
Esse encontro foi numa sexta-feira à noite durante um evento literário em uma livraria da Savassi, mais precisamente no lançamento de um livro da Duda Monteiro Machado, amizade comum, e seria o derradeiro. No dia seguinte, um sábado, Geraldo Veloso faleceu sozinho em sua residência. No domingo, o triste telefonema de um amigo anunciando que ele não estava mais entre nós.
Nos últimos meses, nossos encontros se tornaram semanais, sempre às quintas-feiras, alternadamente, em duas livrarias da Savassi: a velha-guarda do CEC se reunia, religiosamente – e numa dessas quintas se dava na livraria na qual trabalho. Eram tertúlias inspiradas, instrutivas, amenas e divertidas. A vida, o cinema, a música e a arte passadas a limpo, como diria o Poeta Maior. Mas, felizmente, minha convivência com Geraldo vem de muito antes.
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Geraldo foi um mestre da retórica, dono de verve assombrosa, caudalosa, nunca cansativa, em que nomes de mestres do jazz, diretores, eventualmente escritores, personalidades culturais iam se sucedendo freneticamente. Falava muito, porém, tinha o dom de deixar o interlocutor falar e de saber ouvir, respeitava a opinião alheia. Em suma: um gentleman, algo raro nestes tempos em que as opiniões causam discórdia.
O aspecto marcante para mim, mais que essa capacidade descomunal wellesiana para a retórica, é que Veloso era um homem que vivia, respirava cinema 24 quadros por segundo, 24 horas por dia. Não me recordo de nenhuma prosa dele que não fosse sobre cinema. Sim, gostava muito de jazz, rock e música brasileira. Assistiu a concertos de boa parte dos grandes artistas das décadas de 1960 e 1970, mas era o cinema o que o movia. Amava a literatura, principalmente Henry Miller. Ele se definia simplesmente como um curioso. “Quando vi Jules e Jim, do François Truffaut, encontrei a minha justificação: Jim conta para Jules que um professor o aconselhou a ser um curioso. Ali, percebi a minha real vocação”, assim ele escreveu em seu único livro publicado e com o apropriado título de O cinema através de mim.
Agora, ele se foi e as memórias dele, com ele, se atropelam, vertiginosas, rápidas, fragmentadas, desfiguradas, como em um filme: uma noite regada com muito scotch, discos de jazz e rock, em minha casa, noite adentro, e eu embasbacado, quase alucinado, ouvindo as peripécias que ele ia desenrolando como se narrasse um filme imaginário de sua própria vida. ‘Você deveria escrever suas memórias, reais, exageradas ou não, são maravilhosas”, eu lhe disse naquela noite. Muitas outras vezes em que o encontrei repetiria a sugestão.
* Fernando Fonseca é livreiro, membro do CEC e ex-crítico de cinema.