O problema é que nem todos podem se beneficiar dessa medida, e essa decisão só pode ser tomada sob indicação médica. De acordo com estudo feita pela Mayo Clinic – instituição norte-america que é respeitada pela pesquisa e indicação em dietas restritivas, inclusive sem glúten - com a população americana, apenas 20% excluíram a substância da alimentação com orientação adequada.
A pesquisadora brasileira Fabíola Soares demonstrou – em laboratório, com camundongos – que o glúten diminui a utilização das reservas de gordura no organismo, estimula a inflamação no intestino e age de forma a diminuir a tolerância à glicose, favorecendo a hiperglicemia (glicose elevada no sangue). “Embora os resultados das pesquisas sejam promissores, por enquanto a indicação de exclusão do glúten deve ser realizada somente para pessoas com a doença celíaca. Como nutricionista e pesquisadora, defendo que qualquer recomendação deve ser pautada somente naquilo que está comprovado pela ciência”, afirma Fabíola, professora doutora da Universidade Federal da Grande Dourados (MS).
Pessoas com a doença celíaca têm intolerância permamente ao glúten, por não possuírem a enzima responsável pela quebra dessa proteína. Em consequência disso, a ingestão de alimentos com glúten pode danificar as paredes do intestino delgado dos celíacos, causando diarreia, anemia e outras reações agressivas.
A gestora cultura Flávia Leão sabe bem o que é isso. Portadora da doença desde os 2 anos de idade, ela só recebeu o diagnóstico aos 24. Agora, com 28, tem uma nova rotina e muito mais qualidade de vida. “Quando criança, desde que a glúten passou a fazer parte da minha alimentação, tive várias infecções urinárias e feridas na pele. Os primeiro diagnóstico foi de que seria alergia a chocolate”, conta Flávia.
Ela passou a infância andando de calças e roupas de mangas compridas, para esconder as feridas. Algumas acusações de “você está comendo chocolate escondido” depois, a menina chegou à adolescência e o problema foi se agravando. “Vieram a diarreia crônica e as dores abdominais. Eu precisava ir ao hospital três, quatro vezes por anos, com desidratação e perda de potássio; e ouvi dos próprios médicos que estava tentando chamar a atenção”, lamenta Flávia.
Nesse meio tempo, ela tinha que conviver com interrupções constantes das tarefas simples e complexas – seja de uma prova de vestibular ou de uma viagem – para ir ao banheiro. “Era chamada de mimada. Como a doença ficava pior quando eu estava com sistema imunológico baixo, diziam que eu era fresca, passava mal por qualquer coisa. Houve um dia em que fui ao banheiro 17 vezes e conheço várias instalações sanitárias pelo Brasil e pelo mundo”, brinca ela, bem humorada.
Finalmente, um gastroenterologista solicitou o exame de sangue e a biópsia do duodeno, que comprovaram a doença celíaca. “Duas semanas depois, a diarreia parou. Hoje, me considero saudável e deixei de achar que eu sou diferente das outras pessoas”, comemora a gestora. Flávia desenvolveu algumas estratégias para adaptar-se. Quando vai fazer uma viagem mais longa, avisa a companhia aérea de sua condição. Se o hotel não oferece opções de café da manhã sem glúten, ela carrega o lanche. “Como não tenho intolerância à lactose, aqui em Minas Gerais é muito fácil me virar. Posso comer pão de queijo e outras comidas típicas do estado. O problema é quando estou fora daqui. A alimentação sem glúten é considerada uma das mais caras do mundo”, exemplifica ela.
Fabíola explica que o que há de mais concreto em termos científicos é a relação do glúten com a doença celíaca. "No entanto, pesquisas já em estágios avançados relacionam a ingestão dessa proteína com outras doenças autoimunes, tais como o diabetes tipo 1 e a artrite reumatoide. Em relação à obesidade, existe somente o meu trabalho publicado, que é com animais”, informa a especialista. “Acredito que quando houver pesquisas concretas em relação às outras doenças essa exclusão também possa ser indicada na prevenção e tratamento de outras doenças, mas tal possibilidade ainda está em estudo”, conclui Fabíola.
Evidências
Na dissertação “Efeitos de dieta isenta de glúten em modelo experimental de obesidade”, realizada em 2010 na Faculdade de Farmácia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Fabíola observou durante oito semanas as alterações físicas de dois grupos de camundongos: um com alimentação rica em glúten de trigo e outro cuja dieta não continha a proteína. O grupo que não ingeriu glúten teve ganho de peso corporal 11% menor, ganho de adiposidade (gordura abdominal) 32% menor, índice de glicose no sangue 24% menor e menor inflamação no tecido adiposo, o que ajuda a diminuir a concentração de glicose no sangue.
