"Um estranho evento político sobre o qual muito se escreve e do qual pouco se entende”. Assim o narrador de Os dias da crise, terceira incursão na ficção do jornalista Jerônimo Teixeira, define as manifestações de junho de 2013. Depois de A tirania do amor, de Cristovão Tezza, outro romance brasileiro faz a aproximação da ficção com fatos históricos recentes. Mas não espere respostas nem certezas. “O que se definiu em junho? Não me pergunte, não nos pergunte. Ninguém soube, ninguém sabe, ninguém jamais entendeu nada”.
Entre a observação e a vertigem, entre o estilingue e a pedra, Jerônimo Teixeira usa o humor como ferramenta para construir uma narrativa satírica inicialmente distanciada, que ganha dramaticidade nos capítulos finais (e ainda utiliza os parênteses para sublinhar as observações irônicas de Alexandre, o narrador). “Não me botei, de largada, a escrever com a decisão de usar os parênteses com frequência para realçar a sátira. Mas creio que funciona, sim, como um bom expediente humorístico. Os parênteses são como aquele aparte que o ator faz no palco para comentar a ação, com uma piscadela malandra para o público”, explica o autor, nascido em 1968, em Montenegro (RS). Radicado em São Paulo, Jerônimo escreveu críticas de livros por anos na Veja; atualmente, ocupa o cargo de editor-executivo da revista. “Não me defino exatamente como crítico. Por anos, fui um jornalista da área de livros que, entre outras funções — entrevistas, cobertura do mercado editorial, matérias de outras áreas —, escrevia resenhas”, lembra.
As primeiras linhas de Os dias da crise (“Não gosto de ler. Ninguém gosta. Mente quem diz o contrário. Livros são objetos desajeitados, desconfortáveis”) são assumidamente provocativas. Como reagiria o resenhista ao se deparar com uma provocação assim? “É um exercício bem difícil”, admite Jerônimo. “Acredito, porém, que eu me sentiria instigado a continuar lendo”. Sobre o exercício da ficção, ele opina: “Não parece valer a pena: o trabalho exigido por um livro, ainda que breve — e todos os meus três livros de ficção são breves —, é desproporcionalmente maior que a satisfação proporcionada pelas respostas que a obra recebe uma vez publicada”.
Mesmo com a impressão de que a literatura foi excluída das conversas cotidianas (“Faça o exercício em sua roda de amigos: quanto tempo se passa falando de séries de tevê e streaming? Não é um tempo bem maior do que o dedicado a falar de literatura?”), Jerônimo Teixeira insiste em escrever. “Há coisas que só podem ser ditas e representadas pela literatura de ficção. Ainda que os bons leitores sejam tristemente poucos, serão sempre o happy few”, acredita Jerônimo, que, além de Tezza, diz admirar a prosa contemporânea dos brasileiros José Francisco Botelho, Amilcar Bettega Barbosa e Alberto Mussa.
A seguir, uma entrevista com o autor:
Os dias da crise tem, assumidamente, tom satírico. A sátira pode ser uma forma eficiente de encarar o que o narrador chama de “o estúpido espírito do nosso tempo”?
A sátira pode, sim, ser um modo muito eficiente para retratar os tempos contemporâneos, a depender, claro, do talento do satirista. Comecei a escrever Os dias da crise com a modesta ambição de mostrar como andamos ridículos — todos nós, que de algum modo nos envolvemos e nos inflamamos com o debate público, seja na imprensa ou nas redes sociais, à esquerda ou à direita do espectro político. Espero, no entanto, ter avançado um pouco além disso. O tom do livro é satírico, como você diz, mas não creio que ele seja apenas uma sátira. Há, por exemplo, um desenlace trágico para um dos personagens mais ridículos do romance. E, por mais que Alexandre, o executivo frustrado que é protagonista e narrador do livro, tenha a princípio uma visão cética e reticente em relação às manifestações de junho de 2013 — como, aliás, eu mesmo tive na época —, de algum modo os eventos daquele mês escapam ao ridículo. As manifestações talvez tenham sido conduzidas por gente ridícula, mas não são, em si mesmas, ridículas.
Há uma breve citação de Dom Casmurro e a protagonista feminina chama-se Helena. Quão machadiano é Os dias da crise?
