'Os Sertões' ganha reedição com introdução de Lilia Moritz Schwarcz e André Botelho

Euclides da Cunha começou a cobrir a Guerra de Canudos com visão favorável ao republicanismo, mas diante da carnificina que presenciou, acabou denunciando um genocídio em Os sertões, obra emblemática da cultura nacional sobre a qual se assentou o novo regime no país

por Bertha Maakaroun 05/07/2019 08:57
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(foto: Divulgação)
Sentia-se um “intruso” em todas as carreiras. Euclides da Cunha (1866-1909), engenheiro militar, jornalista, ensaísta e historiador, consagrado por Os sertões (1902), uma das obras clássicas mais importantes da literatura brasileira, é o autor homenageado da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) deste ano, quando se completam 110 anos da trágica morte do autor, aos 43 anos: o cadete Dilermando de Assis, amante de Anna, mulher de Euclides, o matou com quatro tiros. É nesse contexto que a Penguin & Companhia das Letras reedita o livro, com introdução de Lilia Moritz Schwarcz e André Botelho e posfácio de Luiz Costa Lima.

Em incursão pelo interior da Bahia, por lugares onde os atos de heroísmo convertidos em “tragédias espantosas” estão perdidos “para todo o sempre”, porque ali a história não chega, Euclides Rodrigues Pimenta da Cunha desenha com genialidade e arte, em linguagem literária respaldada em fatos históricos e de cunho declaradamente “científico”, a busca dos vários Brasis dentro do Brasil. Aqui falamos da clássica obra Os sertões. Uma procura atualíssima, embora a primeira edição dessa trágica história, considerada de fundação de certo espírito da nacionalidade, tenha chegado às livrarias do Rio de Janeiro em 2 de dezembro de 1902, portanto, há 117 anos, ali se instalando em definitivo para a construção das bases do pensamento social brasileiro.

Os fatos se dão entre 1896 e 1897 e marcam, no sertão baiano, o período entre a queda da monarquia e a instalação do governo republicano no Brasil. Ali, “insulado no país que não o conhece”, onde a vida se expressa na luta forjada pela insurreição da natureza contra o sertanejo, o esquecido arraial de Canudos eleva-se pela boataria à súbita notoriedade. Embora perdido em algum canto do mapa, em que a “terra é o exílio insuportável, o morto um bem-aventurado”, circulara a notícia – do sertão ao litoral – de que Canudos estaria se armando para atacar as cidades vizinhas e seguir em direção à capital para depor o governo republicano e restaurar a monarquia.

Ainda que Antônio Conselheiro, chefe espiritual daqueles crédulos sertanejos, pudesse de alguma forma carregar a ideia mística de que a monarquia, “abençoada por Deus”, seria a forma de governo pretendida, tal não foi o motor para a fundação do arraial de Belo Monte, mais conhecido como Canudos. Lilia Schwarcz e André Botelho consideram em introdução assinada na reedição de Os sertões que “a notícia não tinha pé nem cabeça: não havia chance de que um grupo de pessoas esquecidas pela República resolvesse atacá-la. Mas a grita se generalizou (…)” Canudos se tornou, na avaliação de Schwarcz e Botelho, o bode expiatório ou a válvula de escape para uma jovem República assolada por crises políticas e econômicas, que percebe ali a oportunidade para potencializar a imagem do inimigo interno, expresso naquele “cancro monarquista” que aspiraria a volta ao antigo regime. “Nada disso era fato, uma vez que o arraial carregava antes uma utopia de milenarismo (doutrina que anuncia a volta de Jesus Cristo para um reinado de mil anos) e a crença num mundo melhor e mais inclusivo”, afirmam eles.

PROMESSA DE 'SALVAÇÃO MILAGROSA' NO SERTÃO


Localizado no interior da Bahia, sertão de difícil acesso e pouco conhecido da intelectualidade da capital, Canudos integrou uma região caracterizada por grandes extensões de terras improdutivas, fustigada por secas cíclicas, combalida por crônico desemprego, que, como de resto o interior “esquecido” do continental Brasil, enfrentava à época grave crise e falta de qualquer perspectiva de desenvolvimento econômico e social. “Desenganados, abandonados pelos políticos e grandes proprietários, padecendo com a seca e a recessão que arruinavam o país, milhares de sertanejos se dirigiam para aquela espécie de cidadela liderada pelo peregrino Antônio Conselheiro (1830-1897). Unido por uma crença na salvação milagrosa que pouparia os humildes habitantes do sertão dos flagelos do clima e da exclusão secular tanto econômica como social, e que transformaria o sertão em mar, o arraial cresceu muito”, lembram Schwarcz e Botelho.

