A requintada temporada na Europa estava interditada. Em 1917, a Primeira Grande Guerra afastou a elite brasileira das estações no Mediterrâneo ou nos Pirineus. A “elegância” teve de desfilar em outros sítios, e um deles foi uma prestigiosa cidade balneária, cujas águas quentes e cheirando a enxofre tinham a fama de ser curativas. No Sul de Minas Gerais, na divisa com São Paulo, hotéis, cassinos e ruas de Poços de Caldas formaram uma espécie de mundo condensado, a reunir por semanas personagens que depois retomariam suas rotinas – ou talvez não as retomassem, após acontecimentos inesperados.
Naquele 1917, o escritor e jornalista João do Rio participou da animada temporada em Poços de Caldas. No ano seguinte, publicou A correspondência de uma estação de cura, romance composto de cartas assinadas por fictícios personagens da vilegiatura, quase todos eles banhistas, como eram conhecidos os veranistas das águas. Portanto, em 2018, completou-se o centenário de lançamento do livro, este pouco lembrado entre a diversificada bibliografia de João do Rio, pseudônimo de João Paulo Alberto Coelho Barreto (1881-1921).
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Na literatura brasileira, A correspondência de uma estação de cura é dos “raríssimos romances epistolares”, constata o crítico Antonio Candido (1918-2017) em prefácio à obra, na edição de 1992 preparada pela Fundação Casa de Rui Barbosa, pelo Instituto Moreira Salles e pela Editora Scipione. Candido nota que, entre diversas modalidades de narrativa epistolar, a constituinte desse romance “é das mais raras: diversas pessoas escrevem a amigos que não respondem”. O crítico conta um total de 13 missivistas, embora, com rigor, haja 15, dos quais apenas dois não são turistas: Karl e Pedro Glotonosk, administradores de um hotel.
Alguns missivistas participam com somente uma carta, enquanto outros assinam várias. Em sua análise, Candido, antigo morador de Poços de Caldas, para onde se mudou na infância, propõe que ingredientes não literários – ou seja, os dias atípicos da estância hidromineral, que geram encontros imprevistos, com uma pessoa indagando as intenções da outra – são recriados na técnica epistolar, cuja fragmentação “multiplica a penetração no real”. Surge “uma espécie de coro social”, como registra o crítico, que acrescenta: “Visto que mais de um missivista alude às mesmas pessoas e aos mesmos fatos, nós temos um enriquecimento de visão, pois os ângulos são múltiplos em relação ao mesmo objeto”. Podemos considerar que o coro tem mais “vozes”, já que também composto pelos destinatários (ao menos tal como esboçados pelos remetentes), cujas reações ao conteúdo das cartas são, às vezes, prefiguradas e descritas. Não conhecemos cada remetente senão como ator da interação circunstancial com um destinatário particular, cujo silêncio ressoa no texto.
Os missivistas se revezam, sem que a narrativa seja tecida por uma primeira pessoa privilegiada. Traço notado por Candido, que aponta para a ausência de um editor fictício a organizar as cartas. Porém, a presença de um editor “discreto” é sugerida na última missiva do conjunto, na qual o “elegante” Teodomiro Pacheco envia a Godofredo de Alencar os textos que viriam a compor o livro (e talvez outros deixados de fora, não sabemos...), explicando o modo esquisito como conseguiu se apossar deles. É Godofredo – pseudônimo usado alhures por Paulo Barreto – quem decide excluir das cartas a informação das datas em que foram redigidas? Desse modo, nós, leitores, somos impedidos de medir o intervalo cronológico entre os escritos, como se a agitada “temporada” não coubesse no usual calendário.
Vertigem e controle
Ainda em 1918, respondendo a uma crítica escrita por Viriato Correia (1884-1967), João do Rio rechaça a ideia de serem crônicas os textos de A correspondência de uma estação de cura. No artigo “A forma do romance”, João do Rio alega que as cartas – publicadas parceladamente em um periódico carioca, antes de reunidas em livro – foram concebidas como partes de um conjunto. O rótulo de crônica se restringiria ao “gênero de comentário semanal” exercitado por Olavo Bilac, Machado de Assis e outros escritores. João do Rio se refere ao precursor da crônica, o folhetim, seção que, em periódicos do século 19, costumava comentar acontecimentos da semana.
Porém, por que um capítulo de romance não poderia ser uma crônica? Tanto a carta como a crônica se caracterizam, historicamente, pela dinâmica dialógica, embora na crônica o leitor seja, de hábito, um “correspondente” difuso. No romance ambientado em Poços de Caldas, algumas cartas se assemelham a revistas da semana, a crônicas-folhetins, borboleteando por vários eventos e assuntos.
Missivistas com mais cartas no romance, Antero Pedreira e Teodomiro Pacheco exibem aspectos contraditórios da bibliografia de Paulo Barreto. Similar a Joe (um dos pseudônimos do autor), Antero acomoda-se à elite mundana, a qual trata com eventual ironia inofensiva. Por sua vez, Teodomiro é uma versão “comedida” do flâneur de A alma encantadora das ruas.
Na ida a Poços, Teodomiro busca se curar de uma suposta neurastenia e, incomodado com o “vazio dos elegantes”, decide atentar para aspectos sociais até então despercebidos. Na carta 19, a visita à horrível tia Rita ressoa a excursão por casas miseráveis na crônica “Sono calmo”. Já na carta 13, ele surpreende a tentativa de um caboclo ser transformado em uma espécie de “artista da fome”, texto prenhe de aproximações (ainda que contrastantes) com o jejuador escrito por Franz Kafka (1883-1924).
João do Rio pretende construir um romance fragmentário, caleidoscópico, sem um ponto de vista unificador. Porém, no “coro social” do livro, a diversidade de “vozes” quase sempre gravita em torno da “alta sociedade”, com suas intrigas, convenções e (auto)ironias. Na extraordinária estação “recuperada” pela narrativa, Antonio Candido percebe o que chama de “soltar de rédeas”, mas notemos que a aventura, o inédito, coexiste com normas “civilizadas”. Deviam-se manter “a baliza e os limites, rigorosamente observados, impostos pelo idioma da etiqueta da voga”, salienta Stelio Marras. Banhavam-se juntos a vertigem e o controle.
*Tiago de Holanda é doutorando do Programa de Pós-Graduação em Letras – Estudos Literários, da UFMG.
O IMORTAL
Paulo Barreto nasceu e morreu no Rio de Janeiro. Usou vários pseudônimos, dos quais o mais divulgado é João do Rio. Em 1910, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras. Entre suas obras mais conhecidas estão As religiões do Rio (reportagens/crônicas), A alma encantadora das ruas (crônicas), Dentro da noite (contos) e A bela Madame Vargas (teatro). Também foi tradutor. A segunda edição de A correspondência de uma estação de cura está disponível na internet, no acervo da Biblioteca Brasiliana Mindlin/USP, no endereço https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/410.