O nome Helena vem de uma fonte mais óbvia: o rosto que lançou mil naus ao mar de que fala o poeta e dramaturgo elisabetano Christopher Marlowe em um verso famoso da literatura inglesa. Mas a referência mitológica aparece em registro paródico. Enquanto a Helena original desencadeia a Guerra de Troia, a minha Helena não é, obviamente, a causa das chamadas Jornadas de Junho de 2013. Só o que ela faz é conduzir Alexandre, um homem distanciado de qualquer militância política, às manifestações de rua em São Paulo. Dito isso, sim, Os dias da crise tem muitas dívidas com Machado de Assis, notadamente com Memórias póstumas de Brás Cubas. Alexandre, o protagonista e narrador, é um descendente (não sei se digno…) do protagonista e narrador do grande romance de Machado. Em um primeiro esboço do livro, cheguei até a incluir uma nota de rodapé (recurso um tanto esdrúxulo para uma narrativa em primeira pessoa) na qual Alexandre criticava Brás Cubas. Era um expediente defensivo. Cortei: um escritor brasileiro não tem como se defender de Machado.
O narrador antecipa o que ocorrerá nos capítulos, comenta a própria narração, chega a apontar falhas na narrativa, como a ausência de descrições dos personagens. É um narrador também que reconhece ter passado, na vida profissional, “por todas as estações da cafajestagem”. Como foi a construção desse narrador? Clássicos como A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy, cujo narrador também comenta os capítulos em um processo que José Paulo Paes chamou de “exuberância digressiva”, estão entre suas influências?
Sim, sempre gostei da ficção que de algum modo se denuncia como ficção: Dom Quixote visitando a gráfica onde se imprime o livro de Cervantes, Hamlet encenando a peça dentro da peça, Próspero como demiurgo da ilha ficcional em que ele mesmo vive etc. Não creio, porém, que tenha ido tão longe em Os dias da crise. Alexandre, o narrador, faz lá suas considerações sobre o processo de escrita do livro, mas isso por si só não transgride as convenções do realismo em ficção. Para citar um personagem muito distinto tanto em personalidade quanto em origem social, temos o Paulo Honório de Graciliano Ramos: São Bernardo começa com esse personagem-narrador contando que pensara em escrever o livro em colaboração com alguns notáveis da cidade, mas as parcerias desandaram e ele acabou escrevendo a história sozinho depois de ouvir o pio da coruja. Alexandre, como Paulo Honório, é um não escritor que decide escrever.
Nas discussões agressivas que se tornaram rotina em um país polarizado, descritas no romance como uma guerra de “orgulhos machucados e vaidades ultrajadas”, quem são os maiores derrotados?
Os sensatos sempre perdem, porque ainda acreditam no poder da argumentação quando todos ao redor estão gritando. Perdem os moderados, os que buscam o equilíbrio (e só por isso são chamados depreciativamente de “isentões”), os que buscam considerar todos os fatos — sobretudo aqueles fatos que eventualmente contradigam crenças prévias — antes de opinar. Perdem também aqueles que exercem a crítica livre e independente, porque a lógica dominante da guerra cultural é própria das seitas: jamais critique os seus, pois não se tolera “fogo amigo”. Em Os dias da crise, Jorge, um dos amigos de Alexandre, representa essa figura moderada que desperta a ojeriza de gente que em tese estaria no seu campo político. Alexandre diz, a propósito, que Jorge “cultivava a insensata crença de que a sensatez pode convencer os insensatos”.
As manifestações de junho de 2013 são descritas como “estranho evento político sobre o qual muito se escreve e do qual pouco se entende”. Como a literatura pode se aproximar de fatos tão recentes do ponto de vista histórico?
Participei de um evento literário em Porto Alegre mediado por José Francisco Botelho, um excelente tradutor e escritor, e ele me apresentou falando exatamente disso: do desafio que eu havia encarado ao situar um romance em tempos tão recentes. Respondi que me pareceria um desafio bem maior criar uma cena em um acampamento dos exércitos de Aníbal em sua marcha em direção a Roma, como Botelho fez em um dos contos do seu Os cavalos de Cronos. O ficcionista que se dedica ao passado histórico — que ninguém sabe exatamente quando começa: um romance situado nos meses iniciais de euforia do Plano Cruzado, por exemplo, já seria “histórico”? — e aquele que desenvolve sua narrativa em tempos recentes enfrentam desafios diferentes, mas eu diria que, em qualquer dos casos, a literatura de ficção impõe dois esforços fundamentais ao escritor: dar um passo atrás em relação ao que lhe é próximo, e aproximar-se do que lhe é distante.
