O Distrito Federal é o único estado brasileiro a oferecer a vacina. No entanto, a imunização gratuita é só para meninas nascidas entre 2000 e 2003. Atualmente, existem dois tipos disponíveis no país e aprovados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa): a bivalente e a quadrivalente. A opção adotada pelo DF protege as meninas contra os tipos 6, 11, 16, 18, que são os mais comuns entre as mais de cem variedades existentes do vírus, que são transmitidos sexualmente no contato pele com pele ou pele com mucosa.
Pouquíssimas cidades do país também oferecem as três doses da quadrivalente gratuitamente. Belo Horizonte tentou, mas recebeu o veto do prefeito Marcio Lacerda. O Rio de Janeiro protestou e a expectativa geral é que o Ministério da Saúde (MS) implante a vacinação em 2014. Em nota ao Saúde Plena, o MS divulgou que a introdução da vacina contra o HPV no Sistema Único de Saúde (SUS) está em fase final de estudos. “A inclusão de novas vacinas leva em consideração vários critérios que devem ser cumpridos para que a implantação aconteça de forma estruturada. No momento, um grupo técnico intersetorial discute a estratégia que poderá ser adotada pelo SUS caso ela seja aceita no calendário nacional de vacinação”, declarou.
Independentemente disso, especialistas brasileiros têm refletido sobre as experiências já adotadas em território nacional. Uma das questões é por que vacinar apenas meninas se a bula da quadrivalente é indicada para ambos os sexos. Outro ponto de discussão é a faixa etária contemplada, já que o laboratório que produz o medicamento indica a aplicação para pessoas entre 9 e 26 anos.
Para ajudar na compreensão do impacto de uma ação de saúde pública, é importante destacar os números que apontam a relação entre o HPV e a incidência de alguns tipos de cânceres. “No Brasil e em outros países em desenvolvimento, quase 15% dos cânceres registrados são causados pelo HPV”, destaca a coordenadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia das Doenças Associadas ao HPV e professora das faculdades de medicina da Universidade de São Paulo (USP) e da Santa Casa de São Paulo, Luisa Lina Villa.
Segundo dados do instituto, o vírus é responsável por 100% dos casos de câncer de colo de útero contra 50% dos casos de câncer de pênis. Segundo Villa, o câncer de colo de útero afeta pelo menos 17 mil mulheres ao ano no Brasil. “Nós acreditamos que pelo menos 50% dessas mulheres morram”, afirma. Já o câncer peniano pode levar à amputação e morte em casos mais graves. Segundo projeções do Instituto Nacional do Câncer (INCA), são registrados em média cinco mil casos da doença anualmente. Deste total, mil resultam em amputações totais ou parciais, de acordo com o Data/SUS. Nos dados mais recentes do banco de dados do INCA, referentes a 2010, ele também aparece como responsável por 363 mortes.
Caso Austrália
A presidente da regional Rio de Janeiro da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIM-RJ), Isabella Ballalai diz que a Austrália é modelo na implantação da imunização gratuita e iniciou a vacinação apenas de meninas, em 2006. Apesar de atualmente a campanha imunizar crianças de ambos os sexos entre 12 e 13 anos, em 2007 e 2008 a campanha contemplou apenas meninas de 13 a 26 anos. O país acompanha o impacto da campanha de imunização com estudos recorrentes. “Os resultados mostraram que os meninos da mesma faixa etária das meninas vacinadas ficaram protegidos para as verrugas genitais. É o que chamamos de proteção de rebanho: vacinando as meninas, protegemos também os meninos”, explica. Um dado curioso é que os garotos que fazem sexo entre si ficaram sem a proteção. “Os homossexuais não ficaram protegidos e depois da constatação, o país adotou também a vacinação dos meninos”, conclui.
