A última imagem que retive de Geraldo Veloso foi simbólica, quase uma cena de cinema, uma cena que, depois, soube que havia sido de adeus: ele se despediu de mim e saiu caminhando pela Avenida Getúlio Vargas, e sabe-se lá por que meu olhar foi seguindo seu passo solitário e noturno. A cena, evocada agora, à luz da sua partida para o reino da saudade e da lembrança, assemelha uma cena de um filme de John Ford, diretor que Geraldo e eu tanto amávamos e, vez ou outra, era assunto de nossos papos.
Esse encontro foi numa sexta-feira à noite durante um evento literário em uma livraria da Savassi, mais precisamente no lançamento de um livro da Duda Monteiro Machado, amizade comum, e seria o derradeiro. No dia seguinte, um sábado, Geraldo Veloso faleceu sozinho em sua residência. No domingo, o triste telefonema de um amigo anunciando que ele não estava mais entre nós.
Nos últimos meses, nossos encontros se tornaram semanais, sempre às quintas-feiras, alternadamente, em duas livrarias da Savassi: a velha-guarda do CEC se reunia, religiosamente – e numa dessas quintas se dava na livraria na qual trabalho. Eram tertúlias inspiradas, instrutivas, amenas e divertidas. A vida, o cinema, a música e a arte passadas a limpo, como diria o Poeta Maior. Mas, felizmente, minha convivência com Geraldo vem de muito antes.
Nos fins da década de 1970 e início dos anos 1980, ingressei no Centro de Estudos Cinematográficos (CEC), fazendo parte da chamada Geração Cachoeira, ao lado de Ivan Claudio, Alcino Leite Neto, Paulo Faleiro, Fábio Leite, Marcelo Castilho Avellar, entre outros. Nesse cineclube mitológico, tive o prazer de conhecer Geraldo Veloso. Primeiro, pelas páginas da Seção de cinema que o grupo editava no Estado de Minas, num longo e brilhante artigo em que o jazz e o cinema se alternavam, mas, logo em seguida, encontraria ele, pessoalmente, nas reuniões, e no curso de cinema promovido pelo CEC e no qual foi um dos professores. Suas aulas, atípicas e singulares, refletiam a maneira de ser do próprio Veloso.
Geraldo foi um mestre da retórica, dono de verve assombrosa, caudalosa, nunca cansativa, em que nomes de mestres do jazz, diretores, eventualmente escritores, personalidades culturais iam se sucedendo freneticamente. Falava muito, porém, tinha o dom de deixar o interlocutor falar e de saber ouvir, respeitava a opinião alheia. Em suma: um gentleman, algo raro nestes tempos em que as opiniões causam discórdia.
O aspecto marcante para mim, mais que essa capacidade descomunal wellesiana para a retórica, é que Veloso era um homem que vivia, respirava cinema 24 quadros por segundo, 24 horas por dia. Não me recordo de nenhuma prosa dele que não fosse sobre cinema. Sim, gostava muito de jazz, rock e música brasileira. Assistiu a concertos de boa parte dos grandes artistas das décadas de 1960 e 1970, mas era o cinema o que o movia. Amava a literatura, principalmente Henry Miller. Ele se definia simplesmente como um curioso. “Quando vi Jules e Jim, do François Truffaut, encontrei a minha justificação: Jim conta para Jules que um professor o aconselhou a ser um curioso. Ali, percebi a minha real vocação”, assim ele escreveu em seu único livro publicado e com o apropriado título de O cinema através de mim.
Agora, ele se foi e as memórias dele, com ele, se atropelam, vertiginosas, rápidas, fragmentadas, desfiguradas, como em um filme: uma noite regada com muito scotch, discos de jazz e rock, em minha casa, noite adentro, e eu embasbacado, quase alucinado, ouvindo as peripécias que ele ia desenrolando como se narrasse um filme imaginário de sua própria vida. ‘Você deveria escrever suas memórias, reais, exageradas ou não, são maravilhosas”, eu lhe disse naquela noite. Muitas outras vezes em que o encontrei repetiria a sugestão.
* Fernando Fonseca é livreiro, membro do CEC e ex-crítico de cinema.
Esse encontro foi numa sexta-feira à noite durante um evento literário em uma livraria da Savassi, mais precisamente no lançamento de um livro da Duda Monteiro Machado, amizade comum, e seria o derradeiro. No dia seguinte, um sábado, Geraldo Veloso faleceu sozinho em sua residência. No domingo, o triste telefonema de um amigo anunciando que ele não estava mais entre nós.
Nos últimos meses, nossos encontros se tornaram semanais, sempre às quintas-feiras, alternadamente, em duas livrarias da Savassi: a velha-guarda do CEC se reunia, religiosamente – e numa dessas quintas se dava na livraria na qual trabalho. Eram tertúlias inspiradas, instrutivas, amenas e divertidas. A vida, o cinema, a música e a arte passadas a limpo, como diria o Poeta Maior. Mas, felizmente, minha convivência com Geraldo vem de muito antes.
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Agora, ele se foi e as memórias dele, com ele, se atropelam, vertiginosas, rápidas, fragmentadas, desfiguradas, como em um filme: uma noite regada com muito scotch, discos de jazz e rock, em minha casa, noite adentro, e eu embasbacado, quase alucinado, ouvindo as peripécias que ele ia desenrolando como se narrasse um filme imaginário de sua própria vida. ‘Você deveria escrever suas memórias, reais, exageradas ou não, são maravilhosas”, eu lhe disse naquela noite. Muitas outras vezes em que o encontrei repetiria a sugestão.
* Fernando Fonseca é livreiro, membro do CEC e ex-crítico de cinema.