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Antologia do chileno Nicanor Parra reúne 75 poemas

“O poeta é um homem qualquer”, proclama Nicanor Parra em seu Manifesto, publicado em 1963. O chileno, considerado um dos mais importantes nomes da poesia de língua espanhola, incrivelmente nunca recebeu uma edição que faça jus à grandeza de sua obra. Agora, por iniciativa de Joana Barossi, em parceria com Cide Piquet, a Editora 34 lança Só para maiores de cem anos – Antologia (anti)poética.

Desde que publicou seus Poemas e antipoemas, em 1954, traçou um caminho único na literatura latino-americana, criando a antipoesia, uma abordagem literária modernista que rompe com os cânones tradicionais. Em busca da aproximação da poesia do cotidiano, do homem comum, de temas simples e longe da postura grandiloquente da lírica clássica, o autor flerta com o surrealismo, cria uma infinidade de vozes narrativas e recorre sempre ao humor, às vezes sarcástico, para destituir a sisudez da poesia. Para muitos, a poética de Parra supera a de Pablo Neruda (1904-1973) e, para a lírica hispano-americana, existe um antes e depois do irmão mais velho da cantora e compositora Violeta Parra (1917-1967).

A antologia se concentra nas obras em que Parra desenvolve a antipoesia, com 75 poemas, priorizando a produção de 1954 e 1972, com a versão original em espanhol ao final do volume. Joana conta que o processo de tradução durou quatro anos e teve início quando o poeta ainda estava vivo – Parra morreu em 2018, aos 103 anos. “Tive que começar pela lição de casa ortodoxa de tradutora, ler toda a sua obra, estudos sobre o poeta, além de traduções de seus poemas para o inglês e o francês. E, por outro lado, cumpri também as tarefas menos ortodoxas, responsáveis por uma imersão quase tátil na obra de Parra que foram os grupos de estudo, leituras derivantes, conversas e as viagens”, diz.

Por duas vezes, a tradutora foi até Las Cruces, à beira do Pacífico, onde vivia o poeta.
Na primeira tentativa de encontro, recuou. Na segunda, acompanhada do escritor Alejandro Zambra, pôde abraçar o mestre. Desde então, o projeto da antologia foi se materializando, mas houve vários percalços – a morte da agente Carmen Barcells dificultou a compra dos direitos, a gravidez e o nascimento do filho. Foi quando o amigo e tradutor Cide Piquet entrou no projeto. “Comecei a palpitar na seleção, acrescentamos poemas (a princípio eram 70, e a gente acrescentou mais cinco para fechar 75), além de poemas de mais dois livros, chegando até os anos 1980. Mas o foco era a antipoesia”, diz o tradutor. Nesta entrevista ao Pensar, os dois abordam o processo de tradução e alguns dos temas da obra de Parra.

TRADUZIR/TRAIR

JOANA BAROSSI – Esse tema é interminável.
Uma constante busca, boicote e medo que costuram o processo de tradução. Que não acaba nunca se a gente não colocar um ponto final e, ao deitar a cabeça no travesseiro, se apaziguar com o fato de que a tradução é, e sempre será, uma versão, uma das possibilidades nas infinitas alternativas que as línguas não apresentam. Por esse motivo, enfatizei no posfácio a autorização, digamos, generosa e sarcástica de Parra ao comentar que a tradução é uma “expropriação revolucionária”, como quem diz: “Se vira!”. É, de fato, um atrevimento pôr as mãos na poesia dos outros – e uma oportunidade única de pesquisa e imersão. Mas, francamente, nesse caso, mais do que atrevimento ou coragem, era uma urgência. Parra precisava de uma publicação no Brasil e pronto.

CIDE PIQUET – Tradução é sempre complicado. Poesia ainda mais, porque a forma tem mais importância do que na prosa. A questão de ritmo, métrica e sonoridade é muito mais calculada e delicada.
Honestamente, não acho que o Parra seja muito difícil, digamos que é uma dificuldade média em termos de poesia. Mas, na verdade, traduzir poesia do espanhol é muito difícil, justamente por ser muito próximo. As preposições, que, no português, a gente contrai, em espanhol são mais longas, o que já é um problema, especialmente nos poemas com métrica. Quando é um poeta rebuscado, você faz um floreio e resolve o problema da métrica. Mas, no caso do Parra, como é muito coloquial, se você faz isso resolve o problema da métrica, mas quebra a naturalidade da expressão.

