“É preciso educar meninas e meninos para dizer e ouvir não, para lidar com o afeto como dádiva, não como imposição. O sentimento de posse é um câncer. Ninguém é dono de ninguém”
“O menino foi buscado em Estância por uma assistente social, acompanhada de um oficial de Justiça, na semana seguinte ao enterro da mãe. Antes de ele ser entregue a Gercina, o juiz conversou com Eduardo e, atônito, ouviu a seguinte descrição sobre o que acontecera com a mãe: ‘Ele amarrou ela na cadeira. Bateu com o pau na cabeça dela, e ela caiu no chão, chorando... Aí, ele botou álco e fez tuft! Ela foi pra rua gritando muito... Jogaram areia e água nela...’” A cena de pirotecnia macabra engendrada pelo cabo do Corpo de Bombeiros causou asco e revolta na opinião pública pernambucana. Passaria despercebida, entretanto, não fosse o despudor da mãe em escancarar sua dor em todos os fóruns que se lhe apresentaram e exigir justiça. Casos semelhantes acontecem às dúzias, cotidianamente, do Oiapoque ao Chuí, numa trivialidade que anestesia, quando deveria chocar e gerar atitudes. A violência doméstica, tendo a mulher como alvo, é um câncer na sociedade. Embora normalmente se torne notícia nas páginas policiais, morre em si mesma, a menos que se trate de gente bem-posta na vida, o que não se aplica à família de Mônica. Gercina, todavia, conseguiu manter o assunto em pauta meses, anos a fio, e sua obstinação, a despeito de tudo, fez a diferença.”
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“Confesso que sofri para escrever este livro. Foi uma longa jornada: cinco anos de investigação de busca de elementos, inspiração e alguma imaginação para preencher as lacunas dos relatos e documentos”, conta Sulamita. E não é para menos. Além da sina de Mônica, a jornalista apresenta a saga da mãe, Gercina, como diz o título da obra, mulher simples e sem pistolão em busca de justiça nos labirintos do Estado.
A paixão desenfreada de Mônica e Callou começou quando ela mal tinha entrado na adolescência e perdurou por sete anos, entre idas e vindas, até o triste desfecho. E a pergunta é inevitável: por que, diante das evidências e das ações agressivas de Callou, Mônica não o abandonava? “Que estranho poder é esse? O que o move? Como explicar tamanha obsessão? Carlos dizia que a amava e que enlouqueceria se fosse obrigado a viver sem ela. Mas que amor é esse que machuca, tortura, aterroriza, subjuga? E que amor é esse que se submete, se anula, pelo qual se morre um pouco a cada dia?”, indaga Sulamita na obra.
Além da paixão, o medo segurava Mônica, que chegou a denunciar Callou em delegacias, fugiu dele, se casou, mas largava o marido e sempre voltava para ele ou era ‘raptada’ de novo pelo amante ao mesmo tempo sedutor e agressivo. “Bastava beber, não precisava ser muito, e Carlos se transformava. Passada a cachaça, ou o acesso de raiva, se tornava de novo doce e sedutor – aquele homem gentil, de palavreado meloso, carregado de paixão, que a fizera sucumbir e perder de vez a cabeça. Fora esse homem que a convencera, entre beijos, carícias e agrados, que todos estavam errados a seu respeito: ele não era a besta-fera que pintavam a mãe dela, a vizinhança, a ex-mulher.”
‘O CORAÇÃO EM CHAMAS DERRETE A RAZÃO’
Mônica tentava lutar com essa obsessão que a possuía de corpo e alma. Porque ela não conseguia resistir a Carlos? A simples lembrança dele fazia com que ardesse por dentro. No entanto, aquele amor a consumia. Por que ela não sentia o mesmo fogo pelo marido, Miguel, que a amava com tanta dedicação? Não conseguia resistir ao desejo de falar com Carlos, de ser tocada por ele, de fazer amor com ele. Não restava lugar para a razão. Mas o coração em chamas derrete a razão”, destaca Sulamita.
Consumada a tragédia com fogo no corpo, depois de tantas queixas registradas, principalmente de Gercina, que a cada dia pressentia o assassinato da filha e que chegou a procurar superiores do já cabo Callou, começou outro sofrimento: a busca por justiça. Está explícito no desafabo da mãe: “Esse homem perseguia a menina havia sete anos, desde quando era apenas uma criança. Não permitiu que ela vivesse a adolescência, nunca deixou que tivesse vida própria, nem que mantivesse qualquer relacionamento com outros rapazes. Raptara-a dezenas de vezes, submetera-a a ameaças, cárcere privado, torturas e espancamentos, tentara matá-la. Atentara contra a vida da mãe, do filho que ele reconhecera como dele e de toda a família. As denúncias à polícia, aos superiores do cabo, não geraram qualquer providência, ninguém nunca fez nada. Callou é capaz de tudo, justamente porque os militares o protegem. Se a polícia tivesse tomado providências quando prestamos as queixas, minha filha estaria viva’.