Naquele arraial, o habitante do sertão, empurrado por seu contexto de extremas privações à “condição inferior de pupilo estúpido da divindade”, abraça o apelo ao “maravilhoso” de Antônio Conselheiro, possibilidade única à esperança de alcançar a felicidade suprema. E esta se constitui, precisamente, na volta aos céus. A morte o libera para superar a vida sertaneja miserável. Canudos, nesse sentido, é o inferno por onde se adentra ao céu. Conclui Euclides: “Vivesse este sertanejo em paragens mais benéficas, não teria para si, de modo tão imperioso, a busca por uma tutela sobrenatural”. É sob a perspectiva dessa promessa vã aos olhos da capital litorânea, mas tão crível ao sertanejo, que Antônio Conselheiro – batizado Antônio Vicente Mendes Maciel - por volta de 1870, pregava na Bahia e em Sergipe, organizando mutirões para a construção e reforma de capelas, igrejas e cemitérios. Sob a religiosidade messiânica, nasceria o arraial de Canudos, forjado numa desesperada tentativa para nova organização social – uma solução que reforçasse a coesão cultural do sertanejo face à interferência urbana.

Antônio Vicente Mendes Maciel nasceu em 1830 em Quixeramobim (CE), habituado ao sangrento combate entre clãs familiares. Com a morte do pai comerciante, exerce em várias cidades as funções de professor, caixeiro, escrivão e, quando inicia a peregrinação mística, ganha o apelido de Conselheiro. Corre em sermões e evangelhos que prometem a salvação da alma, arrebanhando fiéis sertão afora até se estabelecer em 1893 com seus seguidores em um lugarejo esquecido – próximo a uma fazenda abandonada, às margens do Rio Vaza-Barris, Nordeste da Bahia, conhecida por Canudos, referência às plantas chamadas de canudos-de-pito, que proviam tubos para cachimbos de barros. Batizou a localidade de Belo Monte. A comunidade cresceu, apesar dos esforços da igreja e das autoridades baianas de dispersá-la. Além de se recusar a pagar tributos, o povoado, que chegou a alcançar cerca de 25 mil habitantes, não reconhecia a autoridade da Igreja Católica. Belo Monte se tornara um problema para o governo baiano, que se agravara pelo fato de os grandes latifúndios da região terem também perdido a mão de obra barata.

Foi assim que a campanha militar contra Canudos se deveu, nas palavras de Roberto Ventura, na obra A terra, o homem, a luta, menos ao antirrepublicanismo de Conselheiro do que entrelaçamento de interesses contrariados de atores políticos da Bahia, a saber, o governo interessado em recolher impostos, a Igreja enfezada contra os pregadores outsiders e dos latifundiários, revoltados contra a organização da comunidade que lhes tolhia a disponibilidade da força de trabalho. Toda essa dinâmica política local se encontra e se afina com as dificuldades políticas enfrentadas pela República recém-proclamada: esmagar Canudos, anunciado como “cancro monarquista” no sertão baiano, era o pretexto também para a repressão aos grupos remanescentes que sonhavam, na capital, com a restauração do trono e, sobretudo após o atentado malsucedido em 5 de novembro de 1897 contra o primeiro presidente civil eleito, Prudente de Morais, para que fossem igualmente reprimidos os grupos florianistas que defendiam o retorno de militares ao poder.

ÚLTIMA EXPEDIÇÃO PARA ELIMINAR CANUDOS


Quando, em 1897, Euclides da Cunha se engaja como correspondente de guerra do jornal O Estado de S.Paulo e é testemunha ocular da 4ª expedição do Exército contra Canudos, estava convicto em seus textos jornalísticos em condenar a ação dos sertanejos. Três haviam sido as expedições enviadas antes pelo Exército de Floriano Peixoto, todas derrotadas pelos conselheiristas de Canudos, antes que a 4ª se pusesse em marcha, formada por 421 oficiais e 6.160 soldados, sob o comando do general Artur Oscar de Andrade Guimarães. Este era politicamente afinado aos militares de Floriano Peixoto e positivistas que, naquele amanhecer da República, disputavam poder com os civilistas do Partido Republicano Paulista.