O DECASSÍLABO

JB – O próprio Parra tem muitas histórias sobre sua teimosia com o decassílabo, teorias embasadas sobre as classes sociais ao longo da história e as transformações linguísticas resultantes das modificações socioeconômicas. Ele faz análises de obras fundamentais da literatura a partir das contagens silábicas, é maravilhoso. Mas acho que o leitor tem que ter em mente que Parra, além de um obsessivo, era um matemático. É uma tara.

CP – Ele tem obsessão pelo decassílabo, muitos poemas são inteiramente compostos em decassílabos e, quando não é um decassílabo perfeito, ele fica rodeando e mantém o ritmo decassilábico.

OS CORTES

JB – A poesia de Parra tem pontos muito cortantes e mortais, que eu atribuiria especialmente a duas coisas. A primeira é mais jocosa, o poeta gosta de dar olés em seus leitores, colocando sangue nos narizes e caveiras onde não deveriam estar. Sobre esses bailes planejados, o poeta costuma dizer algo assim: “É preciso dar ao leitor duas frases coerentes com as quais se sinta aclimatado e orgulhoso de seu bom entendimento, seguida de uma completamente desnorteante, um tiro sem sentido”.
O plano de Parra para uma comunicação poética urgente exigiria deslocar o leitor de sua sonolência, por isso “um tiro”. A segunda razão é seu impulso apocalíptico: “O céu está caindo por terra”. Parra é um sublime questionador das grandes verdades, do status quo, dos tabus e medos do burguês, encabeçados especialmente por instituições como o Estado e a Igreja – que são alvos constantes de sua fúria e agressão.

CP – Os cortes brutos têm a ver com uma visão modernista de poesia, mas também com o modo de pensamento, de raciocínio dele, essa inteligência não linear, de mostrar os vários ângulos e se colocar no lugar de muitos personagens. É um poeta que engana muito porque as pessoas fazem confusão entre escritor e narrador, entre o eu lírico e o eu do autor. Ele joga com esse eixo das filigranas, joga o tempo inteiro. Se você lê o Parra achando que tudo o que ele fala é dele e a voz dele, não vai entender nada. Porque ele se coloca no lugar dele mesmo, no lugar do cidadão comum, da pessoa que está na rua... Num mesmo poema, às vezes, ele passeia por muitos olhares, muitos pontos de vista. E há o humor, ele é muito irônico, sarcástico e provocador, além de fazer questão de destruir esse lugar do autor como alguém que sabe, que tem a palavra definitiva.

VIOLETA E A MORTE

JB – Vale notar que há menções em diversos poemas, que é o suicídio de sua irmã e melhor amiga Violeta Parra, em 1967. Vejo que a Violeta era para Nicanor uma espécie de arquétipo da coragem e do atrevimento, uma mulher que tinha uma posição política ativa, que se lançava ao mundo rastreando a cultura popular chilena, enquanto Nicanor, protegido pela academia e pela ironia, sobrevivia das palavras, do plano teórico, das matemáticas.
Parra é um poeta mental, professor do Departamento de Matemática da Universidade do Chile — especialista em relatividade e indeterminação. Inclusive, o fato de o poeta circular dentro do departamento de exatas da universidade, e não se associar a nenhum partido político, o protegeu durante os anos mais duros da ditadura no país. Nicanor viveu 103 anos; Violeta, compulsiva, por sua vez, se matou com um tiro na cabeça. Os dois irmãos compunham uma espécie de equilíbrio de opostos e ouso dizer que Violeta foi a mulher para quem Nicanor Parra dedicou um amor mais constante.

