Saúde

Micro-organismo responsável por casos de infecção urinária se modifica

Segundo pesquisadores de Cingapura, ele coabita a bexiga e o intestino, e muda para se adaptar a outras partes do corpo humano

Paloma Oliveto

Quando menos se espera, a dor e a ardência reaparecem. Pesadelo de até 40% dos pacientes que já sofreram um episódio de infecção do trato urinário, a recorrência é tratada com antibióticos, suplementos para aumentar a imunidade e, em situações mais graves, leva à hospitalização. O problema é que a bactéria responsável por cerca de 80% dos casos é muito inteligente. Mais ainda do que se imaginava. Uma pesquisa publicada na revista Science Translational Medicine mostrou que a Escherichia coli não apenas migra do intestino para a uretra, podendo alcançar os rins. Na verdade, ela coabita os órgãos e, segundo os cientistas que fizeram o estudo, isso é sinal de que o micro-organismo é capaz de colonizar outras partes do corpo, além das já identificadas pelos médicos.


Depois de isolar e sequenciar geneticamente as cepas de E. coli de um grupo de mulheres que sofrem de infecção urinária de repetição, os cientistas liderados por Swaine Chain, pesquisador do Instituto de Genoma da Universidade de Cingapura, constataram que o agente patógeno se instala na bexiga ao mesmo tempo em que se mantém no intestino. “Do ponto de vista evolutivo, para se adaptar à bexiga, um ambiente ao qual ela não pertence naturalmente, a bactéria perderia sua capacidade de se fixar em outros órgãos”, explica Chain. Não foi isso, porém, que aconteceu. Ao analisar amostras de urina e fezes das pacientes que participaram do estudo, os cientistas encontraram, em ambas, linhagens de E. coli com DNA idêntico.

Embora seja benéfica ao intestino, seu hábitat natural, onde ajuda a metabolizar complexos vitamínicos, a E. coli torna-se agressiva ao sair desse órgão. Nas mulheres, a uretra é muito próxima da região perianal, o que facilita o deslocamento. “A maioria dos patógenos origina-se na flora intestinal, ganhando acesso à área uretral e ascendendo à bexiga. Evidências sugerem que haja uma alteração da flora vaginal normal, com uma diminuição de lactobacilos, o que facilitaria a colonização local pelos patógenos procedentes do intestino, com uma posterior infecção do trato urinário”, esclarece Maria Letícia Cascelli de Azevedo Reis, nefrologista do Hospital Santa Lúcia, em Brasília. “Algumas ocorrências são atribuídas à existência de um reservatório de patógenos no epitélio da bexiga, que persistiria ativo após um episódio de infecção”, continua.

Persistentes
Múltiplos fatores estão envolvidos na infecção do trato urinário, incluindo predisposição genética, mas hábitos de higiene também estão ligados à contaminação. Ao usar o papel higiênico de trás para frente, milhares de bactérias podem avançar pela uretra e se instalar na bexiga ou nos rins. Uma vez no órgão, surgem os sintomas: dor e ardência na micção; dificuldade para começar a urinar, sendo que o líquido sai em pequenas quantidades; sensação súbita de bexiga cheia; coloração alterada; e, às vezes, presença de sangue na urina.

“Quando a bactéria infecta as células da bexiga, ela pode tanto se multiplicar quanto se manter em um estado inativo por dias ou mesmo semana. Essa persistência cria reservatórios intracelulares. Acreditamos que isso contribui para as infecções recorrentes”, conta Bijaya Dhakal, patologista da Universidade de Washington e autor de diversas pesquisas sobre infecção do trato urinário. “Em um dos estudos que fizemos, descobrimos que a bactéria lança toxinas e destrói uma proteína que regula a aderência de micro-organismos à parede celular. Além disso, ela degrada os macrófagos, células muito importantes do sistema imunológico que são responsáveis por expulsar micro-organismos externos. Essa interrupção na resposta imune natural à invasão bacteriana pode explicar por que a infecção do trato urinário se torna recorrente, mesmo em indivíduos que eram saudáveis antes disso e até entre aqueles que tomam antibióticos”, afirma Dhakal, que não participou da pesquisa publicada na Science Translational Medicine.