Ela critica a opção do Distrito Federal de escolher uma faixa etária tão pequena, entre 11 e 13 anos. “Vacinando só essas meninas não vai proteger os meninos”, diz. Por isso, defende a vacinação em larga escala e de alta cobertura para alcançar a proteção de rebanho. Em contrapartida, acredita que, no caso do Brasil, não faz sentido partir para uma campanha que contemple os dois gêneros. “O mundo inteiro se voltou para o câncer de colo de útero, ele é o tipo que mais mata no Brasil depois do de mama”, explica. Do ponto de vista individual, a especialista salienta que é importante que os meninos procurem uma clínica privada. O preço médio da vacina quadrivalente em Belo Horizonte de cada dose é de R$ 370.
A especialista recomenda a idade de 9 anos por causa da adesão. Segundo ela, é mais fácil abordar a vacina com os pais de meninas mais jovens que não precisarão entrar em detalhes com elas sobre o fato de a contaminação pelo HPV estar relacionada a doenças sexualmente transmissíveis. Ela faz questão de ressaltar também que as meninas com menos de 15 anos respondem melhor à vacina.
“Em todo o mundo, a idade varia de acordo com autorização do órgão responsável em cada país. Também quando um estado ou cidade oferece gratuitamente a vacina, a administração pública pode definir que a liberação será para uma determinada faixa etária. De qualquer maneira, há um consenso que a vacina para HPV pode e deve ser aplicada precocemente em razão da melhor resposta imunológica nesta idade, de preferência em pacientes sem contato sexual prévio”, explica o ginecologista-obstetra João Tadeu Leite que desde 1985 trabalha com adolescentes.
O epidemiologista brasileiro Eduardo Franco é diretor da Divisão de Epidemiologia do Câncer do Canadá e chefe Departamento de Oncologia da McGill University e explica por que a província de Quebec adotou a vacina a partir dos 9 anos. “Somos pioneiros no mundo em adotar duas doses começando mais cedo. A diferença está na resposta imunitária. Vacinar uma criança, alcançamos uma resposta enorme de produção de anticorpos e, com a idade, essa resposta diminui”.
Um estudo canadense comprovou recentemente que meninas que tomaram apenas duas doses ficaram imunizadas como as que tomaram três. “A pesquisa comprovou a equivalência da proteção. A questão que fica é se com duas doses a resposta é tão duradoura quanto as três doses. Isso só o tempo vai dizer, mas os estudos mostram que a duração dessa resposta pelo menos até 12 anos é equivalente”, salienta Eduardo Franco.
Dessa forma, o mais importante é vacinar antes do início da atividade sexual e isso gera um preconceito porque, de acordo com Ballalai, os pais podem achar que a imunização pode significar liberar os filhos para fazerem sexo. No entanto, alguns estudos mostram que existem meninas infectadas antes da primeira penetração.
Muita gente também acredita que se a menina ou menino já perdeu a virgindade, a vacina não tem efeito. Esse é um raciocínio errado que tem correspondência na ideia de que pessoas com mais de 26 anos não têm razão para se proteger. Tanto a bivalente quanto a quadrivalente protegem o organismo de mais de um vírus. Se uma mulher de 30 anos, por exemplo, já tiver sido contaminada com um vírus, poderia se proteger de outros três no caso da quadrivalente. Outro ponto é que o vírus pode afetar duas vezes a mesma pessoa. Nesses casos, vale uma consulta com o médico de confiança para recomendar ou descartar o procedimento. Ballalai alerta ainda que a vacina não elimina a necessidade do exame preventivo.
Experiência no DF
Pioneiro na vacinação contra o Papilomavirus Humano entre os estados brasileiros, o Distrito Federal alcançou, na primeira dose, a adesão de 92% das meninas nascidas entre 2000 e 2003 e matriculadas nas escolas públicas e particulares. O sucesso da campanha, segundo a gerente de Vigilância Epidemiológica e Imunização da Secretaria de Vigilância e Saúde do DF, Cristina Segatto, se deve ao fato de as crianças terem sido imunizadas dentro das escolas. Das 62.860 meninas, 57.938 receberam a autorização das famílias para receberem a imunização. Segatto conta que a gerência de câncer no Estado conversou com as lideranças religiosas antes de a campanha começar para esclarecer a importância da proteção e tentar minimizar os preconceitos existentes com a manifestação do vírus que tem relação com DST. A opção foi pela quadrivalente que protege contra a verruga genital, câncer de colo de útero, pênis e ânus.
