Sangue do mesmo sangue, com histórias distintas, caminhos cruzados e percepções compartilhadas sobre mundo. Os irmãos criam relações de afeto tão potentes quanto a de mães e filhos e pais e filhos. No romance Elegia do irmão (Alfaguara), o escritor paulista João Anzanello Carrascoza escolheu falar sobre laços fraternos, lançando luz ao ordinário, coloca em foco tudo aquilo que não é digno de ser exibido nas redes sociais, mas que faz cada pessoa ser o que é.
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O narrador faz uma fotografia de Mara, um mapa de seus afetos e como ela, em sua simplicidade, é farol para o irmão: a maneira como preparava o arroz com lentilha, a forma como organizava a geladeira, a relação que estabelecia com os alunos e o mundo particular e de cumplicidade que ela e o irmão criaram.
Ao mostrar o que Mara tem de único, o narrador segue o que Carlos Drummond de Andrade ensinava sobre a matéria-prima da poesia: “Há reservas colossais de poesia no cotidiano”. O romance está organizado sob a forma de microcontos e poemas, que podem ser lidos independentemente, mas que formam o romance. A obra se divide em duas partes: na primeira, o narrador-irmão apresenta a irmã, tendo como ponto de partida o diagnóstico de doença grave e a certeza de que a irmã terá pouco tempo de vida.
O romance é composto por camadas: a presentificação de Mara por meio da apresentação das memórias; a busca pela linguagem de dizer o que é indizível e a reflexão acerca dos limites da linguagem: a poesia surge dessa forma como o espaço a driblar a incomunicabilidade da existência.
O conjunto de microcontos, poemas e desenhos formam o romance. Essa mescla de gêneros foi algo planejado previamente ou a escrita o levou por esses caminhos? Em algum momento desse livro apresento o narrador que fala de bloco de textos. Só por meio de fragmentos você consegue descrever uma dor como essa. Quando você descreve o rosto de alguém, apresenta as partes, tem o nariz assim, o olho. A lembrança é resgatada por fragmentos. A história de Mara é contada dessa forma. No entanto, a prosa não dá conta das sensações do narrador. A poesia mais reflexiva, mais filosófica. Formato do conteúdo poético. Existem diferentes partes, apresentadas de maneira não tão equilibradas. Já se sabe que vai acontecer. A prosa não dava conta, então tinha que me expressar de outras formas.
A poesia e a prosa são textos com estratégias linguísticas distintas. Mesmo em prosa, você busca o sentido das palavras, escolhe a que melhor se aplica, assim como se faz na poesia. Como chegar a esse lugar em que você esmaece as fronteiras entre poesia e prosa. Sou mais poeta do que prosador. Mobilizo a prosa para contar as histórias de forma poética. O narrador assume posição de flagrar o universo. Depois vai definir, pensar, descrever por meio de definições. O escritor busca na linguagem jeito de dizer conciso e metafórico, que é próprio do campo poético. É minha forma de aproximar da história. Não me encanto pela forma documental. Digamos que sou um prosador empurrado pelo poeta. Estou mais ligado ao gênero poético.
Parece-me que as duas partes do livro são trabalhadas a partir da memória. Mas é como se na primeira parte Mara estivesse presente e na segunda ela já não está mais. A escrita seguiu essa lógica? Tentei que fosse assim. Quando ela não está mais, o narrador faz evocação mais profunda. Trata de temas infantis, quando os laços estão se fazendo. É uma forma de evocar e buscar irmã e torná-la presente.
O que o João tem em comum com o narrador? A aproximação dos afetos. Somos em seis irmãos. Somos muito ligados desde pequeno. Venho de família grande, aquela escadinha. Somos muitos ligados. Na minha obra, exploro a questão maternal, paternal. Mas faltava trabalhos voltados para fraternidade. Tenho dois ou três contos sobre irmãos. Evoco as perdas e busco ausências de outras naturezas para compor essa dor. Quis incluir a cidade de Cravinho, minha cidade natal. Ali é meu território imaginário. O narrador tem 31 e a irmã 29. Eu tenho 50 e tanto. queria trabalhar com jovem.