Em 3 de agosto de 1897, o repórter Euclides desembarcou em Salvador. Integravam a comitiva da imprensa destacada para a cobertura o Diário de Notícias e o Jornal de Notícias – ambos de Salvador – a Gazeta de Notícias, o Jornal do Brasil, o Jornal do Commercio, A Notícia e O País, estes do Rio de Janeiro. Era um tempo em que as notícias eram mandadas para as redações por linhas telegráficas instaladas entre Monte Santo – base das operações militares – e Salvador, não sem antes serem cuidadosamente examinadas e censuradas. Enquanto aguardava em Salvador a partida do marechal Carlos Machado de Bittencourt e da expedição ao campo, Euclides pesquisou sobre o conflito, as origens de Antônio Conselheiro e a formação da comunidade de Canudos. Euclides da Cunha aprendeu ali, ao participar do interrogatório conduzido pelas forças militares a Agostinho, menino jagunço de 14 anos, a dimensão mística e religiosa de Canudos, cujos combatentes sertanejos acreditavam ser destinado à salvação da alma.

Para alcançar Canudos a partir de Salvador, Euclides viajou de trem para Alagoinhas e Queimadas, cavalgou até Cansanção, fez incursão nos arredores de Monte Santo e, dali partiu, percorrendo 120 quilômetros, até chegar à “cidadela maldita” do Conselheiro em 16 de setembro, às 14h. Ainda que em sua cobertura da guerra, constrangido e censurado – como de resto a imprensa com rara exceção –, Euclides tenha se calado; ao cabo da jornada, em seu retorno, grita ao mundo como Canudos se torna vítima da barbárie protagonizada pela “modernidade”, por aqueles que “vivendo parasitariamente à beira do Atlântico”, agarrados aos “princípios civilizadores elaborados na Europa” e ignorando os “extraordinários patrícios pelo solo em parte desconhecido”, assumiram um papel de mercenários inconscientes”.

'UM SALDO REPUGNANTE'


Sob o extermínio que resulta do choque violento entre o “litoral” e o “sertão”, se assenta a República brasileira. Ao cabo dessa expedição, Euclides mantém o firme propósito de relatar o genocídio, a violenta carnificina que se esparrama sobre o sertanejo conselheirista, figura que, nas palavras do autor, remete àquilo de mais autêntico da nação. E sobre tamanha barbárie, o autor sintetiza na nota preliminar da obra que marca a história: “Aquela campanha lembra um refluxo para o passado. E foi, na significação integral da palavra, um crime. Denunciemo-lo”.

Paradoxalmente, a denúncia de Euclides, de tão repulsiva e bárbara, se revela naquilo que o silêncio sugere pela incapacidade de as palavras descreverem. “Fechemos este livro. Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até o esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente 5 mil soldados. Forremo-nos à tarefa de descrever os seus últimos momentos. Nem poderíamos fazê-lo. Esta página, imaginamo-la sempre profundamente emocionante e trágica; mas cerramo-la vacilante e sem brilhos (…) Ademais, não desafiaria a incredulidade do futuro a narrativa de pormenores em que se amostrassem mulheres precipitando-se nas fogueiras dos próprios lares, abraçadas aos filhos pequeninos?”

Euclides da Cunha deixa a simbólica página que detalharia mais horrores em branco. Não consegue mais se exprimir, porque o que presencia não é uma campanha militar, mas “uma charqueada”, não era “a ação severa das leis, era a vingança”. A covardia extrema em ação leva a decapitações, estripamento ou esfaqueamento de crianças, mulheres, jovens e homens já capturados e feitos prisioneiros. Assim relata o caso do jovem que mantinha a altivez com um redondo “não sei!” às perguntas remetidas pelo soldado. E quando esse menino, sem temer o próprio fim, pede para morrer “de tiro”; recebe a facada na garganta. Sangue pela boca, o jovem conselheirista não se rende e grita: “Viva o bom Jesus!”. Outro pobre diabo, empurrado até o general, é derrubado a socos, arrastado até o “seio misterioso da caatinga”, onde lhe é imposto o berro de “Viva a República” e, como ocorrera a tantos outros, assassinado com extrema crueldade. Nas palavras de Roberto Ventura, “o governo – suposto representante da legalidade, belo eufemismo destes tempos sem leis' – decretava o estado de sítio e esmagava os rebeldes pela suspensão das mesmas leis que deveria defender... A Constituição era, portanto, estrangulada pelos 'abraços demasiado apertados dos que a adoram'”.

Para uma sociedade que se orgulha em se esconder sob o mito da pacificidade, a Guerra de Canudos – também chamada Campanha de Canudos – que no conjunto de suas quatro expedições reuniu cerca de 12 mil soldados deixando um saldo estimado de 25 mil pessoas mortas, constitui-se, nas palavras de Schwarcz e Botelho, “um saldo repugnante”.

