A recente declaração do ator norte-americano Michael Douglas, de 68 anos, sobre a associação do câncer na garganta com o vírus do Papiloma Humano (HPV) deu mais visibilidade a essa faceta pouco conhecida da doença. O ganhador de dois prêmios da Academia enfrentou há três anos a doença já no estágio quatro - considerado por muitos especialistas como terminal. Recuperado e lançando um filme novo, o ator falou recentemente em entrevista ao jornal britânico The Guardian que o tipo de câncer que teve é causado pela prática de sexo oral.
Por mais que no Brasil especialistas ainda prefiram evitar o alarme, nos EUA, onde a vacinação contra o HPV é disponibilizada a toda a população, a associação do vírus aos cânceres da cabeça e do pescoço é alta e preocupa médicos. “O Brasil ainda não tem números sobre essa incidência, mas nos EUA e na Europa pesquisas confirmam que grande parte dos cânceres de orofaringe são causados por HPV. Nos EUA eles chegam a 50% dos casos. Na laringe, cerca de 28% dos casos dão positivos para HPV”, alerta a oncologista Carolina Rutkowski.
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O Papiloma Humano é um vírus que se instala na pele ou em mucosas e afeta homens e mulheres. De acordo com o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia das Doenças de Papilomavírus Humano (HPV) ela é, atualmente, a principal doença transmitida pelo sexo no mundo. Na maioria dos casos, os vírus não afetam o organismo, no entanto, entre 30 a 40 variedades do vírus podem causar doenças como verrugas genitais e tipos de câncer no pênis, ânus, vulva, orofaringe e, o mais comum deles, no colo do útero.
Assim como em outros casos, o câncer de orofaringe causado pelo HPV ocorre por meio do contato direto com a pele infectada. “É preciso haver células infectadas para transmissão do vírus. Não é por fluídos, saliva, nem esperma. O vírus não está no sangue. Ele tem que ser transmitido por algo descamando do corpo”, explica a coordenadora do Instituto do HPV, Luiza Lina Villa.
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Professora das Faculdades de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e da Santa Casa de São Paulo, Luiza destaca que mesmo sendo uma doença sexualmente transmissível o HPV é um vírus muito presente na pele, em qualquer parte do corpo. “Quase todos nós, cerca de 80% da população, já se infectaram mas não tiveram problemas. Não tiveram verrugas, nem câncer, mas estão transmitindo. Organismos competentes dão conta do vírus, por isso não se pode fazer terrorismo sobre a questão”, pontua.
Segundo ela, o sexo oral aumenta as chances de as pessoas desenvolverem infecções causadas pelo vírus e, posteriormente, até câncer. Mas Villa ressalta que a doença também pode ser contraída de outras maneiras. “Se você têm o vírus, não sabe, e coça a genitália, levando a mão à boca, sem a correta higienização a doença também pode ser transmitida”.
Para que o vírus provoque uma infecção ele precisa de microarranhões ou microfraturas para entrar em camadas mais profundas da pele. A infecção, que pode ou não acontecer, é uma das primeiras reações. A professora explica que, se ela for de alto risco, ela pode se manter no tecido e acabar desenvolvendo um tumor, ao longo dos anos. “Mas nem sempre os sintomas chamam atenção”. "Para prevenir tem que conhecer o parceiro, saber o que está fazendo, assumir responsabilidade e, se possível, se vacinar", completa. O uso de preservativo, em qualquer tipo de sexo, incluindo o oral, também ajuda a prevenir o contágio pelo HPV.
Ainda no início dos anos 2000 uma pesquisa da Ohio State University, nos EUA, dava indícios do crescimento da relação entre o vírus e tumores malignos. O grupo de pesquisadores testou mais de 30 tipos do vírus em 253 pacientes com câncer de cabeça e pescoço. Um quarto dos tumores confirmaram a presença do vírus, sendo que em 90% dos casos o sub-vírus identificado foi o HPV16 - um dos causadores do câncer de colo de útero. O estudo também constatou que 57% dos casos se desenvolveram na região da orofaringe.
“Como a população tem fumado menos, tem sido visto que a incidência de câncer causado pelo tabagismo tem caído, entretanto os tipos de câncer de orofaringe causados por HPV permanecem altos e com tendência a se elevar”, ressalta Rutkowski.
Segundo o oncologista e especialista em cirurgia de cabeça e pescoço do Instituto Nacional do Câncer (Inca) do Rio de Janeiro, Terrence Farias, a principal causa dessa incidência é a promiscuidade. “Se você tem seis parceiros em curto espaço de tempo essa incidência aumenta em 10 vezes quando comparado com pessoas que só tem um”, afirma.