Segatto explica por que a campanha não incluiu meninas de 9 e 10 anos como é recomendado pelo laboratório que produz as três doses da vacina escolhida: “a iniciação sexual no DF gira em torno de 14 e 15 anos. Definimos uma idade mais próxima dessa iniciação”. Sobre a questão do gênero, afirma que estudos recentes publicados na Austrália mostraram que protegendo as meninas, o país reduziu a transmissão viral e alcançou a redução das verrugas genitais nos meninos. Ela ainda diz que o foco da campanha é a redução da incidência do câncer de colo de útero e das verrugas genitais. “Quando se pensa em saúde coletiva, leva-se em consideração a situação epidemiológica e os recursos financeiros e operacionais. Em 2012, 90 mulheres morreram de câncer de colo de útero no DF”, argumenta.
Cristina Segatto diz ainda que é regra priorizar: “quando se fala em saúde pública, não vacinamos a população inteira. Todo mundo pode pegar gripe, mas tem um grupo prioritário”. Ela explica que as políticas de saúde têm um olhar de hoje para o futuro e que apesar de a bula da vacina do laboratório produtor recomendar a vacina até os 26 anos, a questão da efetividade é igual em qualquer idade. “Porém, na medida em que o indivíduo é mais velho, a chance de ele ter contato com o vírus é muito maior”, salienta.
O desafio agora é manter a cobertura na segunda dose. “As vacinas que têm segunda, terceira dose e reforço costumam perder adesão. Uma vacina com quatro vírus, por exemplo, na primeira dose tem eficácia maior para um e na segunda vai ser maior para outro. Não é à toa que se faz três doses e é importante que se tome todas”, recomenda Segatto.
O Distrito Federal também vai elaborar uma pesquisa para entender os motivos que levaram alguns pais a não autorizarem a vacinação em suas filhas. “É muito importante ter essa resposta até servir de referência para os outros estados que queiram implantar a vacinação gratuita”, encerra a gerente de Vigilância Epidemiológica e Imunização da Secretaria de Vigilância e Saúde do DF.
A vacina
A vacina quadrivalente foi a primeira a ser disponibilizada no Brasil, em 2007, pouco mais de um ano depois de ela ser aprovada pela primeira vez, nos Estados Unidos. Segundo o chefe do setor de DTS da Universidade Federal Fluminense (UFF), Mauro Romero Leal Passos, a vacina imita o vírus, incitando o organismo a produzir anticorpos capazes de combater o HPV real quando esse for introduzido no corpo. “Ela é como a casca do vírus e apresenta ao organismo a aparência dele. A partir daí, ele desenvolve uma grande resposta de anticorpos contra essas 'cópias' do vírus presentes na vacina. Você cria uma resposta anterior à entrada do vírus real no corpo”, explica.
Os resultados têm sido encorajadores, segundo ele. “O que se viu é que as pessoas que a tomam têm proteção próxima de 100% comparado com pessoas que não tomam a vacina. Por meio dela, o organismo não deixa o vírus se multiplicar”. A imunização acontece em três doses, em um intervalo de seis meses e, de acordo com Passos, promove uma proteção válida por nove anos.
A variedade que é mais frequentemente responsável pelo desenvolvimento de câncer é a 16. No Brasil, ela é a principal causa de câncer de colo de útero, de ânus e de pênis, além de ser comumente relacionada com os cânceres de vagina, vulva e pescoço (orofaringe). O tipo 18 também é associado com a incidência de câncer em todas essas partes do corpo. “Junto do tipo 16, eles são envolvidos em mais de 70% dos cânceres causados por HPV”, destaca Passos.
Os dados atuais referentes à eficácia da vacina comprovam uma diminuição na incidência de verrugas genitais na população imunizada. O câncer, no entanto, demora mais tempo para se desenvolver e ainda não existem estudos que comprovem os efeitos da vacina no aparecimento da doença. “Mas existem dados iniciais da diminuição da lesão precursora de câncer, então isso é um bom indício de que ela está funcionando no mundo real”, comenta a coordenadora do Instituto HPV.