Por Mirian Chrystus, Eliane Marta Teixeira Lopes e Silvana Cóser
Julho de 1980
De repente, aquela mulher, sorrindo na foto 3x4 da revista Veja, nos assombrava: Eloisa Ballesteros, morta por seu marido com vários tiros, enquanto dormia. Motivo: suspeita de traição. Duas semanas depois, outra mulher, Maria Regina Souza Rocha, nas páginas dos jornais, morta a tiros, de manhã, ainda com o uniforme de ginástica. Motivo: o marido não aprovava seus novos modos. Ela tinha, inclusive, dado para fumar.
“É preciso fazer alguma coisa”, pensávamos nós, mulheres.
Julho de 2018
De repente, aquela mulher, tão linda, sorridente em fotos de família, aparecia naquelas imagens de câmera de segurança em preto e branco, no Jornal Nacional. Não havia som, mas dava para escutar os gritos desesperados pedindo socorro, pedindo ajuda, na calçada em frente ao prédio em que morava, na garagem, sendo derrubada e chutada dentro do elevador. Via-se ela caminhar para a morte, que ocorreu alguns minutos depois, longe das câmeras, arremessada da varanda do sexto andar. Motivo: o marido da advogada Tatiane Spitzner não queria a separação.
“É preciso fazer alguma coisa”, pensamos nós, mulheres.
m ambos os momentos, um pequeno grupo de jornalistas iniciou o movimento.
Em 1980, Dagmar Trindade e Mirian Chrystus, repórteres, e Antonieta Goulart, chefe de reportagem da TV Globo Minas.
Em tempos sem internet, o boca a boca, a imprensa – escrita e televisiva – funcionaram como um rastilho de pólvora. Foram realizadas reuniões na Pontifícia Universidade Católica (PUC Minas) e na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). A decisão: fazer um ato público no adro da Igreja São José, no coração de Belo Horizonte.
Como era a Belo Horizonte de 1980? Como era o Brasil?
Ainda estávamos numa ditadura. Já nos seus estertores, mas ainda viva. O país era governado por um militar, João Baptista Figueiredo, que prosseguia a linha da “distensão gradual, lenta e segura” proposta por Ernesto Geisel. Os anos mais terríveis de tortura tinham ficado para trás, mas a ameaça pairava no ar. Um ato público era algo original – e temerário.
Aquele ato tinha antecedentes.
Então, aquele pequeno grupo de jovens estudantes organizou no DCE um seminário que abordava a situação da mulher no trabalho, nas relações pessoais, na vida política.
Após o seminário do DCE/UFMG, o grupo continuou se reunindo e se tornou referência em Minas. O grupo lia e discutia principalmente A origem da família e da propriedade privada, de Engels (a busca da explicação de como havia se dado a grande derrocada do matriarcado); Descondicionamento da mulher, e Educar para a submissão, de Elena Belloti, que mostravam como, até antes de nascer, as expectativas eram diversas para meninos e meninas e como a educação forjava a submissão das mulheres.
A grande questão de fundo era “como havíamos nos tornado mulheres” (já que Simone de Beauvoir alertara que “ser mulher” não era uma questão meramente biológica, mas um aprendizado social), e assim, com menos valor, menos direitos, menos liberdade e... pouco prazer sexual. Aos 20 anos, estávamos preocupadas com a questão do orgasmo – ou a falta dele.
Naquele dia, 18 de agosto de 1980, toda essa energia estava concentrada no adro da Igreja São José. Como numa cena teatral, cerca de 400 mulheres nas escadarias portavam velas acesas e rosas vermelhas. Adélia Prado veio de Divinópolis e falou. Maria Campos, da Liga Feminina Católica; Genival Tourinho, do PDT, único homem a falar no ato; uma feminista do Rio de Janeiro; Helena Grecco, do Movimento Feminino pela Anistia. Mirian Chrystus encerrou com a leitura do Manifesto das Mineiras (leia na página 3), que reivindicava a redemocratização do país – alertando que a democracia tinha que começar em casa e que as novas ideias só vingariam quando misturadas ao leite materno.
