No primeiro conto de Redemoinho em dia quente, o encontro entre uma velhinha beata, devota de Padre Cícero, e um comprimido entorpecente gera uma alucinação fatal, porém feliz. Um misto de fantasia e realismo povoa esse e todos os 24 contos do livro da cearense Jarid Arraes, que participou da última Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). Narradas sempre por mulheres e ambientadas na região do Cariri, terra natal da autora, as histórias são conduzidas por protagonistas originárias dos mais variados contextos. Há mulheres idosas, jovens e crianças de origens sociais diferentes e de sexualidades diversas. “É o ponto de vista das mulheres do Cariri sobre o Cariri”, avisa Jarid, cujo nome começou a tomar dimensão nacional depois que a curadora da Flip, Fernanda Diamant, a classificou como a “Lady Gaga do Cariri”.
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Jarid é muito direta quando quer falar da condição feminina e coloca na fala de suas narradoras uma sinceridade sem concessões. “Seu eu tivesse contado sobre Túlio, sobre a noite em que ele mostrou o pinto pra mim, nada disso teria acontecido com Juliana. Porque o assunto dos pintos forçados contra meninas viria à tona, porque seria uma polêmica, um falatório, uma acusação contra mim, eu que seria a sem-vergonha que estava sozinha com um menino”, reflete uma das personagens cuja irmã sofreu abuso do pai. As mulheres de Jarid são fortes e denunciam, mas também são vítimas constantes de olhares atravessados, seja pela condição de gênero, seja pela cor da pele, origem social ou orientação sexual.
Da discriminação racial e social na história da garota, que se percebe “menos marrom” e menos pobre que o do primeiro amor, à frustração causada pela incompreensão diante de questões de gênero (tema tratado de jeito delicadíssimo no último conto, Olhos de cacimba) há espaço para um mundo nesse arremate de histórias contemporâneas do sertão com raízes resistentes. Padre Cícero sempre presente ganha leitura moderna entre as amigas que viviam da arte do cordel vendido na calçada e a menina que compra a moto para trabalhar com mototáxi precisa enfrentar sucessivos deboches.
Um tanto de fantasia também paira nos textos: uma colecionadora de almas de gatos, uma menina assombrada por fantasmas (e pelo trabalho infantil) na casa da avó, outra empenhada em escrever cartas para a tia morta, o sertão tem dessas coisas. “Há realismo, há uma fantasia um pouco esquisita, há muita dor, há humor, mas um humor bem característico meu. Todos os contos são inéditos, pensados para esse livro. Até viajei ano passado para Juazeiro do Norte e dei um pulinho no Crato pra fazer umas fotos, me inspirar, andar pelas ruas. Eu sempre vou, claro, mas essa ida foi de caso pensado. É um livro escrito do jeito que eu falo. Acho que esse é um dos fatores mais especiais”, avisa Jarid, que fala nesta entrevista sobre o papel da ancestralidade e das raízes nordestinas na sua escrita.
TRECHO DO LIVRO
“Tenho dois seios, estas duas coxas, duas mãos que me são muito úteis, olhos escuros, estas duas sobrancelhas que preencho com maquiagem comprada por dezenove e noventa e orelhas que não aceitam bijuterias. Este corpo faminto, dentado, cruel, capaz e violento. Movo os braços e multidões correm desesperadas. Caminho no escuro com o rosto para baixo, pois cada parte isolada de mim tem sua própria vida e não quero domá-las. Animal da caatinga. Forte demais. Engolidora de espadas e espinhos. (…) Eu tenho estas nádegas, este nariz com dois buracos que ventilam meu sangue, tenho também unhas fortes que adorno com gel comprado por cento e cinquenta reais e duas panturrilhas hipertrofiadas pelos exercícios constantes. Este corpo que eu tenho é um repetido desagrado. Caminhar neste corpo, por essas ruas, é um infinito cansaço. Eu boto um pé atrás do outro e milhares de seres dão pequenos pulos e correm com seus sapatinhos bobos. Os jornalistas chegarão amanhã e logo todos verão imagens de minha vaca morta e de meu mandacaru – é nele que coço a consciência”.
