Nos últimos anos, a consideração pelo existente tem sido vista como uma posição engajada, distante dos histerismos da “arquitetura icônica” e próxima da diversidade e da informalidade do tecido urbano. Partindo das incongruências econômicas e geográficas do mundo global, o “urbanismo informal” proclama um movimento de baixo para cima e alinha-se a um projeto de resistência contemporâneo: contrabalançar as disparidades sociais do neoliberalismo assumindo um discurso politicamente correto e insinuando uma certa descrença pelo objeto arquitetônico.
É uma reação necessária que vê a possibilidade de transformação, não na arquitetura, mas na participação horizontal, no debate público, nas redes rizomáticas. Essencialmente urbana e situacionista, ela associa arquitetura ao status quo, a uma adesão complacente ao sistema de poder, à repetição de práticas viciadas e anacrônicas.
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REVITALIZAÇÃO
A paisagem das grandes cidades é composta por muitos elementos residuais. Regiões vacantes, vazios subutilizados e terrenos baldios configuram áreas abertas e sujeitas às pressões econômicas e sociais que produzem a cidade. Áreas vizinhas a ferrovias, regiões desindustrializadas, centros históricos em declínio, portos desativados – todos se transformaram num imenso manancial propício para intervenções, uma tendência mundial que tem gerado várias formas de revitalizações e transformações urbanas.
Lançado para o mercado imobiliário no início dos anos 1990, os morros do Bairro Buritis, em Belo Horizonte (possivelmente marcados por uma palmeira típica do cerrado, o buriti), foram todos rapidamente ocupados por prédios caracterizados pela uniformidade volumétrica, pela falta de uma melhor relação terreno-projeto, pela mesmice e sobretudo pela falta de imaginação de seus arquitetos.
Os pilotis desses prédios são como plataformas que dividem dois espaços absolutamente desconexos: abaixo, um labirinto de pilares de concreto (as ditas “palafitas” ou “paliteiros”); acima, apartamentos de três quartos.
Uma dessas ocupações está determinada (os apartamentos); a outra se encontra espantosamente em aberto. É evidente que o potencial arquitetônico desses prédios está precisamente nessa organização atípica, nessa surpresa gerada por um acidente arquitetônico. O labirinto formado pela sequência das palafitas de concreto, a natureza explicitamente residual desses labirintos e a uniformidade dos prédios suportados pelas palafitas conformam, todos eles, um potencial que é inversamente proporcional à qualidade arquitetônica desses objetos. Terrenos acidentados são vencidos através de uma malha sincopada de pilares e vigas, cintas e contraventamentos que, juntos, materializam fantasias arquitetônicas. São espaços piranesianos não idealizados por arquitetos; produtos de calculistas que jamais imaginaram o espaço que projetaram; surpresas espaciais que nunca acontecem no mundo previsível da arquitetura.
Duas coisas marcam a esquizofrênica identidade visual desse bairro: as palafitas e a mata atlântica sobre as encostas. Grandes áreas verdes permeiam os prédios “palafitados”.
Na arquitetura moderna, os pilotis dos edifícios foram concebidos como um elemento que permitiria soltar o edifício do terreno, liberando no térreo uma área aberta, coberta, geralmente contígua a áreas verdes e úteis como playground, local de eventos etc. “Que a casa seja suspensa por estacas, que se erga no ar, que o jardim penetre debaixo da casa.” Dessa forma os pilotis permitiriam uma continuidade do parque ao redor dos prédios ou das casas. Brasília e suas superquadras são uma ótima tradução desse elemento, sendo que seus blocos residenciais permitem o livre caminhar pelas superquadras por estar sempre apoiados sobre pilotis. Por mais geométricos e duros que sejam, esses prédios procuram ser permeáveis e penetráveis pelo público, integrados que estão na vegetação rala do cerrado.
No caso das palafitas comuns em vários bairros de Belo Horizonte, é como se os pilotis tivessem sofrido uma mutação, resultado de um tumor (maligno?): no lugar destes, as palafitas fazem a conexão arquitetura-natureza.
Com algumas semelhanças: ambos servem para separar os prédios da natureza e do contato direto com o terreno. E com diferenças fundamentais, também: ao contrário dos pilotis, que em princípio servem para integrar os prédios e moradores nas áreas verdes, as palafitas mantêm a natureza como algo inatingível. No final, os dois principais elementos daquele bairro (matas e palafitas), ambos de uma beleza espetacular (ainda que um espetáculo despercebido), ironicamente não são acessíveis nem para moradores e nem para a comunidade em geral.
Numa iniciativa que reuniu arte e urbanismo, Invento para Leonardo, espetáculo teatral do grupo Armatrux, apresentou uma intervenção em um desses espaços de palafitas do Bairro Buritis, iniciativa que venceu o prêmio E-2: Exploring the Urban Condition, na França, em 2002, como melhor projeto de palco.
No palco do espetáculo, passarelas de madeira, escadas, rampas e plataformas possibilitaram o uso extensivo das palafitas em diversos níveis pelos atores. Simultaneamente à apresentação da peça, os prédios vizinhos apresentavam cenas cotidianas que se tornaram públicas: famílias jantando, tomando banho, conversando, dormindo e, eventualmente, assistindo à peça de suas janelas.