Foi uma bela noite.
DEPOIMENTO
É legal, mas... é triste
“É legal quando inventam aplicativos que indicam lugares de risco ou um que seleciona motoristas mulheres, quando existe uma lei (não tão eficiente) para amparar brigas domésticas, quando algumas moças postam dicas de como se proteger ao andar na rua ou quando existe um vagão feminino no trem. Mas, mais do que tudo, é triste! É triste não se sentir senhora do seu corpo porque ele pode ser violado a qualquer hora. É triste ter medo de andar na rua, de passar um batom, de usar uma roupa... E saber que, mesmo sem nada disso, você ainda é alvo. É triste ter que ficar atenta até no transporte público. É triste ver as histórias horríveis ocorrendo com outras mulheres só por serem mulheres. É triste ver quando as histórias dessas mulheres são pejorativamente contadas. É triste ser diminuída a estereótipos que dispensam sobre nós em relação a estéticas, competição com as demais, cognição e comportamento.
Maria Martuchelli,
estudante da UFMG, de 19 anos, no Facebook (2018)
O mesmo slogan, a mesma indignação
Agosto de 2018
O mesmo slogan, a mesma indignação contra a mesma violência. Mas o mundo mudou, a sociedade é outra. Há 40 anos, o feminismo se dividia basicamente em duas grandes correntes, a europeia, com influência de Simone de Beauvoir, e a norte-americana, de Betty Friedan.
O feminismo norte-americano, em linhas gerais, era massivo e apontava falhas do sistema capitalista que poderiam ser sanadas. Já o feminismo europeu influenciava mais o meio universitário, que reverberava as ideias para a sociedade através da mídia. A principal questão colocada pela intelectual francesa foi questionar a imbricação destino e biologia. “Não se nasce mulher, torna-se mulher”, afirmou Simone de Beauvoir. Estava aberto o caminho que desembocaria não em linha reta, na ideia de Judith Butler a respeito do gênero como performance: o feminino como algo da esfera da construção de papéis. “A mulher é a portadora privilegiada do feminino”, afirmou, certa vez, a psicanalista Ana Portugal. Privilegiada, mas não a única. Homens podem ser portadores do feminino, principalmente aqueles que se colocam sob a bandeira das mulheres, segundo Lacan, os homens que não se veem e não agem como detentores do poder.
IDENTIFICAÇÃO
Assim, quando surgiu a ideia de se reeditar o ato de 1980, logo se constatou a necessidade de incorporar as várias vozes do feminismo atual: “ser mulher” passa a ser, inclusive juridicamente, parte de sentimento e identificação: tanto que a morte de mulheres trans por companheiros pode ser incluída no conceito de feminicídio, lei aprovada em 2015 pela presidente Dilma Rousseff.
De todos os fenômenos culturais, o que mais impactou o feminismo dos anos 1970/80 foi o feminismo negro. Ele não veio apenas como mais uma vertente a se somar, mas como a prática e reflexão teórica que colocou em xeque as bases do feminismo tradicional. Este foi criticado como essencialista, por não levar em conta a concretude das experiências singulares de grupos de mulheres que não apenas as brancas de classe média.
Assim, o movimento/ato “Quem Ama Não Mata” de 2018 vai refletir esse momento da cena atual. Na próxima sexta (9), a partir das 18h, na Avenida Álvares Cabral, em frente ao Sindicato dos Jornalistas, estarão presentes representantes de movimentos e coletivos que representam as lésbicas, as trans, as estudantes universitárias e secundaristas, as trabalhadoras rurais, as intelectuais, as representantes de instituições como a UFMG e a PUC, as prostitutas, as líderes comunitárias, as feministas negras. Somando-se às atrizes, cantoras, poetas, o ato será majoritariamente negro. Como negro é majoritariamente o Brasil. Todas vozes, em uníssono, contra o feminicídio e as outras formas de violência contra a mulher.
