O gatilho para a discussão vem com a reforma do Código Penal, para qual o Conselho Federal de Medicina (CFM) manifestou apoio a autonomia da gestante de abortar até a 12ª semana de gestação. Ou seja, a entidade defende que o Brasil não considere o procedimento como crime, garantindo estrutura médica para o ato. O órgão, que representa 400 mil médicos, fez votação entre os conselhos regionais e outras entidades, compostas por médicos, juristas e até padres, e o resultado, divulgado em março, jogou luz sobre o tema. Antes disso, o Conselho Federal de Psicologia já havia se manifestado a favor da descriminalização do aborto, em junho de 2012. Atualmente, o aborto é permitido no Brasil em casos de risco de vida para a mãe, estupro comprovado ou fetos anencéfalos.
“Não queremos que o problema seja de polícia, mas que seja encarado como de saúde pública. São 300 mulheres por ano que poderiam estar vivas se morassem em Portugal, por exemplo, onde o aborto não é crime, assim como na maioria dos países europeus. Quando feito em hospital, o procedimento é mais seguro. Fora dele, elas correm 100 vezes mais riscos”, defende o obstetra e vice-presidente da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), Olímpio Morais.
Diante da mudança, que pode ou não acorrer no Código Penal, hoje o Estado de Minas dá início a uma série de reportagens sobre o assunto, revelando um pouco dessa silenciosa realidade brasileira. O tema, que envolve questões de ética médica e pessoal, será tratado aqui como uma questão de saúde, mostrando os riscos e sequelas resultantes de quem faz o procedimento na ilegalidade. Por ser um crime cometido “por baixo dos panos” em clínicas clandestinas ou em casa, a Febrasgo estima entre 800 mil e 1 milhão as mulheres que buscam a prática para interromperem uma gravidez. “É algo comum entre as brasileiras. Até os 40 anos, uma em cada cinco mulheres já usaram o método clandestino. Basta olhar ao lado e contar até cinco: uma dessas mulheres, pelo menos, fará um aborto ao longo da vida. E elas têm o perfil de uma mulher comum: pode ser sua vizinha, sua filha, sua irmã. Casadas ou não, com ou sem religião”, comenta o sociólogo e economista Marcelo Medeiros, professor da Universidade de Brasília (UnB) e um dos responsáveis pela Pesquisa Nacional de Aborto, premiada, no ano passado, pela Organização Pan-Americana de Saúde.
No estudo, ele e antropóloga Débora Diniz, professora do Departamento de Serviço Social da UnB e pesquisadora do Instituto de Bioética, apontam que a maior parte das mulheres no Brasil aborta usando o abortivo misoprostol. “O problema é que nem sempre elas têm acesso ao medicamento com qualidade e na dose certa, e muitas não têm acesso à higiene pós-aborto para evitar complicações, uma das principais causas de internação feminina no país. É um caso de saúde pública, mas tratado de polícia”, diz Medeiros.
Depoimentos:
M. S. A., de 41 anos
“Não tinha estrutura para ter um filho. Estava com 18 anos e trabalhava em casa de família. Arrumei uma enfermeira, indicada por uma amiga, que me levou para a casa dela. Fui sedada e, quando acordei, ela disse que na minha barriga tinha gêmeos. Chorei muito. Engravidei de novo e tentei abortar. Dessa vez com a tal borrachinha, uma espécie de tubo que eles enfiam na gente. Não deu certo. Cinco anos depois, tive um mioma no útero e o médico disse que pode ter sido causado pelo primeiro aborto. Perdi o útero. Durante seis anos, não saí de casa. Tive depressão e desenvolvi transtorno bipolar. Tentei suicídio duas vezes, porque o aborto sempre vem à minha cabeça. Quando você se arrepende, dói mesmo. Pedi perdão a Deus, mas nunca mais fui a mesma.”
