Toda menina sonha em se sentir uma princesa. Enfeites, brilho, maquiagem, roupas coloridas e tecidos esvoaçantes como os usados pelas odaliscas ajudam essas crianças a aproximar fantasia de realidade. Contudo, incentivá-las a experienciar atividades que, para os adultos, tem uma conotação erótica é motivo de polêmica. A dança do ventre para garotas que ainda nem atingiram a adolescência, por exemplo, divide opiniões de pais, dançarinos profissionais, professores e especialistas.
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Em Belo Horizonte, a escolha da modalidade como uma atividade extra-curricular para alunas entre o 2º e 5º ano do ensino fundamental de um colégio da Arquidiocese da capital não agradou. Um pai, em especial, resolveu oficializar sua revolta e iniciou uma jornada para estabelecer um limite de idade para o ensino da dança, que aos olhos dele é um incentivo à “erotização precoce”.
Vista como uma forma de arte pelos profissionais e adeptos, a dança do ventre tem uma conotação diferente nos países em que ela é uma tradição cultural. No Brasil, a visão é focada na sensualidade. “O brasileiro é quem enxerga sensualidade em tudo que vê. Nos países árabes é cultural. Em nenhum dos meus estudos sobre a dança do ventre ouvi a palavra sexual ou sensual associada à ela, a não ser no Brasil”, destaca a bailarina profissional e organizadora do Congresso Mineiro de Dança do Ventre, Letícia Soares.
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Polêmicas à parte, a dança do ventre deve ser lembrada como uma atividade que traz vários benefícios à saúde. “No plano emocional e terapêutico, a criança desenvolve a coordenação motora e a consciência corporal, tomando posse do corpo e do espaço a redor; adquire confiança e maturidade, desenvolvendo habilidade e facilidade em se sociabilizar; boa postura e habilidade corporal; compreensão da relação entre música, ritmo e movimento; aprende a manifestar seus sentimentos, liberar as emoções reprimidas e desbloquear seus medos; desenvolve a autoestima e a confiança assim como a sensibilidade criativa e previne as depressões”, explica a pesquisadora de danças árabes, Brigitte Bacha. Há 25 anos, ela é professora de dança do ventre e conta que sua filha Alice Bacha de Resende, de 9 anos, é praticante há três.
Acusação
O pai e psicólogo Sanzio Barreto mantém sua queixa sobre a oferta da aula de dança do ventre para crianças. “A gente já é obrigado a sustentar uma carga de pornografia e outros conteúdos sexuais veiculados na mídia e quando confia seu filho a uma escola católica você ainda tem que lidar com isso. Meu problema não é contra a dança do ventre em si, só acho que é muito cedo”, justifica.
Pai de uma menina de 8 anos, Barreto diz que se surpreendeu ao ouvir no sistema de som da escola em que a filha estuda a chamada para as aulas de dança do ventre. Para ele, a atividade pode, além de oferecer incentivo à sensualidade antes da hora, colocar as meninas em uma posição de vulnerabilidade e risco de exploração sexual. “Meu objetivo é procurar, na Justiça, a suspensão liminar das aulas enquanto se debate o mérito da questão. Não só nela, mas em outras escolas que também tenham essas aulas”.
Doutora e professora de psicanálise da criança do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Cassandra Pereira França diz que a reclamação é pertinente. Segundo ela, as causas de abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes são sociais e múltiplas, mas a erotização do corpo é uma delas. Ela ressalva, porém que tudo o que a criança vê na televisão e vivencia na sociedade leva a isso. Como exemplo, cita a época da música Na boquinha da garrafa, da Cia do Pagode. “Todas as crianças dançavam aquilo e não entendiam o conteúdo sexual da dança. O samba também é extremamente sensual e temos crianças em todas as escolas do Rio”, diz.