Mais uma vez, feminismo e política se encontram, se entrelaçam: em 1975, combatendo a ditadura militar; em 1980, reivindicando a redemocratização do país e a anistia. Agora, juntamente com as forças democráticas do país, contra violências praticadas durante o processo eleitoral, zelando pela nossa frágil democracia.
Mirian Chrystus é jornalista. Eliane Marta Teixeira Lopes é professora emérita da Faculdade de Educação (UFMG). Silvana Cóser é socióloga.
"Feminicídio é uma espécie de crime de ódio"
Na entrevista a seguir, Marlise Matos, professora doutora do Departamento de Ciência Política da UFMG, coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre as Mulheres (Nepem) e da pesquisa “Investigando características de gênero em processos de feminicídio em Minas Gerais”, realizada entre 2015 e 2018, fala sobre feminicídio. (Miriam Chrystus)
O que é exatamente o feminicídio?
A violência afeta de maneiras diferentes homens e mulheres. A sociedade brasileira é muito violenta em vários níveis, instâncias e esferas. No geral, afeta os homens no espaço público, na rua e, por conta do binarismo de gênero, afeta as mulheres no espaço privado, doméstico. O feminicídio é um crime contra a vida das mulheres por razões de dominância, de controle patriarcal dos corpos das mulheres. Geralmente, ele é consequência de um histórico de violência. Ele é um tipo de crime de ódio praticado por homens que colocam a mulher uma última vez na condição de objeto absoluto, retirando sua própria vida.
E qual é o modus operandi desses assassinatos?
Nos processos que analisamos, não se identificou uma única forma de matar. Encontramos alguma regularidade no uso de formas de crueldade: não é uma única facada, são muitas; não é um único tiro, são muitos, geralmente na face, para destruir o rosto da mulher. Esse tipo de crime vem acompanhado de requintes de crueldade, até de sinais de tortura.
Quais são as causas mais amplas do feminicídio?
A principal causa são as formas hierárquicas, assimétricas, das relações de gênero. A violência contra as mulheres é cíclica e crescente. Nunca começa com a facada, com o tiro. Geralmente é antecedida por coisas muito simples, tipo você não pode usar tal roupa, esse batom, ir a tal lugar com tal pessoa. Nada sendo feito, essas situações de violência terminam na morte da mulher.
O uso de álcool ou drogas pode também ser uma causa?
O abuso de álcool e drogas não é uma causa determinante – mas pode estar associado. Quase sempre, nos casos que analisamos, as pessoas tinham bebido muito, usado drogas que produzem estados alterados de consciência – que não justificam o cometimento do crime, mas estão associados.
Quem é o responsável primordial pela prática do feminicídio?
Para além do homem que comete o crime de feminicídio, temos a estrutura de uma sociedade profundamente patriarcal e violenta com as mulheres. O feminicídio é o ponto de chegada, o momento final de um relacionamento quase sempre violento. Em alguns casos, identificamos a omissão do Estado, porque sua função primordial é garantir a vida e a integridade dos indivíduos. A princípio, seriam crimes evitáveis. Muitas vezes, esses parceiros íntimos e assassinos têm outras experiências de violência que já tinham sido relatadas na Justiça, alguns até com medidas protetivas decretadas. E o Estado não conseguiu garantir a vida dessas mulheres. Então, além de ser um crime de ódio contra as mulheres individualmente, também é um crime de omissão do próprio Estado, que deveria dar segurança e garantia de vida a essas mulheres.
MOSTRA NA BIBLIOTECA
Na próxima segunda (5), a exposição Memórias do Movimento Quem Ama Não Mata será aberta, às 18h, na Biblioteca Pública de Minas Gerais.
A mostra faz um apanhado de ações feministas empreendidas no Brasil desde o século 19 até os dias de hoje. Haverá uma versão do Dicionário feminino da infâmia, lançado em novembro de 2015, exposta, assim como livros datados desde 1878. Estará disponível para consulta uma versão on-line do Dicionário.
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