“O senhor torce para o Atlético ou para o Cruzeiro?”, pergunto, ao pé do ouvido. “Sou antes de tudo isso, minha filha”, responde com um sorriso nos lábios flácidos. Alfredo Maurício Gonçalves completa 107 anos em agosto. Viu nascer as maiores torcidas do estado e também os grandes acontecimentos do século 20. É, provavelmente, um dos homens mais velhos do estado. Um guardião de histórias que gosta de compartilhar.
Alfredo é uma boa surpresa. Tem cara de brasileiro humilde, trabalhador. É um vencedor. São apenas 332 centenários residentes na capital mineira, 0,01% da população, segundo o Censo 2010. Ultrapassar a marca dos 100 anos requer cuidados, e sorte também. Seis anos atrás, o pedreiro aposentado escapou de uma pneumonia que poderia ter mudado seu curso de vida. Sobreviveu para alegria do filho Benedito, de 75 anos, que o acolheu em casa. “Enquanto ele toma um remédio, tomo sete”, conta o filho.
Não é por acaso que Alfredo e tantos outros centenários, ou às vésperas de se tornar um deles, chegaram até aqui. E não é fácil se despedir de pessoas queridas e permanecer. Ao Bem Viver, Alfredo e outros mineiros de longa data contam as delícias e tristezas de resistir ao tempo, o que viram da vida e o que ainda esperam dela. São histórias emocionantes de quem aprendeu que tempo é, sim, algo relativo. Se é.
Uma vida de conquistas
Centenários relembram momentos da história do Brasil e assistem, com orgulho, às mudanças da sociedade. Por outro lado, alguns se queixam da solidão e da dependência
É lucidez que espanta. A poucos meses de completar 107 anos, Alfredo Maurício Gonçalves comenta as manifestações que tomaram o país. Lembra datas memoráveis de sua vida particular. Dá uma aula de história ao relembrar fatos que marcaram o Brasil e o mundo. Anuncia que recentemente morreu no Japão o homem mais velho de que já se teve notícia. “O rádio não disse sua procedência. Sei que ele morreu e fiquei no lugar dele”, brinca com a idade avançada.
A morte é assunto que não escapa. É destino que não se dribla. As lembranças de uma longa vida sempre terminam no assunto. “Entrei na estrada errada. Não há mais nenhum amigo vivo. Estou aqui só para dar trabalho”, reclama o centenário. Ultrapassar um imaginário limite de vida tem seu preço. Ele se sente só. Lamenta não enxergar e ter perdido a independência. No fim, é tudo esperança de vida.
Alfredo, mesmo com surpreendente saúde física e mental, queria novamente poder admirar a mulher. Palmira, de 91 anos, está mais debilitada que ele e vive com a filha em Itabirito. A primeira mulher e mãe de seus cinco filhos, Maria Izabel, morreu em 1976. A viuvez durou cinco anos. Aos 75 anos, Alfredo se animou a casar-se de novo. “Não gosto de visitá-la. Fico muito triste. Se ainda enxergasse, poderia estar cuidando dela”, comenta.
Mas o sorriso volta ao se lembrar das conquistas da vida. Nascido em 15 de agosto de 1906, em Santo Antônio de Casa Branca, hoje distrito chamado Glaura, nas proximidades de Ouro Preto, Alfredo era o mais velho dos 13 filhos do pai, que também se casou duas vezes. A mãe morreu em 1918, em tempos de guerra, vítima da gripe espanhola. Alfredo tinha 12 anos e precisou ajudar o pai a cuidar da roça de batata e dos cinco irmãos mais novos.
Aos 19 anos, saiu de casa para fazer a vida. Em Nova Lima, foi trabalhar primeiro na mineração e viu nascer as leis trabalhistas. Getulista confesso, lembra-se do progresso da nova legislação. “De repente, passei a ter férias, salário mínimo. Tudo melhorou”, comemora. Mas é o trabalho como pedreiro que lhe dá orgulho. “Em 1929, construí a primeira capela do Barreiro. Também reformei a igreja da minha cidade. Fiz escola. Fiz ponte. Ganhei parabéns de muito engenheiro.”
Dos tempos de hoje inveja a facilidade de se ganhar dinheiro e liberdade. “Melhorou demais. Na minha época tinha muito carrancismo”, evoca mais uma vez a palavra, hoje desconhecida, que significa atraso. “Vigiavam muito a gente. Era tudo rígido. Hoje é mais solto. Queria ter nascido nessa época”, confessa. Mas está feliz com o que viu e viveu. “Tenho 106 anos e nunca devi a ninguém. Não tenho mais sonhos, mas gosto de me lembrar dos lugares onde pisei.”