O objetivo foi avaliar se a exclusão do glúten da dieta poderia ter algum papel na prevenção da obesidade e de suas complicações metabólicas. “O estudo clínico, ou seja, com humanos, já está em andamento. Além disso, alguns estudos complementares com animais estão sendo realizados”, explica Fabíola. Ela lembra que a dieta, isoladamente, não impede a obesidade: a alimentação equilibrada e a atividade física são os principais fatores de prevenção do excesso de peso. “Os estudos ainda estão apenas na fase inicial. As pessoas precisam ter em mente que não existe milagre, mas sim uma série de mudanças alimentares e de estilo de vida que podem contribuir para um peso corporal adequado e para uma vida mais saudável. Uma dessas mudanças pode ser a retirada do glúten, mas ainda há um longo caminho a trilhar nesse sentido”, resume a pesquisadora.
Não contém glúten
“Quando descobri que essa frase – não contém glúten – presente em vários produtos do supermercado era feita para mim, fiquei muito feliz e aliviada, me senti amparada”, conta Flávia Leão. Desde 1992, a lei federal nº 8543 (complementada pela lei 10.674, de 2003) obriga indústrias alimentícias a indicar em suas embalagens a presença ou não da substância. O objetivo é permitir que os celíacos retirem o glúten de trigo de sua alimentação diária.
Embora a doença não tenha cura, ela pode ser controlada. Para substituir o trigo, o celíaco pode optar pelas farinhas de milho e mandioca, fubá, polvilho, quinoa, fécula de batata, amido de arroz e diversos outros produtos, que estão se aperfeiçoando com o tempo e oferecendo opções mais saborosas a quem tem a restrição alimentar.
“Na primeira vez em que fui ao supermercado depois do diagnóstico, até chorei. Só podia comprar arroz, feijão e frutas. Só depois que fui descobrindo outras opções, lojas no Mercado Central de Belo Horizonte, estabelecimentos especializados... A adaptação foi bem rápida depois disso”, explica Flávia.
Ela buscou apoio também na Associação dos Celíacos do Brasil (Acelbra). “No começo, fiquei preocupada. Será que sou tão diferente do resto da humanidade assim? Mas fui muito bem recebida pela associação e vi que era só uma questão de adaptação. E as outras pessoas ainda desconhecem a doença, daí essa ideia errada de que é frescura”, afirma. “Às vezes, eu pergunto nos restaurantes se um peixe, por exemplo, é feito com farinha de trigo. O atendente diz que não é, mas quando vou verificar, é farinha de pão, que dá no mesmo”, aponta Flávia.
A gestora cultural mora com o irmão e desenvolveu maneiras de driblar a contaminação dos alimentos – que acontece inclusive pelo ar. “Cada um tem uma misteira para fazer sanduíches e os armários também são separados. Os alimentos com e sem glúten não podem ir ao forno juntos. Mas eu faço uma pizza sem glúten que é até melhor do que a original. Aprendi temperos diferentes e novas receitas”, garante ela.
Flávia acha que, se a pessoa tiver uma relação saudável com a comida, o diagnóstico não atrapalha tanto. “Não pode ser compulsivo. Quem é celíaco não tem essa de 'vou comer só um pouquinho'. Se tiver glúten, não pode. No início, eu sentia falta de ir à padaria, mas a melhora foi tão grande na minha vida após o diagnóstico que isso passou. Mas eu conheço celíacos que bebem cerveja e preferem pagar o preço. E esse preço pode ser alto, obrigando a retirar parte do intestino, inclusive”, alerta Flávia.
Contém glúten
Mas para que serve o glúten? Fabíola explica que a substância pode ser encontrada em diversos tipos de cereais, mas principalmente no trigo, centeio, cevada e aveia. “Por enquanto, as pesquisas abrangem mais o glúten de trigo, já que ele tem o maior potencial para causar alterações no organismo. Além disso, ele é, dentre os cereais que possuem glúten, o mais consumido”, explica a pesquisadora.
O glúten de trigo é o grande responsável pela capacidade de fermentação que dá liga à massa, sendo essencial para fazer o alimento crescer e manter seu formato depois de pronto. Por outro lado, é uma proteína de baixo valor biológico, ou seja, não tem todos os aminoácidos que precisamos. “Portanto, em princípio, sua retirada da dieta não apresenta risco para a saúde. No entanto, uma avaliação criteriosa deve ser realizada em indivíduos vegetarianos, por exemplo, que usam o trigo como uma de suas fontes de proteína”, ressalta Fabíola.
Aos apressadinhos e obcecados pela perda de peso, ela lembra: “a exclusão da substância com o propósito de prevenir o ganho de peso só deverá ser recomendada quando os estudos com humanos comprovarem seu benefício”, conclui a pesquisadora.