E sobre o “estranho evento político”?
A eclosão de manifestações de massa que tomam o país de surpresa e quase tão rapidamente quanto surgiram se esvaziam me parece caber bem nessa definição do meu personagem. Um constrangimento para governantes tucanos e petistas, junho de 2013 já foi interpretado como a expressão das correntes mais radicais da esquerda e como o alvorecer de uma nova direita que em seguida pediria o impeachment (que os adeptos dessa linha interpretativa preferem chamar de golpe) e depois levaria Bolsonaro ao Planalto. Eu mesmo, a princípio, encarei as manifestações com reticência, quando não com franca má vontade. Mitiguei bastante essa opinião inicial. Hoje, se tivesse de definir em uma palavra minha atitude em relação a 2013, a palavra seria perplexidade. Os dias da crise é talvez uma expressão dessa perplexidade, ainda que o personagem-narrador seja demasiado autossuficiente (quando não arrogante) para admitir-se perplexo.
O protagonista de A tirania do amor (2018), mais recente romance de Cristovão Tezza, lamenta: “Estou imerso na vulgaridade”. Por causa de divergências ideológicas, também enfrenta dificuldades no relacionamento com os filhos. Enxerga conexões entre o seu romance e o de Tezza? Quais outros escritores contemporâneos, brasileiros ou estrangeiros, tentam refletir sobre o seu tempo?
Creio que 60% ou 70% de Os dias da crise já estavam escritos quando saiu A tirania do amor. Ao ler esse romance — do qual gostei muito — não pude deixar de pensar que deveria ter trabalhado mais rápido: Tezza chegou lá primeiro! O momento histórico dos dois livros não é o mesmo, mas há, como você bem notou, paralelos notáveis. Como o Otavio de A tirania do amor, Alexandre também está “imerso na vulgaridade”. Os dois personagens são flagrados em seus momentos de precariedade (estão para perder o emprego), e compartilham de um desencanto que provavelmente precede a crise profissional (mas eles elaboram o desencanto de forma diferente: Alexandre é mais cínico e talvez mais ressentido, embora procure negar seus ressentimentos). O registro satírico distancia o meu livro de A tirania do amor — mas o próprio Tezza, resenhando Os dias da crise, diz que a sátira ao final acaba não sendo a nota predominante no livro.
Há outros tantos escritores contemporâneos que se dedicam a examinar a vulgaridade na qual estão imersos, mas citarei só mais um: Philip Roth. Em A marca humana, o escritor americano comenta, pela voz de seu delegado ficcional Nathan Zuckerman, o escândalo em torno das sacanagens de Bill Clinton com uma estagiária no Salão Oal da Casa Branca. Clinton é tratado com relativa generosidade. Essa passagem, muito breve (duas páginas, logo no início do romance), é circunstancial, panfletária, proselitista, partidária — tudo aquilo que nos dizem que a literatura não deve ser. E, no entanto, funciona que é uma maravilha! O pano de fundo do mundo político assombrado pelo puritanismo em sua versão mais reta e clara casa com perfeição à história que será narrada nas páginas seguintes: a queda em desgraça do professor de literatura Coleman Silk, também ele acossado pela vigilância puritana, agora em sua versão progressista, feminista e pós-moderna. É nesse trecho que aparece uma síntese genial de certo espírito militante nosso contemporâneo — uma expressão na qual cabem, por exemplo, tanto o filho rancoroso do Otavio de A tirania do amor quanto a filha radical de Alexandre em Os dias da crise: “o êxtase da santimônia”.
TRECHO DO LIVRO
“A primeira pedra quicou no vidro temperado, em cuja superfície escura deixou apenas um desprezível arranhão, voou perigosamente sobre as cabeças da hoste que cercava a agência bancária e, derrotada, sem quebrar nada nem ferir ninguém, rolou até perto dos meus pés. Eu ouvi o convite da pedra, o chamado irresistível da força destruidora exaltada por Bakunin; pus o pé de apoio à frente e curvei o corpo, braço direito estendido para apanhá-la, para tentar eu mesmo o arremesso que afinal quebraria a vidraça da agência bancária, detonando a inexorável cadeia de eventos que, a confiar na gritaria dos jovens a meu redor, faria ruir todo o opressivo edifício do capital financeiro internacional.”
Os dias da crise
De Jerônimo Teixeira
Companhia das Letrasl 128 páginas
R$ 44,90