Outro desabafo de Gercina é cruel. “Quando o cabo matou minha filha, ele me matou junto. Mas cometeu um erro: esqueceu de me enterrar. Deixei de ser gente quando perdi minha filha, virei bicho”, diria ela em dezenas de entrevistas que concederia como coordenador do Movimento Viva Mônica – entidade que ela criou para buscar justiça. Mas havia uma razão para Gercina ressurgir das cinzas: criar os dois netos”, conta Sulamita. Gercina não tinha recursos nem prestígio nem influência política. Mesmo assim, como simples funcionária pública da Prefeitura de Paulista, na Região Metropolitana de Recife, com renda de pouco mais de um salário mínimo e marido aposentado pela construção civil, foi adiante. Mas com o coração sangrando, coragem e determinação buscou ajuda nas entidades de direitos humanos e sindicatos, chamou a atenção da opinião pública. Callou foi condenado por tentativa de homicídio e homicídio.
Mas pelo menos neste caso o assassino foi condenado. Em inúmeros outros país afora, grassa a impunidade. “Este livro quer ser um chamado para que a sociedade não se omita. Sim, falo de meter a colher para evitar tragédias anunciadas. No entanto, é fundamental rever valores que sustentam os desarranjos das relações familiares, a cultura da posse que alimenta machismo, misoginia e violência, alerta Sulamita, lembrando que, à época em que terminou o livro, em 2005, o Brasil ocupava o sétimo lugar no rol de violência contra mulheres. Hoje, 13 anos depois, subiu para a quinta posição.
ENTREVISTA
SULAMITA ESTELIAM
JORNALISTA E ESCRITORA
“Nossa sociedade é machista, misógina e patriarcal”
Em relação agressiva de marido e mulher é mesmo “pra meter a colher”?
É fundamental meter a colher. A atitude pode significar a diferença entre a vida e a morte da mulher. E não só a família e os amigos devem interferir, vizinhos também, se a agressão se dá entre quatro paredes ou áreas restritas, e qualquer pessoa que assiste cena de violência contra a mulher em local público. No mínimo #Ligue180, que é o canal nacional de denúncia para a chamada violência doméstica.
Porque a pessoa ignora as evidências de dor e sofrimento numa relação e não se distancia?
Nem a própria Mônica sabia explicar. Ela bem que tentava, mas era presa fácil do seu algoz. Callou tinha completo domínio sobre ela: não era só paixão desmedida, não era apenas sexo, era medo também. Mais do que ninguém, ela sabia do que ele era capaz. Temia por si, mais ainda pelos filhos, pela mãe, pela família. Era refém dele.
A incompreensão da sociedade sobre a dificuldade da vítima em denunciar/abandonar o agressor também é um entrave para ajudá-la a sair de situação de risco, com o argumento “falta vergonha na cara”?
Verdade. Infelizmente, nossa sociedade é machista, misógina e patriarcal, como denuncia o movimento feminista. Coloco nesta ordem porque as mulheres em boa parte reproduzem o machismo, quando ela não é o alvo da agressão, e mesmo que seja ela a provedora e referência moral da família. Venho de uma família matriarcal e sei do que falo. É cultural, e isso tende a reproduzir o círculo vicioso da agressão e do perdão, com o beneplácito das religiões. Digo, sempre, que é preciso educar meninas e meninos com igualdade de direitos e poderes, para convivência com respeito e parceria. Sobretudo, é preciso educar meninas e meninos para dizer e ouvir não, para lidar com o afeto como dádiva, não como imposição. O sentimento de posse é um câncer. Ninguém é dono de ninguém.
A Lei do Feminicídio ampliou a pena para homicídios de mulheres, mas aumentou a punição?
Quando Mônica foi assassinada pelo cabo Carlos de Assis Callou não existia a Lei Maria da Penha, que é de 2006 (11.340). A Lei 13.104/2015, na verdade, modifica o Código Penal para tornar hediondo e, portanto inafiançável, o crime de feminicídio. A primeira lei ajuda a rasgar a cortina de silêncio, fez crescer as denúncias. A segunda pretende reduzir a impunidade.
Não seriam necessárias também leis mais rígidas?
Mais do que leis punitivas – a Maria da Penha exige o cumprimento de suas premissas pelos agentes públicos –, é preciso um trabalho educativo do servidor e servidora públicos para acolhimento da vítima. É essencial ainda ampliar a rede protetiva do ponto de vista jurídico-penal, saúde física e psicológica e de alojamento e geração de renda. Muitas vezes, a mulher não tem para onde ir nem onde deixar suas crias para buscar trabalho. Essa é uma tarefa dos governos nos três níveis. O governo Dilma Rousseff criou o programa “Mulher, viver sem violência” que reúne na Casa da Mulher Brasileira todos os serviços necessários e humanizados com esse propósito. Exige contrapartida dos estados e municípios. Que eu saiba, estão em funcionamento no Distrito Federal, Campo Grande, Curitiba e Fortaleza. Não creio que, num contexto institucional e social de banalização da violência, e desmonte de políticas públicas e de direitos, projetos dessa natureza tenham sobrevida. É triste e indigno, mas é assim.
Em nome da filha
De Sulamita Esteliam
Editora Viseu
195 páginas
R$ 32,90