CP – Parra põe tudo no chão, inclusive o tema da morte, como no poema O que o defunto disse a si mesmo, em que diz: “É que troçava até mesmo da morte”. É alguém que atravessou o século passado inteiro, viu todas as tragédias, as guerras, o próprio Chile, o suicídio da irmã Violeta Parra. Ela tem um papel importantíssimo na vida na formação dele. Ela se matou com 50 anos, então, durante metade de sua vida ele conviveu com essa presença ausente dessa figura maravilhosa. Quando comecei a ler o Parra, sempre achava que eram poemas de velho, mas ele escreveu isso com menos de 50 anos. Mas o tema da morte está presente em qualquer pensador ou artista que tenha essa visão da vida a fundo. Como diria Camus, a única questão realmente importante é a morte e, mais ainda, o suicídio.

TRADIÇÃO E RUPTURA

JB – Nicanor Parra apanhou bastante da crítica tradicional: quanto ao conteúdo de seus poemas e quanto a suas posições políticas. Parra apanhou sobretudo da esquerda ortodoxa. Mesmo que politicamente se aproximasse bastante do comunismo, Parra sempre teve um espírito de franco-atirador, um anarquista – isso acabou afastando-o de Pablo Neruda (1904-1973) e da turma do Partidão. Mas, para além dos confrontos no campo político, me parece que Parra precisava se afastar daqueles que o antecederam, se colocar de maneira dialética com a obra de Gabriela Mistral (1889-1957), Vicente Huidobro (1893-1948) e Neruda. Irônico, Parra zomba calorosamente das influências que teve, do passado poético que o alimentou e me parece que foi um processo absolutamente consciente, Parra se recusou a converter-se em outro Neruda. Quando fui visitá-lo, perguntei o que significava “poesia de sombrero alón” (no poema Manifesto), e ele respondeu: “Sombrero alón é para gênios e românticos, naquele tempo se cultivava uma planta estranha chamada genialidade”.

CP – Todo escritor ou artista dialoga com a tradição, quer queira, quer não. O que marca Parra é essa rebeldia contra o status quo, contra essa poesia de matriz romântica que estava sendo feita no começo do século passado. A revolta do Parra é contra esse lirismo desbragado. Ele é matemático e extremamente crítico, analisa matematicamente tudo. E, com certeza, ele bebeu muito nas vanguardas d

ANTIPOESIA

JB – Não sei se seria capaz de uma síntese dessas. Isso deixo aos poetas. Mas tem um aspecto que pode ser mencionado em tempos como o nosso, e que me parece difícil de escapar aos olhos dos leitores atentos, que é uma espécie de democratização da poesia – veja bem, não quer dizer que Parra fosse anti-intelectual, muito pelo contrário, era um acadêmico excitadíssimo com as conquistas intelectuais da humanidade. A ideia de democratização não tem nada a ver com banalização. Escolhi este aspecto da antipoesia (além do humor, da ruptura, do político, das questões da linguagem, do pop, do popular etc.) por conta de uma pergunta: por que as pessoas (no Brasil) insistem em dizer que não gostam ou não entendem poesia?. Aproveito, então, para fazer um convite e dizer que com Nicanor Parra “os poetas desceram do Olimpo”. Eles não são mais deuses nem profetas, não podem mais abarcar o universo, nem iludir o leitor com linguagens difíceis. Na antipoesia de Parra, o poeta e suas vozes são seres comuns, precários e contraditórios como todos os seres humanos. Mesmo que muitos de seus poemas tenham sido escritos há décadas, Nicanor Parra segue sendo fundamentalmente contemporâneo.

CP – O tema da antipoesia é a principal criação de Parra (não é exatamente uma criação, mas ele é quem defendeu essa ideia) e foi o que o lançou como poeta no mundo. A partir de Poemas e antipoemas (1954), ele conceitualizou e cunhou esse termo para defender a antipoesia, no sentido de que a poesia passa muito longe desse lirismo tradicional ainda com resquícios do romantismo. E, de fato, ele levou isso muito longe. A antipoesia de Parra desconfia não se deixa levar pelas sensações e sentimentos, não acredita nas visões de mundo estabelecidas, nas grandes narrativas. Ele é revolucionário, é um crítico da esquerda chilena e latino-americana. Nunca se conformou nem se permitiu a desempenhar papel algum, o que é uma grande lição.
 