O efeito, porém, a especialista diz que só será visto no futuro. “É um debate válido que se dá em dois níveis, o do adulto e o da criança. Eu acho complicado é como os adultos vão ver essa dança porque não dá para saber se a criança vai associar a prática à erotização do próprio corpo”, emenda Cassandra. Ela salienta que o ponto a ser ponderado é o fato de não ser uma modalidade que faça parte da cultura do brasileiro, que, para ela, tem uma visão que se restringe à erotização do corpo feminino. “É preciso divulgar outras funções, outros significados, outros sentidos da dança do ventre”, suegere.
A Vara da Infância e Juventude de Belo Horizonte confirmou ter recebido a denúncia sobre as aulas, mas não comentou sobre o caso. Por meio da assessoria de imprensa, o promotor Celso Pena disse que só irá se pronunciar após se inteirar sobre o assunto.
Professora aposentada do Departamento de Métodos e Técnicas de Ensino da Faculdade de Educação da UFMG, Priscila Augusta de Lima reforça que, de forma geral, as crianças brasileiras já estão expostas precocemente a esses temas. “Já temos danças que estimulam questões sexuais dentro da nossa própria cultura. Cabe aos pais avaliarem junto à escola os benefícios da dança do ventre”, afirma. Ela observa, entretanto, que na Argentina meninos e meninas começam a fazer aula de tango bem pequenos. “A dança também é considerada sensual”, diz.
A especialista explica que a criança de 8 anos não está voltada para o sensual. “Dos 6 aos 12 anos é a fase operacional do pensamento ou período operatório concreto. É quando começam a entender a ordenação das coisas, a classificação das coisas. Elas estão descobrindo o pensamento: faz uma conta, encontra o resultado e acha o máximo aquilo. É um período fundamental de aprendizado escolar”, resume. Priscila pontua que isso não significa que a criança não possa aprender outras coisas como dança ou esporte. “Só se o estímulo for excessivo é que pode prejudicar essa fase”, alerta.
Depoimentos
A dentista Iara Gurgel Barbosa, de 50 anos, tem duas filhas com menos de 10 anos matriculadas na aula oferecida pelo Colégio Santa Maria e é uma defensora da prática para as meninas. Ela conta que nunca se preocupou com a possibilidade de as coreografias incitarem a sexualidade ou mesmo promoverem a erotização do corpo infantil. “É uma dança sensual sim, mas não vejo nenhum tipo de maldade na idade delas. Aliás, acho que não atrapalhe nada, agora e nem depois. No caso delas, a dança só acrescentou coisas boas e, além disso, acho muito bonitinho”, afirma. “A aula não tem o rebolado que as profissionais fazem. É muito lúdica”, completa.
As filhas Vitória, de 9 anos, e Luíza, de 8, são adeptas desde janeiro e, segundo a mãe, já apresentam muitas melhorias dentro e fora do ambiente escolar. “A dança melhorou a coordenação motora, aumentou a desinibição e a autoestima delas. Elas são gordinhas e, por causa da aula, querem emagrecer, a menor até já perdeu peso. Achei também que elas ficaram mais motivadas com os estudos”, conta.
A diretora da unidade Nova Suíça do Colégio Santa Maria, onde as meninas estudam, defende que os movimentos ensinados nas aulas respeitam a idade das alunas, sem trazer um incentivo extra à sexualidade. “De maneira lúdica, a aula reforça ritmo, a musicalidade e a expressão criativa, por meio de movimentos adequados. Além disso, procuramos entender e conhecer outras culturas, respeitá-las”, afirma Juliana de Carvalho Moreira.
No entanto, a diretora diz entender, com ponderações, a reclamação do pai. “Acredito que realmente, tendo em vista o que é colocado pela mídia sobre as danças orientais, pode ser que alguém pense algo ruim a esse respeito, mas acredito que as famílias de alunos do colégio entendem, uma vez que a aula não é obrigatória e elas escolhem matricular ou não seus filhos nela”.
De fato, a reclamação de Barreto foi a primeira registrada contra a dança desde 2008, quando a atividade começou a ser oferecidas na escola. Para ele, contudo, isso não significa que o apoio à oferta seja total. “Eu tenho conversado aos poucos com outros pais e alguns realmente acham que é uma questão grave, só que preferem não se manifestar”.
