Saúde

China desenvolve vacina inédita contra mal da primeira infância

Cientistas testaram em crianças uma imunização para conter o principal vírus causador da síndrome mão-pé-boca e detectaram 90% de proteção. A descoberta pode reduzir as internações decorrentes de complicações da doença

Paloma Oliveto

Médico atende criança com sintomas da síndrome mão-pé-boca: em 2008, uma cepa letal do vírus EV-71 matou mais de 20 crianças
Um surto misterioso emergiu em 14 províncias do Camboja, na Ásia, em junho do ano passado. Crianças de diferentes regiões do país apareceram com febre alta, brotoejas e ulcerações na boca, nas mãos e nos pés. Os sintomas evoluíram para quadros mais graves, como encefalite, meningite e paralisia semelhante à provocada pela poliomielite. Das 78 pequenas vítimas que deram entrada nos hospitais, 54 morreram. Todas tinham menos de 3 anos.


Infectologistas isolaram um micro-organismo encontrado nas amostras de 31 pacientes e constataram que não se tratava de influenza, Nipah ou Sars, como previamente imaginaram. As crianças haviam sido contaminadas pelo EV-71, um enterovírus descrito ainda nos anos de 1970, mas para o qual não existem, até hoje, nem vacina nem tratamento. Agora, cientistas chineses anunciaram, em um artigo publicado na revista The Lancet, que descobriram a imunização contra ele. O índice de sucesso dos testes, realizados em humanos, foi de 90% depois de um ano.

Enterovírus são um grupo de agentes patógenos altamente infecciosos e transmitidos de pessoa para pessoa. Eles se alojam no intestino, mas os estragos atingem diversos órgãos, incluindo o cérebro. Embora possa provocar danos neurológicos, o EV-71 está mais associado à síndrome mão-pé-boca, de gravidade moderada. Trata-se de um conjunto de sintomas que surgem nessas partes do corpo e podem ser confundidos com outras enfermidades, como catapora e alergias dermatológicas (veja infográfico). De circulação global, o EV-71 tem provocado surtos principalmente na Ásia, por motivos desconhecidos. Em 2008, uma forma letal da síndrome, que no geral passa sozinha em uma semana, matou mais de 20 crianças e infectou 1,5 mil no leste da China, levantando suspeitas de que ela poderia ser uma nova Sars.

As proporções do surto chinês foram menores do que se acreditava, mas o país continua em alerta, tanto que foi lá que se desenvolveu a primeira vacina contra o vírus. “Somente na década passada, doenças associadas ao EV-71 atingiram mais de 6 milhões de pessoas em todo o mundo, com pelo menos 2 mil mortes”, relata Feng-Cai Zhu, pesquisador do Centro de Controle e Prevenção de Doenças de Nanquim, principal autor do estudo publicado na The Lancet. “Esse vírus está por trás de diversas doenças, incluindo a síndrome mão-pé-boca e a encefalite, e pode deixar sequelas graves nos sobreviventes. Para nós, havia urgência de se encontrar uma vacina principalmente porque ele contamina crianças muito pequenas, algumas delas com sistema imunológico bastante frágil”, conta.

Sintomas amenizados
O estudo envolveu 10.245 crianças saudáveis de 6 a 35 meses, recrutadas nas províncias de Jiangsu e Pequim. Os participantes receberam duas doses da imunização, com intervalo de um mês entre elas, e foram divididos no grupo de vacina e de placebo. Os cientistas retiraram e testaram amostras passados cinco, oito, 11 e 14 meses, enquanto monitoravam dados epidemiológicos das cidades onde as crianças participantes moravam.
Para medir a eficácia da estratégia preventiva, foram comparados os dados dos participantes depois de um ano. Zhu explica que não se verificou se cada uma das crianças estava livre do vírus, algo que seria bastante difícil pela quantidade de envolvidos no estudo. Na realidade, os cientistas se concentraram em casos que surgiram durante o período de pesquisa. Entre as vacinadas, houve três infecções resultantes em síndrome mão-pé-boca e oito associadas a outras doenças provocadas pelo micro-organismo. Já no grupo de placebo, as ocorrências foram 30 e 41, respectivamente.

Os índices de proteção chegaram a 90% (mão-pé-boca) e a 80% (demais enfermidades). Zhu destaca que essa eficácia é semelhante à de vacinas contra outros tipos de enterovírus, como o que causa poliomielite. Para ele, o mais importante é que a substância conseguiu amenizar os problemas em crianças que, mesmo com a vacina, apresentaram sintomas compatíveis com a infecção. Nesses casos, o índice de sucesso foi de praticamente 100%, com nenhuma delas necessitando de hospitalização.

“A imunização em larga escala poderá reduzir a circulação do vírus”, acredita o pesquisador. Contudo, ele admite que a imunização, mesmo que globalmente, como ocorre com as gotinhas contra pólio, não diminuiria a incidência da síndrome mão-pé-boca, pois há outros vírus que provocam o mesmo problema, para os quais ainda não existem vacinas. “O EV-71, de qualquer forma, é o mais importante e, já que a vacina que desenvolvemos diminuiu a intensidade dos sintomas, acreditamos que essa foi uma grande conquista”, avalia.

Impacto nos hospitais

Na opinião de Nigel Crawford, do Instituto Pediátrico Murdoch, da Austrália, o resultado do estudo é “um avanço notável na proteção contra o EV-71”. “Como a morbidade e a mortalidade das doenças associadas ao EV-71 são baixas, o principal efeito da vacina será a redução de admissões nos hospitais, o que é um importante resultado. O próximo passo será verificar o impacto da introdução da vacina no programa nacional de imunização da China, incluindo a análise de custo-benefício”, avalia. Lembrando que diversas substâncias têm sido acrescentadas aos calendários de vacinação de diversos países, como a vacina contra o HPV, que será oferecida a partir do ano que vem pelo Sistema Único de Saúde brasileiro, Crawford acredita que muitas nações deverão se interessar pelo método preventivo desenvolvido na China.

Pesquisador da área de virologia do Centro Médico Queen Elizabeth II em Nedlands, na Austrália, Stephen Davis destaca a importância de se intensificar estudos de doenças chamadas negligenciadas, por não interessar a indústria farmacêutica. “Não existe terapia antiviral para doenças associadas ao EV-71, e os danos neurológicos podem ser gravíssimos”, diz. Davis tem testado drogas já existentes no manejo dos sintomas, mas conta que duas décadas de pesquisas não resultaram em bons resultados. “Na falta de um tratamento efetivo e no aumento perturbador de surtos ocorridos na região Ásia-Pacífico, o foco precisava se desviar para o desenvolvimento da vacina”, diz.

Embora concorde com Nigel Crawford que é importante avaliar o impacto da imunização em grandes populações, Davis acredita que os ganhos serão muitos — não apenas para os pacientes, mas para os sistemas de saúde em geral. “Custos de hospitalização são enormes, nem se comparam aos gastos com vacina. Temos diversos exemplos de vírus que provocavam internações, como o rotavírus, e que foram bem controlados com campanhas de imunização. O exemplo chinês deve ser seguido. Não podemos buscar vacinas apenas para doenças mais populares, temos de combater micro-organismos que afetam milhares de crianças em algumas partes do mundo”, conclui.