Quando surgiu em 1996 com O silêncio da chuva, o carioca Luiz Alfredo Garcia-Roza não esperava que sua ficção refundasse o gênero policial tupiniquim. Se até aquele ano Rubem Fonseca reinava absoluto, agora Mandrake e companhia tinham um rival à altura, ainda que seus dois autores fossem amigos: o delegado Espinosa, com sua rotina metódica e um suicídio para investigar, ganhou dois dos mais importantes prêmios da época, o Nestlé e o Jabuti, iniciando uma carreira de 11 títulos. Professor universitário e psicanalista respeitado no meio acadêmico, com títulos obrigatórios no curso de psicologia, Garcia-Roza fez a transposição perfeita das salas de aula para a ficção.
Amante de Faulkner e de comida congelada, o delegado titular da 12ª DP não tem prenome. Basta Espinosa para que seus leitores saibam que é orbitado pela namorada Irene, com seus queijos e vinhos, os inspetores Welber e Ramiro, e a indefectível estante feita de livros. Caminhando por uma Copacabana que parece presa a um tempo que remete aos anos 1950, embora todos usem celulares e computadores, pouco usa sua arma. Seus casos, cheios de pessoas atormentadas, envolvem suspeitos aparentemente normais, mas que escondem perversões e manias invariavelmente amigas da tragédia.
FASES TEMÁTICAS
Dividida em fases informalmente temáticas, a obra de Garcia-Roza tem diversas portas de entrada, e se inicia com três romances psicológicos, em que mulheres mortas se sobrepõem para criar um mosaico macabro: O silêncio da chuva, considerado um dos dois melhores títulos, Achados e perdidos (1997), em que Espinosa precisa investigar um assassinato cujo principal suspeito é um velho conhecido, e Vento sudoeste, em que um rapaz, atormentado por um vaticínio, procura o policial para avisar que cometerá um assassinato.
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Hospitalizado há quatro meses no Rio de Janeiro, Garcia-Roza garantiu em entrevistas anteriores à internação que A última mulher ainda não encerra a missão do delegado – há outras histórias para contar, e o autor de 82 anos já revelou que tem na cabeça uma ideia para o fim. Aos leitores que circulam em Copacabana, resta olhar atentamente: quem sabe, em um golpe de vista, passeando pela Galeria Menescal, não cruzem com Espinosa e suas esfihas.
* Mateus Baldi é escritor e crítico literário. Em 2016, criou a Resenha de Bolso, plataforma voltada para críticas de literatura contemporânea.
TRECHO
Eram três horas da tarde e ele não tinha tomado café da manhã nem almoçado. No trajeto para a ladeira dos Tabajaras, passou por um bar com duas mesas na calçada e um quadro-negro pregado na parede anunciando lanches e pratos rápidos e saborosos: sanduíche de peito de peru assado, pernil de porco com abacaxi e omelete. Escolheu a mesa mais protegida e fez o pedido. Depois de comer, foi direto para o hotel. Rita estava deitada, mas acordada.
— E aí, como foi no banco?
— Tiraram todo o meu dinheiro. Minha conta está zerada e encerrada.
Ela ficou olhando com os olhos arregalados, que foram se enchendo de lágrimas.
— Só três pessoas sabiam do dinheiro, além de nós dois: Japa, a irmã dele e o policial. Um deles pode me dizer o que foi feito com a grana. Não comente isso com absolutamente ninguém. Nem com Sueli e Silvia. Vou me afastar por uns dias. Não se preocupe com o quarto, está pago. Deixei algum dinheiro para seu dia a dia, dentro da mochila. E preste atenção: qualquer problema com quem quer que seja, procure o delegado Espinosa na 12ª DP, a duas quadras daqui. Não se esqueça desse nome: Espinosa. Ele me conhece.
DEPOIMENTO
Mateus Baldi
“A graça foi observar como ele trabalhava”
‘‘Leitor do delegado Espinosa desde adolescente, conheci Garcia-Roza quando o entrevistei. Ficamos amigos e logo me vi frequentando sua casa algumas vezes por semana. A amizade se converteu em uma relação de mentor e discípulo, neto e avô, mas pouco dávamos bola para isso: a graça sempre foi observar como ele trabalhava e como era fácil ir de Dashiell Hammett a Platão em duas frases. Em uma daquelas tardes cheias de queijos, vinho e muita conversa, me pediu para ler o manuscrito de A última mulher. Diante da minha aprovação – sim, o livro era ótimo –, Luiz Alfredo perguntou se eu não queria editá-lo junto à Companhia das Letras. Topei na hora. Mergulhar ativamente naquele universo foi como ganhar o mais desafiador dos presentes. O livro que chegou às prateleiras é exatamente a história que ele queria contar, e as reflexões a que Espinosa chega – sobre si mesmo e o mundo exterior – são mais uma evidência de que Garcia-Roza, após anos lecionando, criou uma escola de literatura policial para chamar de sua. ’’
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