No entanto, Farias descarta uma epidemia da doença. Apesar de muitos médicos defenderem que a presença do vírus tem a ver com uma mudança no comportamento sexual das pessoas - como o aumento no número de parceiros, a adesão ao sexo oral e a iniciação sexual precoce – o oncologista acredita que o vírus sempre esteve presente nos casos da doença, só não era detectado. “Acho que a incidência está aumentando porque a tecnologia que permite o diagnóstico está aumentando, com o desenvolvimento de mais exames de biologia molecular capazes de detectar o HPV. Não acho que há necessidade de alarme da população. Quem deve ficar alarmado é quem é promíscuo”.
Mesmo com a falta de números brasileiros oficiais, uma pesquisa divulgada recentemente pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP/USP) sugere que os tumores na região da cabeça e pescoço têm realmente aumentado. Quase 1.500 pessoas, de cinco cidades brasileiras, Buenos Aires e Havana, com tumores na cavidade oral, orofaringe (amígdala), hipofaringe (parte da garganta logo após a amígdala) ou laringe (parte final da garganta, perto do esôfago) foram submetidas a testes sorológicos. Delas, 542 também foram submetidas a análise de DNA do tecido tumoral. O objetivo era verificar a prevalência do vírus nos casos da doença.
A pesquisa foi composta por dois estudos, sendo um realizado entre 1998 e 2003 e o mais recente entre 2003 e 2010. O resultado indicou, por meio dos exames sorológicos, que a prevalência de casos positivos de HPV16 foi de 55% no primeiro momento e de 72% em seguida. Já na análise de DNA, a prevalência do HPV 16 cresceu de 1% entre os casos do estudo mais antigo para 6,7%, no mais recente.
Sobrevida maior
Segundo a oncologista Carolina Rutkowski, ao contrário dos casos de câncer causados pelo tabagismo, essa versão de tumores acomete uma faixa etária mais jovem e com menos agressividade. “Os pacientes têm em torno de 40 anos e com condição clínica melhor por se tratar de pessoas não fumantes. Esses tumores de não tabagistas têm melhor prognóstico, sobrevida maior e melhor resposta ao tratamento que outros tipos relacionados ao consumo de cigarro e álcool”, comenta.
O cirurgião concorda e afirma que ainda não se sabe porque as chances de cura desses pacientes é maior. No entanto, ele alerta que o tabagismo e etilismo ainda são uma combinação perigosa, responsável pela maioria dos cânceres na cabeça e pescoço identificados no Brasil.
Hábitos
Os dois vícios não são estranhos a Michael Douglas, que em 1992 chegou a se internar em uma clínica de reabilitação para tratamento de drogas e dependência química. Esse histórico levou a mídia a suspeitar inicialmente que a doença seria uma consequência do estilo de vida. A compulsão sexual também foi causa de uma internação do ator, antes do casamento com a atriz Catherine Zeta Jones.
Douglas também chegou a cogitar a possibilidade do câncer ter sido causado pelo aumento de stress. “Estava preocupado por saber se os problemas causados pela prisão de meu filho teriam contribuído para desencadear o câncer, mas não, na realidade ele se deve a uma doença sexualmente transmissível”, afirma Douglas. O filho dele, Cameron, cumpre pena de 10 anos de prisão por posse de drogas e tráfico.
Pouco tempo após a publicação da matéria, um representante de Douglas chegou a negar que o câncer do ator tenha sido causado pela prática de sexo oral e afirmou que o jornal inglês interpretou mal as afirmações do ator. "Ele certamente falou de sexo oral no artigo e o sexo oral é uma causa suspeita de alguns cânceres orais, como os médicos do artigo pontuaram. Mas ele não disse que foi a causa específica de seu câncer",afirmou o porta-voz. Em resposta, o Guardian publicou um trecho do áudio da entrevista onde o repórter pergunta ao ator se ele acredita que foi o excesso de álcool e drogas os responsáveis pelo câncer. "Não, não", responde Douglas. "Sem entrar em detalhes, este câncer muito específico é provocado pelo vírus do papiloma humano (HPV), que na verdade vem da cunilíngua", explicou ao repórter.
Ajuda
Ao contrário da maioria dos casos causados por HPV, o câncer de Douglas foi identificado tardiamente. O ator revelou que lutou contra a doença com quimioterapia e radioterapia por dois meses e chegou a perder mais de 13 quilos. “Tenho que fazer controles regulares, agora a cada seis meses, mas tudo está normal há dois anos”, disse.
O tratamento de Douglas corresponde ao tipo de tratamento que é comumente feito no Brasil. A maioria dos pacientes procura a assistência médica com rouquidão ou alguma ferida na região da boca que custa a cicatrizar. “Geralmente esses pacientes chegam em melhor condição que os tabagistas e isso é fundamental para um resultado positivo e uma resposta melhor ao tratamento”, afirma Rutkowski, que sugere a busca por um tratamento diferenciado para esses tipos de câncer.
Apesar da vacinação contra HPV ser uma sugestão de alguns especialistas para prevenir o problema, no Brasil a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) somente libera a dose para prevenção de câncer anal, de colo de útero, vaginal e verrugas genitais.