por um tempo um pouco maior para estender também o tempo de decisão”, explica. Nesse período, segundo ele, poder-se-ia permitir que a criança experimentasse como é ser do sexo oposto. No entanto, ele ressalta o quanto é difícil para os pais aceitarem essa proposta. “É uma mudança da vida familiar. Imagina isso ampliado para todas as relações dessa família?”, questiona.
Carmita Abdo observa que a mudança recente na redução da idade para que a cirurgia possa ser feita é importante. “O Brasil adota uma postura de mais cautela porque o diagnóstico precisa ser muito bem feito. Os efeitos da administração de hormônios podem ser revertidos. A cirurgia não. Não dá para voltar atrás”, diz.
“Pessoalmente acredito que nós estamos nos preparando para lidar com essas questões que são muito específicas e delicadas. À medida que vamos criando mais condições de lidar e trabalhar com o tema - sem que nenhum ônus ocorra – os órgãos reguladores que estão sensibilizados para essa proposta vão liberar a administração de hormônios antes da puberdade. É uma tendência”, afirma ela.
Como os pais podem ajudar
Para a professora da USP, quando os pais percebem que não é possível educar a criança de acordo com o sexo anatômico é o momento de parar para que a situação seja melhor entendida. Tentar incentivar essa criança para o outro lado não deveria ser uma alternativa porque, segundo a especialista, se ela realmente for um transexual os estímulos não vão resultar em nenhuma mudança de comportamento. “Ela não vai deixar de aceitar o seu sexo porque o ponto é justamente esse: ‘não aceito o meu corpo’. Por isso, é uma questão de identidade de gênero”, reforça.
“O mais adequado é que esse menino ou menina seja observado com bastante critério profissional e também especializado para se confirmar o diagnóstico e orientar a família sobre o que precisa ser feito”, alerta Carmita Abdo. Ela diz que conforme a criança vai se desenvolvendo, novos elementos vão aparecendo e ela vai dirigir suas atitudes para se apresentar como alguém do outro sexo.
“Não é só o pai e a mãe que precisam saber que essas pessoas existem e que precisam ser respeitadas. A sociedade também precisa ser educada. Por que hoje se fala mais nisso? Sempre houve transexuais, mas eles viviam reclusos e sequer se manifestavam. A forma de lidar com eles era ajustá-los, mas hoje se sabe que não é eficaz, que gera muito sofrimento”, pondera Carmita.
“Estamos (os profissionais) nos aprofundando mais, discutindo mais o tema, o assunto tem entrado mais no cotidiano à medida que nos instrumentalizamos para uma maior precocidade de ação. A sociedade também vai acumulando mais conhecimento e conversando com mais propriedade sobre isso”, pontua Carmita.
Arthur Melo e Kummer afirma, entretanto, que a curiosidade com o gênero oposto é muito mais comum que o incômodo e a irritabilidade com o próprio gênero. A disforia de gênero é um fenômeno raro. Segundo ele, na Holanda, que tem um programa avançado de tratamento da identidade de gênero, o país trabalha com a incidência de um caso para cada 10 a 30 mil pessoas. Outro dado que ele cita é do National Health Service (NHS), no Reino Unido: a incidência é de um caso para cada 11.500 pessoas.
Para Carmita Abdo, se os pais suspeitam que o filho ou a filha temdisforia de gênero o primeiro passo é procurar os órgãos públicos autorizados a avaliar e orientar as famílias. Segundo ela, todo o Brasil, através do Sistema Único de Saúde (SUS), oferece o atendimento. “Os pais serão melhores orientados por uma equipe multiprofissional. Às vezes é um equívoco”. Por essa razão, a especialista não recomenda que a escola seja comunicada precocemente.
A médica diz ainda que existem outras possibilidades de diagnóstico que dão a impressão que a criança é transexual. Ela cita, por exemplo, o intersexo e o transtorno de duplo papel.
Não é doença
Apesar da mudança na DSM-5, o Brasil ainda segue a Classificação Internacional de Doenças (CID-10) da Organização Mundial de Saúde. O documento fala em transtorno de identidade de gênero. Carmita Abdo lembra que é uma classificação de 1992 e que existe uma expectativa que na CID-11 a associação com doença seja ultrapassada com as novas diretrizes. “Alguns países não falam mais em doença e consideram uma característica. Existe um pleito grande para se considerar como uma condição”, completa.
A professora da USP diz que apesar de as pesquisas não serem conclusivas, existem dois apontamentos para a causa da transexualidade. “Tudo indica que existem estruturas cerebrais nos transexuais que correspondem ao do sexo oposto que o indivíduo nasceu. Isso teria causas diversas que também vêm sendo estudadas: as genéticas e as congênitas, que acontecem durante a gestação”, diz. No caso da congênita, Carmita Abdo explica que uma inversão da carga hormonal aconteceria durante a gestação. “Se o bebê recebe uma carga de hormônios femininos, vai feminilizar o cérebro da criança”, detalha. Ela lembra que são indícios e não evidências. Segundo ela, há quem não aceita essas teorias e há quem considere que seja uma influência externa.
“Boa parte da sociedade entende a homossexualidade. É a informação que vai levar as pessoas a entenderem a questão de uma forma não preconceituosa e mais do ponto de vista científico, ou seja, que não é uma vontade própria do indivíduo, é algo muito mais embasado na biologia”, encerra a professora da USP.
* Nomes fictícios