- Foto:
 SÓ PARA MAIORES DE CEM ANOS: ANTOLOGIA (ANTI)POÉTICA

. De Nicanor Parra
. Seleção e tradução de Joana Barossi e Cide Piquet
. Edição bilíngue
. 288 páginas
. R$ 55 
 

PORRA, PARRA!
Por Daniel Arelli 
Foram 103 anos de vida, 80 de produção poética – mas, no caso do chileno Nicanor Parra (1914-2018), o lugar-comum de que a juventude independe do tempo cronológico se aplica inteiramente. Juventude, bem entendido, no sentido de rebeldia, vitalidade, irreverência, inventividade e, não por último, de aventura. Embora célebre desde a publicação de seu Poemas e antipoemas (1954) e amplamente premiado em vida (o poeta recebeu em 2011 o Prêmio Cervantes, o mais importante da língua espanhola), Parra permanece um autor a descobrir. Como afirmou seu conterrâneo Roberto Bolaño, a obra de Parra é misteriosa, como que lançada ao futuro.

Parra no Brasil

Irmão mais velho da cantora e compositora Violeta Parra, Nicanor é um autor a descobrir especialmente pelo leitor brasileiro. Apesar de sua celebridade no mundo hispanofalante que nos circunda, o mestre – ou melhor: antimestre – chileno foi, inexplicavelmente, pouquíssimo traduzido no Brasil. Entre nós, havia até hoje apenas uma antologia mista, publicada em 2009, dedicada a Nicanor e a Vinicius de Moraes – uma colaboração da Academia Chilena de la Lengua e da Academia Brasileira de Letras, com pouco mais de 20 poemas de cada autor e de pouca circulação comercial. Para além dessa antologia mista, dispúnhamos apenas de algumas raras traduções encontráveis na internet, como as realizadas e divulgadas pelo poeta Carlito Azevedo em suas redes sociais.

Nesse sentido, a antologia (anti)poética lançada há poucas semanas pela Editora 34, Só para maiores de cem anos, deve ser saudada como um louvável e urgente empreendimento editorial. Organizada e traduzida por Joana Barossi e Cide Piquet, essa bela antologia bilíngue reúne 75 poemas de seus principais livros e é, assim, a primeira grande coletânea de Parra publicada entre nós. De sua vasta produção, os tradutores optaram por apresentar um generoso recorte do que chamam de “primeiro Parra”, isto é, das obras publicadas sobretudo entre 1954 e 1973 – obras que giram em torno da ideia de antipoesia, a grande contribuição de Nicanor para a literatura do século 20.

Antipoesia

E o que é antipoesia? É verdade que pertencem às principais linhas de força da poesia moderna certos elementos e procedimentos técnicos que poderiam ser considerados antipoéticos. Trata-se de elementos que se voltam, tanto no plano da forma quanto do conteúdo, contra o rebuscamento, a idealização, a grandiloquência e a afetação de certa poesia tradicional. Contra essa poesia olímpica e distanciada da vida real (a “poesia poética de poético poeta”, como ironiza Parra), parte considerável da poesia moderna responde com o verso livre, o léxico coloquial e o tom conversacional, a temática cotidiana, o prosaísmo, a liberdade formal, o humor. Com ela, também Parra: “Senhores e senhores/ esta é nossa última palavra/ – nossa primeira e última palavra –:/ Os poetas baixaram do Olimpo” (Manifesto).

Nicanor, no entanto, ao caracterizar seu trabalho como antipoético, pretende realizar uma espécie de depuração e autorreflexão irônicas desses procedimentos antipoéticos já presentes na poesia dos séculos 19 e 20. Volta, assim, a dimensão antipoética da poesia moderna não apenas contra a lírica tradicional, mas também contra si mesma, contra o próprio poema e a figura do poeta modernos: “Durante meio século / A poesia foi / O paraíso do bobo solene. / Até que cheguei eu / e me instalei com minha montanha-russa. // Subam, se quiserem. / Claro que não respondo se saírem / Botando sangue pelas bocas e narinas”, escreve Parra em 1962. É uma questão controversa se, com isso, a antipoesia de Parra permanece no horizonte geral da poesia moderna; sabe-se que o próprio autor chegou a caracterizar algumas peças de seu livro Poemas e antipoemas, de 1954, como pós-modernas. De qualquer maneira, pode-se dizer com certa segurança que ele é um dos artistas a formular, à sua maneira, a questão sobre os limites da modernidade estética.