M. A. D. - 40 anos
“Era meu nono filho. Eu e meu marido não tínhamos mais condições de ter mais uma criança dentro de casa. Com cinco meses de gravidez, tomei coragem e abortei. Injetei 12 comprimidos do remédio que provoca aborto e outros dois. Passei muito mal. Tive uma hemorragia intensa. Achei que ia morrer. Fui levada para um hospital e tive uma parada cardíaca. Os médicos me salvaram e retiraram ‘o resto’ do feto de mim. Ele foi embrulhado em um saco de lixo e entregue ao meu marido. Foi a cena mais triste da minha vida. Não tive problemas depois. Hoje tenho 12 filhos.”
MAIOR INTERNAÇÃO NO SUS
Por ser considerado crime, não há números oficiais sobre os abortos provocados feitos no país. Mas, ao se submeterem a condições inseguras para o ato, muitas mulheres, de acordo com especialistas, passam mal e são socorridas em pronto-socorros e maternidades, onde, por medo, não informam o motivo de estarem ali. São submetidas à curetagem. Sem distinguir quantos casos foram provocados ou de aborto natural, os órgãos públicos divulgam o número de curetagens uterinas pós-aborto, procedimento médico para a retirada de material placentário ou endometrial da cavidade uterina. Em Minas Gerais, de acordo com dados da Secretaria de Estado de Saúde, foram feitas no ano passado 23.262 curetagens, o que custou ao SUS pouco mais de R$ 5 milhões. Em 2011, os números foram similares.
Os números são considerados altos por médicos especializados em ginecologia e obstetrícia. No Rio de Janeiro, nos mesmos anos, foram cerca de 14 mil procedimentos de curetagem pós-abortamento, de acordo com a Secretaria de Estado de Saúde fluminense. Em Belo Horizonte, foram 2.931 procedimentos, em 2011. Em 2012, outros 2.588. Segundo especialistas, de cada 100 gestações, 20 evoluem para o aborto espontâneo. A maioria não precisa de curetagem. “Do total de curetagem registrado nos estados, 60% são feitos como socorro às mulheres que fizeram aborto ilegal”, estima Olímpio.
Levantamento de 2010 do Instituto do Coração, da Universidade de São Paulo (USP), da médica Pai Ching Yu, e coordenado por Débora Diniz, mostrou que a curetagem depois do aborto foi a cirurgia mais realizada no SUS entre 1995 e 2007. O procedimento foi responsável pelo maior número de internações, com mais de 238 mil registros/ano. A maioria dos procedimentos é da interrupção provocada da gravidez. Além disso, a pesquisa de Débora, com Marcelo Medeiros, apontou que 15% das brasileiras já abortaram e 55% delas foram internadas por complicações.
Quarta causa de morte
“O abortamento é a quarta causa de morte materna”, diz a ginecologista e professora do Departamento de Ginecologia e Obstetrícia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Alamanda Kfoury. Ela explica que quando se faz um aborto por medicamento abortivo, o remédio provoca uma contração contínua no útero. “É uma contração intensa, que faz com que o colo uterino abra e elimine o embrião. Em maternidades e hospitais, ele é usado, por exemplo, em casos de morte embrionária. A paciente é internada e toma a dose certa. Pode ser usado via oral ou intravaginal”, explica. Na clandestinidade, a medicação, que pode ser comprada até pela internet, por cerca de R$ 300, é tomada pela maioria das mulheres que quer abortar. “Porém, sem acompanhamento médico, elas o tomam de forma excessiva e, na maioria das vezes, apresentam hemorragia ou ruptura do útero, podendo até perdê-lo”, alerta a médica.
Outros métodos são a curetagem e aspiração ultrauterina. “São procedimentos cirúrgicos, com internação, sedação e raspagem do útero.” A ginecologista diz que em clínicas clandestinas o procedimento, muitas vezes, é feito com a introdução de um tubo de plástico, chamado cânula, no útero. “Dão um analgésico à mulher e o risco é de hemorragia. Muitas vezes, não houve a perda do feto, então há infecções e elas recorrem aos hospitais, e muitas não falam o motivo do sangramento”, conta Alamanda, lembrando que o risco de morte nesses casos é alto.
“Quando elas buscam socorro, temem ser punidas pela ilegalidade e se calam. Quando uma mulher morre, morre a família inteira”. lamenta o coordenador da Atenção da Saúde da Mulher da Secretaria Municipal de Saúde de BH, Virgílio Queiroz.