Os poemas de Como num naufrágio interior morremos (Editora Urutau, São Paulo/Lisboa, 2018), oitavo livro de Alberto Pereira, que estreou em 2008 com O áspero hálito do amanhã, consolidam uma cartografia literária que vem realizando um diálogo com os próprios signos da poesia, em cuja concepção criativa o poeta devota-se às imagens e decodificações.
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'É preciso refundar as polícias', diz autor de Desmilitarizar; confira entrevistaNovo livro de Sérgio Rodrigues reúne João Gilberto e Machado de Assis'Tem de meter a colher sim', diz mineira autora de livro sobre feminicídioDizer poemas em voz alta se torna ferramenta na luta das mulheresSua poesia conduz o leitor a um prisma de inúmeras faces, nas quais a sondagem do humano se enriquece com uma visão crítica que depura e ressignifica o já dito, visto, lido, escrito ou ouvido, num movimento dinâmico de apreensões. A sensação é a leitura de uma poesia de profunda inflexão pictórica, cada palavra nos dá a dimensão de ir além da natureza e do sentido das coisas, na linha do que entendeu Miguel Deguy: “A poesia como o amor arrisca tudo nos signos.” O poeta empenha-se nessa trilha de pluralismo e fixa sua identidade, persegue a imanência em seu olhar denso e impressionista.
Exemplos dessa inconfundível dição são as expressões de elevada carga imagética, situando-o entre os escritores que pintam com as palavras, por meio de um olhar ortográfico que registra a essência além das aparências, conseguem capturar e transcender luzes e sombras. Alberto Pereira percorre geografias físicas e sensoriais em poemas que emolduram ideias e paisagens: a infância é “um branco poema em brasa” (pag. 16), as mães constituem um “Condomínio amniótico” (pag. 17), o amor, um “catálogo de porões absolutos” (pag. 19), “a física nunca teve sentimentos” (pag.
Essa caixa de ressonância verbal resulta do assombro diante do desconforto existencial e delimita todo um repertório conceitual. São disparos dos gatilhos fotográficos de um artista que está a fornecer ao leitor um caleidoscópico sentimento do mundo, pois ao percebê-lo a palavra é levada ao paroxismo, quase ao estatuto da epifania.
Um poeta autêntico, visceral e com voz e luz próprias, sua lavratura deliberadamente moderna faz uma interface com a tradição, num trânsito estético entre tendências, escolas e correntes, em que o erudito e o popular não se antagonizam. Sua lente persevera nas contundências: “A fraude não gosta de rimas” (pag. 54); ou acicata-nos em clave irônica: “O terror em Celan:/ tatuá-lo no poder./ Observar os estilhaços/ na caligrafia de Ungaretti./ Saber que em Maiakovski/ os versos se executam/ na flauta das próprias vértebras.” (pag. 47).
As particularidades da obra de Alberto Pereira, no cerne de sua explosão criativa, explicitam-se a partir dos títulos de seus livros: Amanhecem nas rugas precipícios (2011), Poemas com Alzheimer (2013), O Deus que matava poemas (2015), Biografia das primeiras coisas (2016), Viagem à demência dos pássaros (2017) e Bairro de Lata (publicado no Brasil em 2017). Seus poemas comportam um vasto arsenal reflexivo, em consonância com o que apontou Gonçalo M. Tavares no prefácio, pois em sua escrita foi “dada permissão à linguagem para não parar”, o que podemos conferir pelas expansões do seu texto, pela multiplicidade de projeções possíveis, de metáforas, analogias, paralelismos e associações.
Em seu trajeto de “fulminantes geometrias”, com sua palavra ungida e transparente, Alberto Pereira encontrou a sua voz e, ao invocar o gaúcho Mario Quintana, deduz a sua práxis poética numa época de absoluta distopia: “Quem faz um poema salva um afogado”.
(*) Escritor brasileiro residente em Portugal, autor de Eles não moram mais aqui (Prêmio Jabuti de Contos 2016)
Comícios do ego *
Venho falar-te do fôlego dos cínicos,
da longa máscara que finge ter mastro,
desses requintados oradores de varizes gourmet.
Dos que descobrem na última curva dos gestos
que foram cítares com gume.
Sou anzol que sai do útero do poema
para elevar o osso da fala até os lírios.
Velho merceeiro de colisões.
Atalho entre a pólvora e um revólver.
Sou sede, hospício a galope na dinamite.
Uma lâmpada muito nítida
que se acende em Victor Hugo.
Encerro no âmago
o oceano como Homero, o Cáucaso como Ésquilo,
Roma como Juvenal, o inferno como Dante,
o paraíso como Milton, o homem como Shakespeare.
Revolução,
atlas de um povo consumido
que explode na iniciática viagem
à carótida da pátria.
São sempre os loucos que calçam sandálias ao hino.
(*) Poema do livro Como num naufrágio interior morremos
COMO NUM NAUFRÁGIO INTERIOR MORREMOS
De Alberto Pereira
Editora Urutau
62 páginas
12 euros (mais frete).