Autoironia e autorreferência

Pode-se ver o procedimento antipoético de Parra paradigmaticamente em peças autoirônicas, autorreferentes e autocontraditórias que desestabilizam a própria natureza do discurso e do sujeito poéticos. É o caso de textos célebres como Quebra-cabeças, com sua reiteração clownesca de versos simples e autoderrisórios: “Não dou a ninguém o direito./ Adoro um pedaço de trapo./ Eu troco tumbas de lugar.// Eu troco tumbas de lugar./ Não dou a ninguém o direito./ Eu sou um tipo ridículo./ Debaixo dos raios do sol,/ Flagelo das lanchonetes./ Ainda morro de raiva”. Ou de poemas que têm por objeto a autocompreensão do poeta em seu fazer poético, provocando a suspensão dos contratos estéticos habituais entre leitor e autor: “Eu não digo que ponha fim a nada/ E não tenho ilusões a esse respeito/ Eu queria seguir poetizando/ Porém a inspiração me abandonou./ A poesia se comportou muito bem/ Eu me comportei horrivelmente mal” (A poesia terminou comigo). Junto ao seu efeito de desestabilização antipoética, essas peças estabelecem um repertório múltiplo de “eus líricos” – quase se poderia dizer: um “bestiário antilírico” –, que não raro se sobrepõem, se complementam e contradizem: o bufão, o clown, o louco, o ladrão, o mendigo, o professor esmagado pela profissão, o poeta-defunto, o poeta que dorme em uma cadeira....

Não creio na via pacífica

A antipoesia de Parra se volta também contra certo ideário ético-estético da Modernidade e seus mitos fundadores, contra suas narrativas totalizantes e suas utopias políticas formadoras. É o que se vê em peças que são verdadeiros antimonumentos, como Solilóquio do indivíduo, contraposto ao Canto geral de Pablo Neruda quase como seu antídoto antipoético. A peça de Parra retraça a (pré-)história da humanidade a partir da figura do “Indivíduo” (uma espécie de individualidade protoburguesa em seu narcisismo e autocentramento peculiares), dissolvendo toda idealização e teleologia histórica, toda e qualquer mitologia de “sentido” histórico: “Eu sou o Indivíduo. / Bem. / Talvez seja melhor voltar àquele vale, / Àquela rocha que me serviu de lar,/ E começar a gravar de novo,/ De trás para a frente gravar/ O mundo ao revés./ Mas não: a vida não tem sentido”.
Ou, em registro mais claramente político, é o caso de peças extraordinárias como Não creio na via pacífica, que revelam o teor simultaneamente niilista e cômico de sua antipoética: “Não creio na via pacífica// não creio na via violenta/ eu gostaria de crer/ em algo – mas não creio/ crer é crer em Deus/ a única coisa que faço/ é encolher de ombros/ me perdoem a franqueza/ não creio nem na Via Láctea”.

O cômico

Com sua força corrosiva, a antipoesia de Parra procura congregar (e promover) a experiência da radical dissolução de sentido com uma comicidade peculiar. Com efeito, a experiência tipicamente antipoética é profundamente cômica – pode-se mesmo dizer que ela é inseparável do riso: “Eu não aceito que ninguém me diga/ Que não compreende os antipoemas/ Todos devem rir às gargalhadas” (Advertência). Perguntado sobre seu senso de humor, Parra teria dito que ele provém de suas leituras de Kafka e dos filmes de Charlie Chaplin, – ao que teria acrescido de imediato que quase nunca ia ao cinema. O humor tipicamente parriano é não raro autorreferente e autocontraditório, uma poderosa práxis discursiva que, ao revelar o próprio ridículo, revela também o ridículo de toda construção de sentido ideal – como, não por último, da poesia.