Entrevista
Jarid Arraes
Escritora/poeta/cordelista
Qual o lugar da ancestralidade e do engajamento político no que você escreve?
A ancestralidade tem um lugar muito presente na minha escrita, mas ela tem nuances diferentes. Algumas vezes se mostra na minha preocupação em resgatar mulheres negras que a história oficial ocultou, outras vezes é a ancestralidade nordestina que cresci vendo, convivendo, tateando. Ela tem um lugar que é dela. Meus livros passados já estabeleceram muito bem, tanto pelas temas – contando as histórias de Dandara, Tereza de Benguela e outras – quanto pela estética, com o cordel. Mas também saí por outros caminhos. E não é que eu ache necessário, é que simplesmente é. Tudo o que se escreve está perfumado (ou fedido, ha!ha!ha!) pelo que somos. Por isso digo que toda literatura é política. Não apenas a de quem escreve heroínas negras ou questões raciais ou de gênero. A literatura de quem escreve viagens pela Europa e janelas e jornalistas em São Paulo também, porque esse é um lugar, uma visão, uma repetição, um mundo todo de questões. Quando me separam, querem se fazer universais. Não são. Mas podemos pensar sobre isso. Tudo isso hoje me aparece mais fluidamente, não naturalmente, porque faço um exercício cada vez mais habitual de pensar essas coisas. Mas natural não é de ninguém. Naturalmente, não sabemos de nada e é melhor que tentemos aprender com os outros e expandir nossos mundos limitados.
A curadora da Flip disse que sua escrita é resultado de uma mistura de Cariri com Lady Gaga. Você concorda?
Totalmente. Minha escrita é uma mistura de Cariri com Lady Gaga. Eu toda sou uma mistura de Cariri, Lady Gaga, mil poetas, ópera, metal, pop, Salvador Dalí, Caravaggio, RuPaul's Drag Race, memórias de fitinhas do Padre Cícero, cordel, e das poucas festas LGBT que aconteciam no Cariri, onde eu e meus amigos podíamos dançar Lady Gaga, Britney Spears e outras maravilhosas do tipo. Isso tudo está na minha escrita e em quem eu sou. Está tudo aqui na minha cabeça.
A partir dessa ideia, é possível pensar numa produção contemporânea ancorada na tradição, por exemplo, da poesia/cordel nordestino? Como?
Eu comecei com a estética da tradição, mas só com a estética. Comecei com o cordel. Mas apenas a estética do cordel, os temas não. Os temas foram temas que nunca tinha lido em cordel. Gosto de lembrar da tradição e subverter o que não serve para o mundo de hoje e muito menos para o futuro. Fico com a tradição que é boa e abraça todos. A estética do cordel, a poesia do cordel, é maravilhosa. No meu livro de contos eu botei cordel. Meu vocabulário tem cordel. E tenho umas publicações de cordel, futuras, que virão com temas ainda mais diferentes do que eu já fiz. Não sei se cheguei a realmente responder à sua pergunta, mas é que ancorar não é bem minha coisa.
De que forma a ascendência africana é importante para você na hora de escrever, já que é um universo que aparece bastante nos contos?
Eu não posso falar de ascendência africana particularmente, pois disso não faço a menor ideia. Acho mais coerente falar do Cariri. Mas sobre minha escrita, escrevi dois livros contando histórias de mulheres negras, entre elas africanas, porque essas histórias nos foram violentamente negadas. Conhecer essas histórias é de profunda importância para todas as pessoas negras e também de fundamental importância para todas as pessoas do Brasil e do mundo. É a história da humanidade, de como o mundo foi sendo transformado, de como a escravidão foi sendo derrubada, de como mulheres negras foram pioneiras, inteligentes, corajosas, estrategistas, entre outras qualidades impressionantes. Pra mim foi muito importante conhecê-las, essas heroínas, e entender que eu não estava sozinha. Por isso sei que para muitas outras foi e continua sendo. Foi tema, foi necessidade, foi convicção e também digo que foi estética, porque foi literatura o tempo inteiro.
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