“Fechem as fábricas de morte! Terminem já essa guerra! Peguem suas armas, suas facas e pangas (facão para cortar cana) e joguem no mar”, conclamou Nelson Mandela, sem se incomodar com a sonora vaia de uma multidão de maioria negra calculada em 100 mil pessoas, duas semanas depois de deixar a prisão. Era imensurável o desafio do homem que por quase três décadas – apesar do sofrimento, da hipertensão, das privações e do trabalho forçado em pedreira –, fez do cárcere um laboratório de autoconhecimento, estudou direito, línguas e história e acreditou piamente que seu destino era “libertar oprimidos e opressores”.
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Líder rebelde e ativista do Congresso Nacional Africano (CNA), principal movimento e partido político opositor ao apartheid, Nelson Mandela foi preso em 5 de agosto de 1962, aos 44 anos. No banco dos réus fez várias discursos em sua defesa. ‘Qualquer que seja a sentença que me imponham, podem estar certos de que, quando acabar de cumpri-la, ainda me moverá a aversão à discriminação racial e retomarei a luta contra as injustiças até que elas sejam abolidas de uma vez por todas.” O juiz Van Helsdingen disse que as ações de Mandela deviam ser ‘reprimidas com mão forte’, porque estava claro que ele estava tentando “derrubar o governo”. Ele condenou Mandela à prisão perpétua em 12 de junho de 1964.
Nos vários presídios por onde passou, Mandela escreveu centenas de cartas para familiares, advogados e autoridades diversas, inclusive da própria penitenciária. “Com essas cartas ele documenta a contínua perseguição à minha avó e proporciona uma percepção do que deve ter significado para os seus filhos (Thembi, Makgatho, Makaziwe, Zenani e Zindzi), ter um pai ausente com o qual ele mal podiam se comunicar e que nem mesmo podiam visitar antes de completar 16 anos,” conta no livro sua neta Zamaswazi Dlamini-Mandela. Mas o que era para ser apenas prisão também foi escola.
‘PREGUIÇOSO’ E ‘NEGLIGENTE’
Em outra carta, ele diz: “Fui acusado de preguiçoso, descuidado ou negligente em meu trabalho em abril de 1967. Minha defesa será que sofro de alta pressão sanguínea para o qual venho recebendo tratamento desde 64 e que nessas circunstâncias o trabalho braçal duro que realizo na pedreira de calcário é extenuante e perigoso para minha saúde”.
Chamado de comunista, ele reagiu: “Sempre me vi como nacionalista e ao longo da minha carreira fui influenciado pela ideologia do nacionalismo africano. Minha única ambição na vida é e sempre foi desempenhar meu papel na luta do meu povo contra a opressão e a exploração pelos brancos. A tarefa mais imediata com que defrontam hoje as pessoas oprimidas não é a introdução de um governo dos trabalhadores e a construção de uma sociedade comunista. A principal tarefa diante de nós é a derrubada da supremacia branca em todas as ramificações e o estabelecimento de um governo democrático no qual todos os sul-africanos, independentemente de sua situação social, de sua cor ou de suas convicções políticas, vivam lado a lado em perfeita harmonia”.
DIÁLOGO PELA PAZ
Mandela foi libertado em 11 de fevereiro de 1990, depois que o governo de P.W. Botha cedeu às pressões internacionais e à crescente revolta interna e começou a pôr fim ao regime opressor. O líder negro era a encarnação viva do fracasso da prisão e do apartheid. Sabia que seu legado dependia da sua capacidade de dialogar entre o CNA e o governo. Depois de estudar o inimigo longamente na prisão e lido suas obras de história, jurisprudência, filosofia, língua e cultura, ele chegara à conclusão de que os brancos descobririam fatalmente que o racismo os prejudicava também.
Mesmo preso, aos poucos ele havia ganho acesso aos conselhos mais altos do regime e até se encontrado com Botha, então doente, e depois com o seu sucessor, F.W. de Klerk. Apesar do esmorecimento do regime, os esquadrões da morte e os assassinatos se multiplicavam nas ruas. Mas diante de milhões de pessoas sedentas de sangue, Mandela surpreendeu ao aplacar a vontade de vingança da imensa maioria negra e partiu para negociar.
“A missão da minha vida é libertar os oprimidos e os opressores.” Isso significava que teria de reduzir o abismo entre os opressores, representados pelo governo de branco que o encarcerava, e os oprimidos, a maioria do povo sul-africano em toda a sua diversidade. “Mandela, você nos leva como carneiros para o abatedouro”, foi o que ouviu nas ruas por causa da sua insistência em negociar com o Partido Nacional, que fez jogo sujo ao explorar temores das minorias racistas, sobretudo das comunidades mestiças e indianas, alegando que a vitória do CNA resultaria na opressão dos africanos sobre elas.
PRESIDENTE DE TODOS
Mas nada nem ninguém impediu a vitória nas urnas. Mandela obteve 62,6% dos votos nas primeiras eleições democráticas da África do Sul, em 1994. Conseguiu a proeza de tornar De Klerk seu vice, no Governo de Unidade Nacional, parceria que rendeu o Nobel da Paz aos dois, em 1993. Três anos depois, entretanto, o Partido Nacional, do vice, abandonou o governo se declarando incapaz de participar das políticas de governo. Diante da constatação de que não seriam engolidos pela população negra e não perderiam o status quo, o Partido Nacional passou a atribuir à incompetência do governo todos os males sociais do país, como desemprego e inflação, que eram altos.
Ao fim do seu mandato, em 1999, Mandela não resolveu as mazelas sociais, mas pacificou o país. Ele aprovou no Congresso mais de 500 leis, muitas de natureza socioeconômica, com entrega de mais de 500 mil hectares de terra, quase 2% da área rural do país, e outras que protegiam arrendatários contra expulsões e despejos. Em seu último discurso no Congresso, Mandela afirmou: “Quanto a mim, faço parte da geração de líderes para os quais o desafio definidor era alcançar a democracia. Se consegui avançar alguns passos rumo à democracia, ao não racismo e ao não sexismo, foi fruto do Congresso Nacional Africano, do movimento pela justiça, dignidade e liberdade”.
Trecho do livro
A cor da liberdade
“Minha única ambição na vida é e sempre foi desempenhar meu papel na luta do meu povo contra a opressão e a exploração pelos brancos. Acredito que a tarefa mais imediata com que defrontam hoje as pessoas oprimidas não é a introdução de um governo dos trabalhadores e a construção de uma sociedade comunista. A principal tarefa diante de nós é a derrubada da supremacia branca em todas as ramificações e o estabelecimento de um governo democrático no qual todos os sul-africanos, independentemente de sua situação social, de sua cor ou de suas convicções políticas, vivam lado a lado em perfeita harmonia. A organização que me parecia mais adequada para empreender essa tarefa de unir o povo africano, e que acabaria por reconquistar nossa liberdade, era o Congresso Nacional Africano”.
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