No sangue
No estudo da Universidade de Cingapura, os cientistas descobriram outra estratégia de adaptação da E. coli. Quando se encontra no estado de latência, ela pode se modificar geneticamente, algo que confere resistência aos medicamentos. Nas amostras de urina e fezes de metade das participantes que tiveram pelo menos três infecções em seis meses, os pesquisadores encontraram as variantes, presentes tanto na bexiga quanto no intestino. O mais grave é que, a cada episódio, a bactéria mostrou-se mais fortalecida nos dois órgãos. Chain isolou os micro-organismos presentes em uma das voluntárias depois de sua terceira infecção urinária. A equipe do cientista, então, infectou modelos de roedores para analisar o comportamento da E. coli modificada.

“O que descobrimos é que a nova cepa se adapta ainda melhor do que a versão anterior, em um mecanismo evolutivo muito inteligente”, observa o pesquisador, que defende a ampliação de estudos sobre a capacidade desse agente patógeno de estabelecer reservatórios em diversos órgãos. Como a E. coli se instala e se multiplica facilmente, já que aparentemente destrói as células de defesa e, com isso, não é eliminada, Chain acredita que o micro-organismo tem o potencial de migrar para locais que, em princípio, não estão relacionados ao intestino nem ao trato urinário. Já se sabe que, quando invade a corrente sanguínea, esse agente patógeno causa septicemia, infecção generalizada cujo índice de letalidade chega a 58,2%, conforme um estudo realizado em 10 hospitais brasileiros e publicado na Revista Médica da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. “Temos de prestar mais atenção e procurar a bactéria em outras partes do corpo durante o diagnóstico e o tratamento da infecção urinária”, diz Chain.

“A recorrência é um dos maiores problemas da infecção do trato urinário. Apesar de termos remédios que eliminam os sintomas agudos, o fato de a doença continuar se manifestando em tantas mulheres me diz que precisamos desenvolver melhores tratamentos. Para isso, precisamos conhecer melhor a ação da E. coli no organismo”, concorda Scott J. Hultgren, professor de biologia molecular da Universidade de Washington em St. Louis. Atualmente, ele pesquisa o comportamento da bactéria depois que ela se instala no tecido epitelial da bexiga, e conseguiu desenvolver um medicamento ainda em fase experimental que, em ratos, eliminou as células hospedeiras. “Como a E. coli tem essa capacidade incrível de se adaptar e formar novas cepas, antibióticos já não conseguem combatê-la, por isso a necessidade de encontramos outras frentes de ação”, acredita.

Maior incidência
Enquanto 50% das mulheres vão sofrer de pelo menos um episódio de infecção urinária durante a vida, a incidência entre homens é muito menor: cerca de cinco casos em cada grupo de 10 mil pessoas. Isso se deve à anatomia masculina, já que, diferentemente das mulheres, a uretra não fica próxima à região anal. Substâncias bactericidas presentes na próstata são outro fator de proteção.

PALAVRA DE ESPECIALISTA

Estratégias preventivas
“Vários fatores genéticos, biológicos e comportamentais parecem predispor mulheres jovens e saudáveis a uma não complicada infecção do trato urinário (ITU): suscetibilidade à colonização vaginal por uropatógenos, com maior aderência ao epitélio uroepitelial da mulher acometida; uso de diafragma com espermicidas; distância uretra-ânus; coito frequente; primeira infecção antes dos 15 anos; genitora com histórico de ITU; incontinência urinária em mulheres menopausadas; entre outros. O exame para identificação do germe deve ser realizado. Quanto às estratégias de prevenção a serem adotadas para evitar ITUs recorrentes, estão ingestão hídrica de entre dois a dois litros e meio a cada 24 horas, evitar espermicidas, esvaziar a bexiga após o coito, uso de suco/cápsulas de cranberry (eficácia questionável), uso profilático de antibióticos (dose reduzida por intervalos prolongados, uma indicação parcimoniosa), uso de estrogênio tópico para menopausadas (com aumento de lactobacilos locais), uso de probióticos (lactobacilos intravaginais) e vacinas (eficácia questionável). Não deixe de consultar um nefrologista objetivando precisão diagnóstica e instruções adequadas.”

Maria Letícia Cascelli de Azevedo Reis, nefrologista do Hospital Santa Lúcia