O kuduro também fala
Porque a voz tem mais poder que a bala”
(Já respeita, né?, Bruno M.)
Com esses versos do kuduro Bruno M. como epígrafe da primeira parte, o escritor, poeta-cantor e músico angolano Kalaf Epalanga abre seu romance de estreia, Também os brancos sabem dançar – Um romance musical (Todavia) e anuncia o que virá nas 300 páginas seguintes: música. Kuduro, especificamente. Mas o livro é mais do que um romance musical, como sugere o subtítulo. É uma narrativa sobre identidade. A música é o mote para narrar e analisar episódios da história recente de Angola, da vida dos africanos em Lisboa e das questões com imigrantes na Noruega atual, uma espécie de metonímia da Europa. E é sobre o seu trabalho que Epalanga falou ontem na Flip, em mesa dividida com Gael Fayë, rapper e romancista nascido no Burundi e radicado na França.
A estrela do livro é o kuduro (expressão que quer dizer “bunda dura”, “quadril duro”), ritmo que nasceu na periferia de Luanda no fim dos anos 1980, quando Angola ainda estava em guerra, primeiro como dança, inacreditavelmente inspirada na coreografia do personagem de Jean-Claude van Damme no filme Kickboxer.
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PASSOS DA KIZOMBA Na segunda parte da obra, que se passa em Lisboa, quem narra é Sofia, dançarina e professora de kizomba, portuguesa, branca, apaixonada por Angola, que ela nem sequer conhece. Sofia e Kalaf teriam se casado apenas para que ele pudesse obter os papéis de residência em Portugal. A narradora carrega o leitor sinuosamente pelos passos da kizomba, pela música de Angola e Cabo Verde, pelos ambientes de uma Lisboa africana, com seus personagens angolanos, cabo-verdianos e até um brasileiro, o músico e montador de cinema Quito Ribeiro, de passagem por Lisboa para a produção do documentário I love kuduro, do diretor português Mário Patrocínio.
Na terceira parte, o narrador é um dos policiais noruegueses que prenderam Kalaf na fronteira. A narrativa mergulha na vida pessoal do policial, de sua família, de Mari, a policial parceira, de Ava, uma vizinha de origem libanesa, e em aspectos do cotidiano norueguês. A escolha desse narrador mostra a habilidade do autor em lidar com a ficção e com questões que quer tratar, sob um ponto de vista distinto do seu. Certamente, demandou alguma pesquisa sobre a cena musical e a história recente da Noruega.
* Deborah Dornellas é escritora e produtora musical, autora do romance Por cima do mar (Prêmio Casa de Las Américas 2019)
Trechos do livro
“A porta abriu-se e dois agentes da polícia, ambos vestidos à paisana, carregando os crachás no pescoço, subiram a bordo. O homem, loiro e alto como só os vikings conseguem ser, apresentou-se aos passageiros. Não me recordo de suas palavras exatas, mas naquele instante voltei a repetir na minha cabeça a resposta que ensaiei dezenas de vezes por precaução (...). Viajava sem passaporte, que perdi algures num hotel em Paris, umas semanas antes. Um pesadelo que, naquela altura, nos obrigou a cancelar uma série de datas no pico do verão e porque – a desgraça nunca aparece na festa desacompanhada, traz sempre mais um – sou cidadão angolano. Quando se é um cidadão angolano comum, a última coisa que se deseja é perder os documentos. (...) Jean-Claude van Damme foi a epifania. Numa das cenas de Kickboxer, um dos filmes de porrada que mais debate gerou na Benguela da minha meninice, tornando-se um dos favoritos da minha geração, o ator belga, o próprio rei da espargata, dança embriagado ao som do tema Feeling so good today, de Beau Williams, acompanhado por duas tailandesas.
TAMBÉM OS BRANCOS SABEM DANÇAR
De Kalaf Epalanga
Todavia
304 páginas
R$ 54,90.