O capítulo Léxico demonstra a sua preocupação com a linguagem. Mas podemos dizer que essa metalinguagem está presente em todo o romance. Mesmo com toda a habilidade no dizer, há algo indizível. Não é possível alcançar a total plenitude do dizer. Mesmo com habilidade com a palavra, só podemos dizer o que é possível. Minha obra trata dessa incomunicabilidade. Os limites do dizer me inquietam. A palavra é o que nós temos. Há sempre um não dito no dizer. A insuficiência constitui o dizer. Isso me interessa muito. Nós, da comunicação, estamos sempre estudando os ditos e não ditos. O que silenciou. A minha obra trata da incomunicabilidade. Entraves que o dizer nos impõe.
Há muita potência na forma que você apresenta o ordinário. O narrador diz inclusive que a irmã é um nada e ele também é um nada. Mara é uma pessoa qualquer, não é alguém a geografar, uma história que vai virar filme ou ganhar prêmio. Interessava-me a vida menor. O extraordinário está no ordinário. É ali que vamos tirar a grandeza. Drummond já dizia que temos reservas colossais de poesias no cotidiano. Não é dia de festa e premiação que marcam. É o cotidiano, esses grãos mínimos. Temos que abrir os olhos dos nossos olhos. O narrador abre muito os dele, ao perceber coisas mínimas. Um leitor me disse que recortou e colocou na casa dele o capítulo Troca. Troca tudo por um dia a mais com ela, mas um dia qualquer. Se fosse um dia especial, ele poderia ser melodioso.
Você tem capítulos com os nomes Sim, inclusive dois com esse mesmo nome, e um com o nome Não. A forma como nomeia os capítulos demonstra preocupação típica de poetas, que exploram os sentidos das palavras. São capítulos bem curtos. Todos nomeados. São microcontos com unidade. Cada capítulo está encerrado em si e formam um caleidoscópio. Todas as peças vão se mexendo, ressignificando. Vou compondo as peças para a história para que a história faça mais sentido. Mas a evocação da irmã atravessa todo o romance, que não é convencional. É como romances modernos que apresentam linha do tempo em flash black. Todo esfacelado. Trago algo doloroso. Quando o narrador se lembra não é o ocorrido por inteiro. Quando falamos da infância, lembramos um episódio. A lembrança é como criar colar de pequenas contas.
Os capítulos também conversam entre si, como os Feitos e Defeitos, Sim, Sim e Não... Alguns capítulos precisam ser nessa ordem. Quando comecei a escrever estavam meio em desordem. Pensei que alguns contos poderiam entrar na segunda parte, mas ainda não eram. Fiz os ajustes. Um capítulo feito me puxava para outro. Uma conta se conecta a conta anterior. O conto tem que dialogar, reverberar, iluminar a escuridão do anterior. Esse é grande lance do romance. Vou construindo os romances nessa busca por compor esse mapa.
TRECHO DO LIVRO
Abro a caixa de incenso de lavanda que Mara me deu. Acendo uma vareta, a primeira, e a finco na terra do vaso de samambaias à minha frente. Sento-me no sofá e observo a ponta, minúsculo círculo laranja reluzente do qual sai, pela ação muda do fogo sobre a massa aromática grudada ao palito, uma linha de fumaça, reta por alguns centímetros, mas que em segundos vai se dispersando no ar, em forma de halos, curvas e remoinhos, até se tornar invisível, enquanto outra linha de fumaça efêmera a substitui imediatamente, parece ser a mesma, e, ato contínuo, essa vai gerando sem parar outros halos, curvas e remoinhos, quase etéreos, que sobem, serpenteiam e se espalhamem desenhos voláteis, nunca repetidos, alguns inclusive lembram as espirais que Mara soltava com a fumaça do cigarro, depois de sugá-lo e tragar fundo. Inalo o aroma da lavanda, que invade a sala e procura a fresta da janela para fugir. Continuo a observar as sequentes linhas de fumaça nascendo da ponta do incenso, famintas por desaparecer, e, embora fugazes, consolidam tantas vivências que compartilhamos, eu e minha irmã, muitas aqui mesmo, nesta sala. Fecho os olhos, já nublados, e me deixo tomar pela presença dela, que, em breve, irá definitivamente embora.
ELEGIA DO IRMÃO
• João Anzanello Carrascoza
• Alfaguara
• 152 páginas
• R$ 49,90
• R$ 34,90 (e-book)