Controvérsias
Entre as dançarinas profissionais também não há consenso sobre o ensino da dança do ventre para crianças. Neta de sírios e professora de dança do ventre há 27 anos, a bailarina paulista Rhamza Alli, de 47 anos, é uma das que acredita que a modalidade não é apropriada na infância.
A tradição milenar, na opinião dela, é designada para mulheres, não meninas. “Na cultura árabe, assim que a menina menstrua ela é retirada do mundo infantil e colocada dentro do mundo da mulher. Só aí ela pode aprender a dança, que tradicionalmente era ensinada para mulheres na fase adulta da vida. Tanto é que os movimentos foram desenvolvidos originalmente para ajudar a sanar problemas femininos, como cólicas e dores do parto. Hoje, é claro, ela é elaborada com um cunho mais artístico”, ressalta.
Alli ainda compartilha dos argumentos do psicólogo mineiro e ressalta que, atualmente, a dança do ventre está “extremamente sensualizada”. “No entanto, existe demanda mercadológica fascinante para as aulas infantis”, completa.
“Sempre que alguém me pergunta se criança pode aprender dança do ventre, eu tenho que parar e explicar. Não é uma questão simples, afinal, é uma modalidade que carrega um estigma de ser sensual e isso não é bom para criança”, afirma Brigitte Barcha.
“Na minha infância no Líbano, essa dança foi ensinada para mim pelas minhas tias, isso fazia parte do nosso cotidiano, não havia maldade nem conotação sexual, era uma forma de nos divertir e brincar”, observa ainda a dona do Studio Brigitte Barcha que existe há 16 anos e é referência em Belo Horizonte. A professora ressalta que a dança do ventre infantil precisa ser tratada como uma atividade física lúdica. “Ensinar para crianças não é uma função fácil, nem é para qualquer um”, confronta.
Segundo ela, é imprescindível que a professora tenha uma formação sólida, conheça bem o universo infantil e as necessidades das crianças. “O conhecimento deve ir além da dança. É preciso ter noções de pedagogia e, o mais importante, ter consciência plena do limite onde se pode trabalhar um corpo que ainda está em formação. Ter pulso e estabelecer limites, mas ao mesmo tempo, com muita ternura e carinho. E não é nada fácil encontrar tudo isso numa mesma pessoa”, diz.
Barcha afirma ainda que uma das primeiras necessidades é que a aula seja dada apenas para crianças e nunca misturar com adultos.
Dança do ventre e síndrome de down
Sabah Najm é dançarina e foi professora do dança do ventre por 18 anos. Entre as experiências mais marcantes da trajetória está um projeto que desenvolveu com meninas com síndrome de down. “Demorei alguns anos para vencer o receio de ministrar aulas para crianças. Também já fui contra. Esse pai está certo, não conhece a professora, não viu a aula, não sabe quem está direcionando. Realmente é preciso tomar cuidado”, diz.
As aulas eram gratuitas e Sabah conta que foi muito procurada e recebia inúmeros pedidos para aumentar a oferta de vagas. O programa começou em 1997 e foi até 2008, quando a professora se aposentou. “Uma aluna minha que dá continuidade à ideia”, fala.
“Foi um tiro no escuro. Minha proposta era proporcionar diversão e alegria e as crianças que foram me dando respostas positivas. No primeiro ano, não coloquei a turma no Festival Anual por medo do que as pessoas iriam pensar. No segundo, elas se apresentaram e foram aplaudidas de pé. Consegui quebrar o tabu da sensualidade, ninguém teve esse pensamento e dei muitas entrevistas sobre essa iniciativa”, lembra.
“Qualquer dança faz muito bem e ouvi de muitas mães que a prática da dança do ventre ajudou as meninas no aprendizado de outras coisas. Elas também apresentaram melhoras no controle motor e na concentração”, enumera.
A dançarina profissional diz que a modalidade encanta o universo infantil por causa da vestimenta alegre, colorida, dos brincos e das pulseiras que chamam muito a atenção das pequenas.