O espetáculo possibilitou também uma inversão no quadro de privatização dos espaços da cidade. Em um país de cidades cada vez menos públicas e mais violentas, o projeto funcionou como um urbanismo efêmero que mostra os desequilíbrios urbanos de uma forma própria. Nesse sentido, o Armatrux foi um fator crucial nesta investigação: em busca de local para sua nova peça, o grupo, com tradição de teatro de rua, propôs a parceria e estendeu a pesquisa do teatro para a pesquisa de novos conceitos de rua.
INCOMPLETUDE
A regeneração de vazios arquitetônicos, a reabilitação da cidade e o reúso de estruturas existentes é uma questão do Buritis, mas também é um desafio mais amplo das cidades contemporâneas. Ora, a intervenção efêmera pode ser entendida não como algo passageiro, mas como legado imaterial capaz de catalisar mudanças permanentes. E a cidade deve ser tomada como um campo de discussão cada vez mais aberto, onde a participação funciona como forma de alavancar e legitimar mudanças.
Agora, poderiam essas palafitas ser consideradas como um insólito fenômeno de âmbito universal? Como uma caricatura delas mesmas utilizada num sistema infiltrante que eventualmente se torna onipresente? Pode esse espaço tido como residual e maléfico ser exportado para outras arquiteturas finalizadas e invadir construções estáveis? O efeito desta operação pode ser surpreendentemente positivo como numa operação matemática: menos x menos = mais (assim como também corre o risco de operar apenas como um revivalismo nostálgico de algumas críticas notórias do Modernismo).
Há uma energia expectante só encontrada na incompletude, no vazio e no comum que se encontra logo ao nosso lado: os melhores futuros do existente estão em campos latentes que precisam ser revelados e ampliados em escalas cada vez maiores.
Assumindo as ambições da multiplicação universal, nesta nova escala a grelha das palafitas é aplicada em edifícios diversos e nada mais tem a ver com seu bairro ou cidade de origem. Ela não só complementa, mas também potencializa arquiteturas encontradas que tomamos como ponto de partida para uma adição: toda a arquitetura da cidade agora são “esperas” imaginárias que serão estendidas, cumprindo assim uma intenção inconsciente de voltar ao estado primitivo, embrionário, em obras, em crescimento.
A grelha é inserida sem distinções: em edifícios prosaicos, emblemáticos, simbólicos, ordinários; na periferia, no Centro; aqui, ali. Ele se espalha aleatoriamente, levando a liberdade de usos a edifícios estanques, encorajando novas atividades em espaços públicos, estendendo sua beleza absoluta como se fosse um tumor capaz de revigorar arquiteturas moribundas.
Uma cidade contaminada por este sistema é uma cidade para sempre em construção, para sempre incompleta, para sempre processo e nunca produto. Uma cidade de estruturas metabolistas espontâneas e não projetadas.
Para cada edifício, duas arquiteturas: uma determinada, a outra em aberto. Como numa relação simbiótica, esta arquitetura adicional se encaixa como uma luva nos edifícios originais a ponto de agora ser difícil olhar novamente para o original sem a sensação de que lhe falta algo. A cidade produto dessa operação é compacta e rala, acabada e inacabada, genérica e única. Permeando edifícios em diferentes posições (no topo, por baixo, no meio), o que vemos é uma sequência arrítmica de reservatórios espaciais indeterminados. E esta corrupção do existente está carregada de mudança, de liberdade, de mutabilidade, abrindo possibilidades inauditas para um novo domínio público muito além da polarização público-privada.
* Carlos M. Teixeira é arquiteto, autor de História do vazio em Belo Horizonte (Cosac Naify, 1999), Ode ao vazio (Nhamérica, 2017) e é um dos organizadores de Espaços Colaterais (Cidades Criativas, 2008). Fundou o escritório Vazio S/A Arquitetura e Urbanismo em 2002.
AÇÃO EXPERIMENTAL
Em Belo Horizonte, a relação entre espaço público e privado tem sido ponto de fissura entre os setores empresariais, governamentais e a sociedade civil há décadas. A constante privatização de espaços públicos e a passividade do poder público diante da especulação imobiliária foram capazes de mobilizar a população em ações de reapropriação da cidade.
Diferentes grupos da sociedade civil têm atuado em propostas de intervenções no ambiente urbano, com propósitos artísticos, sociais, políticos, redimensionando a relação entre habitantes e o ambiente onde circulam e moram, criam relações, enfim, vivem.
A partir da provocação feita pelos curadores de Misunderstandings – exposição na Galleria Campo organizada por um grupo de arquitetos italianos ligados à arquitetura radical dos anos 1970, o Coletivo Aurora, o crítico Eduardo de Jesus e o escritório de arquitetura Vazio S/A estão atualmente com novo projeto de intervenção na cidade.
As intervenções selecionadas serão escolhidas por um júri internacional e irão compor uma exposição no Viaduto das Artes, um instigante espaço cultural na região do Barreiro, em Belo Horizonte, instalado sob dois viadutos e sintonizado com o conceito geral de Outros Territórios: explorar as possibilidades de ativação de lacunas urbanas infraestruturais. Em momento posterior, as intervenções serão organizadas em forma de um festival cultural, quando se dará efetivamente a construção de algumas das propostas selecionadas.
Além de um roteiro livre de visitação às obras, a chamada pretende se configurar como um espaço para debate público do bairro, explorando interfaces entre arquitetura, artes visuais, iluminação pública e paisagem urbana, e problematizando a gestão da cidade, os passivos ambientais e o mercado imobiliário.
OUTROS TERRITÓRIOS
O edital e mais informações sobre projeto estão disponíveis em
www.outrosterritorios.com.br .