ANTAGONISMO ENTRE SERTÃO E LITORAL

Obra alguma escapa ao contexto histórico em que é gestada. Em Os sertões, Euclides da Cunha dialoga com Ludwig Gumplowicz (1838-1909), teórico determinista europeu que considera a luta de raças fundantes do processo histórico. O autor segue o esquema positivista da triologia meio, raça e circunstâncias de Hipppolyte Taine para interpretar a história. Nesse sentido, a obra está carregada de certo preconceito que aflora ao pensamento evolucionista da época, carregado de determinismo face às questões raciais e geográficas. Mas, como anotam Lilan Schwarcz e André Botelho, engana-se quem pensa que o livro participe igualmente da imersão em seu tempo. Os sertões – ao mesmo tempo em que bebe em pressupostos cientificistas – disseca o trauma de Canudos, que ocupa protagonismo no pensamento brasileiro.

O dualismo sertão/litoral forjado por Euclides, no qual o litoral expressa civilização de empréstimo, de cópia da Europa, e o sertão, a autenticidade possível da nação – está, na avaliação de Schwarcz e Botelho, entre as ideias mais persistentes do pensamento social brasileiro. “Por certo, à percepção do sertanejo como “rocha sólida” de uma civilização autêntica e à crítica de Euclides à civilização de empréstimo se associaram também outros sentidos, como o de elites econômicas, políticas e intelectuais voltadas para o consumo dos modismos europeus, plantadas de costas para o seu próprio país. Ocorreu apropriação oposta, com os sinais trocados e representações negativas do sertanejo, cujos conservadorismo e resistências a um processo civilizatório só se explicariam por mentalidade e uma religiosidade atávicas”.

Euclides afirma e também contesta as teorias raciais da supremacia do branco. Afinal, o que não foi, senão herói, o sertanejo – mediante um “drama sanguinolento da Idade das cavernas”, cometido por soldados e oficiais em nome da pretensa civilidade litorânea? Euclides tem a resposta: “Era uma inversão de papéis. Uma antinomia vergonhosa...”

ENTREVISTA
Rômulo Monte Alto, professor da Faculdade de Letras da UFMG


Que conselhos daria a uma pessoa que pretende ler Os sertões pela primeira vez?
Os clássicos a gente aprende a ler, porque é uma leitura mais difícil. A obra está dividida em três partes: A terra, O homem e A luta. Eu diria para um leitor que está se iniciando na obra que comece pela terceira parte, A luta, em que Euclides narra a campanha contra Canudos. As duas primeiras partes apresentam, respectivamente, uma espetacular e alucinante descrição do território continental brasileiro, que era desconhecido na capital (litoral), e também das características do sertanejo, considerado protótipo, um referente puro, a celebração desse homem que é o brasileiro.

Qual o significado da obra para a literatura brasileira?
Euclides descreve o sertão de uma maneira como nunca mais será escrito. A obra é clássica, fundacional de certo espírito da nacionalidade brasileira. A forma é indefinida. Penso que pode ser um livro barroco, há alguém que pode chamá-lo de pré-realista. E é relatado por Euclides da Cunha, que está naquele lugar desconhecido, distante, em que a história não chega. A literatura em Euclides cumpre a função de registrar, colocar o que foram os bastidores da guerra de Canudos nos anais da história.

Em Os sertões vence a civilização ou a barbárie?
Euclides da Cunha nos oferece esse retrato do embate entre a civilização e a barbárie. E, originalmente, ele associa a civilização aos canhões e ao Exército; enquanto os conselheiristas que se armam seriam a barbárie, porque anunciados, em meio àquele turbulento momento da história brasileira – como se estivessem contra a proclamação da República. Euclides escova a história a contrapelo e vai nos falar sobre os bastidores da guerra, colocar em xeque os discursos oficiais. Em certo momento, ele se depara com tamanha barbárie por parte do Exército, que ele para de escrever – a literatura não fala mais. O silêncio é a imagem crua do momento em que aquele modo de “fazer a civilização” se impõe mostrando a sua cara selvagem, bárbara. A Guerra de Canudos é o retrato das falhas de fundação de nosso país: um ato bárbaro, de uma matança.

OS SERTÕES
De Euclides da Cunha
Penguin & Companhia das Letras
704 páginas 
R$ 54,90
R$ 43,87 (e-book)