ESTREIA
Amanhã é seu grande dia, embora pros lados do Bairro Jaraguá a festa tenha começado hoje mesmo, com uma missa na Igreja de Santo Antônio. Helena Diniz, que entrou nesta semana na casa dos 100, está em êxtase. O sorriso fácil escancara a felicidade de ter chegado até aqui esbanjando saúde. Admiradora das rosas, dá um pulo da cadeira de balanço para mostrar seu jardim. É com a mesma energia que vai aos compromissos religiosos.
Ela viu nascer a Pampulha. Mais do que isso: ajudou a construí-la. Foi no armazém da família, na região hoje chamada de Jaraguá e Aeroporto, que o ex-prefeito Juscelino Kubitschek encontrou um parceiro logístico para sua grande obra. Era o marido de Helena, Guilherme Reis da Silveira, que fornecia o material para a construção. O político não saía de sua casa, hoje cheia de fotos dos áureos tempos.
Ali nasceu e viveu Helena nos últimos 100 anos. Mãe de 10 filhos – seis deles vivos –, com 24 netos e 23 bisnetos, a senhora de riso solto é conhecida de toda a vizinhança. E não é de hoje. Seus vestidos ficaram famosos no passado e muita gente lhe pedia um feitio. Era uma costureira de mão cheia e fez questão de cuidar da aparência do marido, que ganhava espaço na sociedade. “Quando nos casamos, disse que não era mais para usar as calças feitas pela mãe”, lembra.
Helena nunca esperou chegar aos 100. Viu quatro filhos partirem, acompanhou mudanças de valores e nem por isso pensa como no século passado. É, sem dúvidas, a tal mulher à frente de seu tempo, que se fala por aí. Divórcio, por exemplo, não é problema algum. “Se não deu certo, o casal tem mais é que tentar ser feliz. O mundo é outro. A população mudou. Acho que tudo está é melhorando”, dá o recado.
Eles estão quase lá
Prestes a completar 100 anos, eles são sinônimo de experiência e vontade de viver. Apesar do passado difícil, os centenários provam que a receita para a longevidade é enxergar a vida de forma positiva
Há poucos meses de entrar na casa dos 100, o tenente-coronel reformado Abílio Gomes Pereira tem um olhar e tanto sobre a Polícia Militar, na qual serviu por mais de 30 anos. Rodeado pelas mulheres de sua vida – filhas, netas, noras, que em muito lembram a mulher Santinha, falecida no início do ano, e a sogra, Amélia, por quem ele tinha verdadeira adoração –, relembra casos conhecidos de todos ali. Outros nem tanto.
“Esse eu não conhecia”, confessa uma das filhas ao ouvir Abílio falar de suas conquistas no tempo de solteiro. “Estava a trabalho em Ponte Nova e uma moça linda da cidade me apresentou para sua mãe como namorado. Fui chegando em Belo Horizonte e já tinha uma carta dela. Rasguei. Já conhecia Santinha e estava gostando dela”, lembra o tempo em que a farda chamava a atenção das moças. E de suas famílias também.
Natural de Costas, município de Belo Vale, é o único vivo dos 13 filhos. Bilico, como é chamado, chegou a BH aos 9 anos, para morar com um irmão. Aos 14, já estava nas estruturas da Polícia Militar. O recruta chamou a atenção cedo e foi subindo de posto. “Estava na guarita quando chegou um comandante e mandei que descesse do carro para se identificar. Meu colega me chamou de bobo. No dia seguinte estava esperando a dispensa, mas ele elogiou meu ato”, alegra-se.
Não são poucas as histórias de bandidos presos e conquistas profissionais. Já tenente, Abílio assumiu a administração do rancho da PM e nivelou a comida de soldados e oficiais. Ganhou vários inimigos. Amigos também. As melhorias que conquistou para a classe incomodaram muita gente e ele foi denunciado como comunista. “Dar comida igual a todos não é ser comunista. É um princípio”, defende. Na época não colou, e Abílio passou 12 dias preso durante a ditadura.
SEM REMÉDIOS
Com pressão de 12 por oito, sem nem um remédio sequer, e uma lista de medicamentos que não é mais que uma vitamina aqui e outra lá, está satisfeito com a vida. Constituiu uma família da qual se orgulha e insiste em deixar para os herdeiros lições que pautaram todos os seus dias. “Estou satisfeito. Todos gostam de mim. Só quero que meus familiares sejam como fui: honesto, trabalhador e respeitoso.”
A recente viuvez deu um novo valor à sua vida. Ele começa aconselhando: “Aproveite a vida. Tem que aproveitar”. Logo abre um sorriso e começa a fazer suas piadinhas. Alguns momentos com Abílio sugerem um dos ingredientes da longevidade: é preciso ser leve, leve. Sobre a proximidade de fazer 100 anos, um susto. “Não. Não tem nada disso não. Eu nasci em 1914”, insiste. É, seu Abílio, então se prepara que contra datas não há remédio. Os 100 estão chegando.