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Com os argumentos de que Lígia era uma heroína brasileira e de que a literatura nacional carecia de personagens como ela, um amigo convenceu Deborah a transformar o conto em romance. Negra, criada na periferia, filha de imigrantes e marcada por um estupro que preferiu esconder por não acreditar na punição dos culpados, a personagem ganha dimensão épica na narrativa em primeira pessoa. Formada em história na Universidade de Brasília (UnB), na qual a autora estudou jornalismo, segue uma carreira acadêmica de sucesso alimentada por pesquisas sobre a diáspora negra e as ligações entre Brasil e Angola.
Racismo é um tema constante com o qual Lígia precisa lidar e cuja presença Deborah fez questão de explicitar. “Esse livro tem uma agenda antirracista e eu quis que ele tivesse. Não quero nem que seja uma coisa que as pessoas não percebam. É bom que elas percebam”, avisa. No início, ela ficou preocupada e insegura quanto ao lugar de fala. Deborah não é negra e pensou que isso pudesse gerar acusações de apropriação de uma narrativa que refletia uma experiência desconhecida para ela. Uma frase de Ana Maria Gonçalves, autora de Um defeito de cor, durante uma palestra ajudou a autora brasiliense a ficar mais tranquila. “Não devemos é falar pela pessoa, mas falar com. O que eu sinto é que estou falando com, e não no lugar de ninguém. Até por isso quis que minha protagonista narrasse em primeira pessoa. Quem está contando a história é ela, não sou eu. E tentei fazer isso da maneira mais verossímil para uma mulher negra brasileira. O que temos em comum é que somos mulheres, disso a gente entende”, garante.
Desde o início, também era óbvio para a autora a ligação com a África. Casada com um angolano e há anos dedicada às pesquisas sobre a cultura brasileira de origem africana, Deborah viu em sua personagem um elo. “Tenho uma ligação inexplicável com a África, é quase uma obsessão, e não poderia escrever sobre outro assunto. Não pensei em outro assunto no dia em que comecei a escrever esse romance”, conta. Parte do romance se passa em Angola, na cidade de Benguela, visitada pela autora para poder completar descrições precisas desenvolvidas no livro. A cidade está presente de forma muito viva na narrativa.
Boa parte do livro se passa em Brasília e Deborah não economizou nas referências históricas. Estão lá o episódio do Quarentão, em que a polícia invadiu um baile em Ceilândia e, com a célebre frase “branco sai, preto fica”, agrediu os negros do salão; os shows da Cássia Eller no Bom Demais, a invasão do IAPI e o povo carregando o caixão de JK, em 1976. “As pessoas de fora não sabem nada de Brasília. Só quem é de daí que sabe. E eu não saberia escrever com tanta propriedade sobre outro lugar”, repara Deborah, que decidiu acatar a sugestão de dois amigos para tornar a capital mais presente na narrativa. “Eles me falaram: bota a cidade mais no seu trabalho, mais Angola e mais Brasília.” A citação do Quarentão foi uma homenagem explícita ao longa Branco sai, preto fica, de Adirley Queirós.
Com o Prêmio Casa de las Américas, a autora notou um crescimento do interesse pelo livro. Antes, ela brinca, ninguém dava muita bola para o romance. Agora, a procura foi tanta que ela trabalha na revisão para uma terceira tiragem da primeira edição. Por cima do mar já passou por duas impressões, com tiragens de 150 exemplares cada. “Essa próxima, a editora ainda está orçando. Talvez sejam 200. As tiragens da Patuá, em geral, são pequenas, para serem sustentáveis. E meu livro tem um custo alto, por causa do design, das cores”, explica. Todas as ilustrações, inclusive a capa, são assinadas por Deborah e ajudam a povoar o imaginário do livro.
Trecho do livro
“O maior me dava um empurrão, e eu caía sentada. O menor me deitava e me imobilizava. O grande segurava minhas pernas, descia minha calça até o joelhos e puxava minha calcinha. Rápido, com força. Me penetrava. Rápido, com força. Me rasgava. Doía muito. Eu ia gritar. O pequeno tapava minha boca com sua mão suja. Eu olhava pra cima e via os galhos do ipê. Queria voar até lá. O grande me mandava fechar os olhos. Eu sentia as lágrimas. Desobedecia. Levava um tranco do pequeno. Do pescoço do grande pendia uma corrente dourada com um crucifixo. Balançava enquanto ele se movia dentro de mim. Não queria ver seus olhos, mas vi. Duas bolas azuis em órbita. O pequeno apertava meus pulsos. Diz que era a vez dele. O grande não queria parar. O pequeno tirava a mão da minha boca. Eu queria gritar, mas a voz não saía. O pequeno começava a xingar o grande. O grande fazia um movimento brusco e saía de dentro de mim. Me machucava mais. Trocavam de posição. O pequeno vinha. Usava uma camiseta preta com um desenho colorido de caveira. O grande segurava meus braços e apertava meu pescoço. O pequeno ria e me xingava de puta. Foi estudar, nega safada?”
O que disse o júri
“Por cima do mar, de Deborah Dornellas, conta uma história envolvente e relevante para o contexto contemporâneo brasileiro e latino-americano ao abordar temas como racismo, machismo e desigualdade, com originalidade e profundidade ao longo da vida da protagonista e das mulheres negras que a precederam. Livro estruturalmente ousado, tanto por sua extensão quanto pelo longo período de tempo que abrange, sua originalidade também se expressa ao propor diálogos entre Brasil e Angola abordando ecos históricos de problemas não solucionados. As pequenas mudanças de linguagem da protagonista, que refletem seus movimentos através do Atlântico, revelam o cuidado da narrativa histórica e uma performance literária de alta qualidade”