O “segundo Parra”

No que poderia ser considerada sua “segunda fase”, não contemplada nesta antologia, Parra diversificou sua produção e intensificou seu caráter experimental, sem jamais abandonar, é verdade, as diretrizes fundamentais da antipoesia. Nesta segunda fase, que compõe o segundo volume da edição catalã de suas Obras completas & algo =, Parra fabrica também várias séries de objetos estéticos híbridos – seus famosos Artefactos e seus Chistes parra desorientar a la polícia poesía – que mesclam ilustração, charge, desenho, colagem e escrita. Posteriormente, em nova guinada, publica seus Ecopoemas como forma de intervenção (anti)poética no debate ecológico então crescente, para além de seus conhecidos Sermones e de suas experimentações com versos de corte mais regional. Além disso, o matemático Nicanor Parra também era um grande tradutor e transcriador – um expropriador revolucionário, em suas palavras –, como atesta a obra Lear: rey & mendigo, sua famosa versão de Rei Lear, de Shakespeare.

Que a bela antologia (anti)poética ora publicada, que reúne trabalhos da primeira fase de Parra, possa inspirar outros empreendimentos editorais no Brasil que tenham como objeto também sua produção posterior.

Como diria Carlito Azevedo: Porra, Parra!


* Daniel Arelli é professor, poeta e tradutor. Doutor em filosofia pela Universidade de Munique, atualmente é pesquisador de pós-doutorado na UFMG. Seu primeiro livro de poemas, Lição de matéria, foi vencedor do Prêmio Paraná de Literatura de 2018. 
 
DEPOIMENTO
Por María Ángeles Pérez López
 
Na poesia de Nicanor Parra se articula uma revisão muito crítica do passado em todos os sentidos e, especialmente, em relação aos movimentos europeus e ocidentais que marcaram a construção do cânone cultural, social e político ao longo de séculos. Desde cedo, a obra de Parra se aproxima de uma abordagem das vertentes populares da cultura, aquelas que se conectam com o não sofisticado, o não refinado, tanto o humor “grosseiro” como as formas da ironia ou da paródia claramente carnavalescas.

Por isso, ele se interessa, de maneira significativa, pelos goliardos ou pelo Livro do bom amor (Juan Ruiz Arcipreste de Hita – 1284-1351), assim como pelas cuecas (gênero de música e dança tradicional chileno) populares, em particular em seu livro La cueca larga, de 1958, no qual se aproximava às formas do picaresco e do “prostibular” que satirizavam a visão da cultura chilena dominante na época. Constantemente, ele faz troça da “solenidade greco-latina” e demonstra interesse pelos aspectos mais “vivazes” e “verdadeiros”, menos codificados.

Já nos anos 1990, ele se declara mapuche (etnia indígena originária chilena) “por direito próprio”. Não é por acaso que, em 1991, deu ao discurso de agradecimento do Prêmio Juan Rulfo, recebido no México, o título de Mai mai peñi. Discurso de Guadalajara, cujas primeiras palavras são uma saudação mapuche.

Para Parra, reconhecer as formas ancestrais de conhecimento dos mapuches ou de outros povos originários, muito menos valorizadas ou diretamente rechaçadas pelo sistema cultural de seu país e de tantos outros significava se conectar com seu forte compromisso ecológico. Parra se declara um “alfabetizador ecológico” e, em diversas ocasiões, deixou claro seu apoio ao movimento ambientalista.

Na década de 1980, já é muito palpável em sua obra a preocupação pela sustentabilidade do planeta, o que o leva a apoiar a causa mapuche em seu conflito com o Estado chileno. Como repetiu em várias ocasiões, “muitos os problemas/ a solução é uma:/ economia mapuche de subsistência”.

Sem dúvida, por meio da antipoesia e dos numerosos desafios que sua obra instala para a cultura contemporânea, Parra propõe a conexão com elementos populares e ancestrais, o que confere à sua poesia uma profunda singularidade e a projeta para o presente mais vivaz e verdadeiro.

* É poeta e escritora espanhola, especialista em poesia hispano-americana, professora da Universidade de Salamanca e autora de Mecanismo animal (Ediciones del 4 de agosto, 2018), entre outros. 
 
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