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Ao lançar 'Eufrates', escritor André de Leones sai em defesa da amizade como a salvação

“A gente passa de um lugar para outro, de um estado para outro, daqui para lá”, constata um dos personagens de Eufrates. A reflexão também ajuda a definir a estrutura narrativa do novo livro de André de Leones, que transita por diferentes lugares: São Paulo, Buenos Aires, Jerusalém, Brasília, Belém, entre 2001 e 2013. Citado no Apocalipse e em outras passagens da Bíblia, o rio que delimita a Mesopotâmia batiza também o primeiro e o último capítulo do sexto romance do autor goiano, nascido em 1980 e radicado na capital paulista, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura em 2006 com Hoje está um dia morto.
- Foto: José Olympio/Divulgação

Depois do conciso e vigoroso Abaixo do paraíso, Leones volta com um romance caudaloso e multifacetado. Entrelaça diversos personagens e tramas a partir das histórias de desencontros dos amigos Jonas e Moshe. Ressentimento, desemprego, fé, deslocamentos, sexo (quase sempre tão solitário quanto as personagens), até amor se misturam em histórias nada extraordinárias de pessoas comuns, “minha história, sua história, a história de qualquer pessoa”, o que garante a força maior de um romance pontuado por momentos de grande inspiração, como a recriação, de tirar o fôlego, de uma disputa violenta durante e depois de um jogo de basquete. “A amizade é o tema norteador do livro, e fora dela não creio que haja salvação”, acredita Leones. Confira, a seguir, a entrevista com o autor que diz escrever para “qualquer pessoa que esteja disposta a olhar para si e para o outro com um mínimo de interesse, cuidado e generosidade” e que, como um de seus personagens, tenta alcançar (e delinear) as sombras que nos rodeiam.

Abaixo do paraíso e, agora, Eufrates. Como referências bíblicas inspiram a sua ficção?
Não só a Bíblia, mas muito do que leio inspira o meu trabalho como ficcionista.
Quanto ao uso de referências bíblicas, ele é mais acentuado em Abaixo do paraíso porque o protagonista, Cristiano, foi aluno de colégio salesiano e está sempre lidando com essa “herança”, inclusive (ou sobretudo) para sublinhar seu abastardamento em relação a ela. Em Eufrates, esse aspecto é menos evidente, embora o romance termine com uma sugestão apocalíptica, metaforicamente falando: há uma tempestade raivando no horizonte, como diria Appelfeld, e não há muito o que possamos fazer para evitá-la.

Por que a opção por publicar breves descrições dos capítulos na apresentação, batizada de “Itinerário”?
Dada a dispersão temporal e espacial do romance, achei por bem mapeá-lo para o leitor. Além disso, o termo “itinerário” dá a ideia de uma viagem, coisa que também diz muito da(s) história(s) que constituem Eufrates e da(s) forma(s) como decidi desenvolvê-la(s). É a mesma ideia que permeia Como desaparecer completamente e Terra de casas vazias: acompanhar determinados personagens vida afora, recortando certas passagens de suas vidas, em movimentos mais ou menos elípticos.

Por que o romance tomou forma aos poucos, no decorrer dos últimos 10 anos? O que o impedia de concluir?
Nada me impedia de concluí-lo porque a ideia de reunir e reescrever algumas histórias dispersas, nas quais trabalhei no decorrer desses anos todos, estruturando-as em uma narrativa maior, bem, essa ideia só me ocorreu há menos tempo. Logo, só digo que o romance tomou forma aos poucos quando olho retrospectivamente. Por exemplo: escrevi as primeiras versões da viagem de Jonas a Buenos Aires ali por 2011; era, então, um conto. Mostrei a um amigo, Martim Vasques da Cunha, e ele me disse que aquilo parecia parte de algo maior, de um romance.
Arquivei a história, mas fiquei com isso na cabeça. Anos depois, quando me dispus a dar forma a uma narrativa maior, aquela história ressurgiu e, reescrita, foi absorvida por Eufrates – ou, melhor dizendo, reapareceu como um de seus afluentes.

“Os dois rumo ao Eufrates. Pai e filho. Rumo ao grande rio.” O que representa o Eufrates para a sua narrativa?

Muitas coisas. Uma delas é esse destino comum que aparece em um sonho para Moshe, simbolizando um entendimento possível com seu pai, Miguel. O “grande rio” seria esse lugar de comunhão, onde poderíamos esquecer nossas diferenças, ainda que momentaneamente. Deus sabe o quanto estamos necessitados de um lugar assim.

Há, no livro, a alternância entre o passado e o presente, já antecipada pela citação de Saul Bellow. Os dois tempos influenciaram também na definição da estrutura narrativa de Eufrates?
Eu não diria alternância entre passado e presente, pois é como se os acontecimentos fossem quase sempre presentificados sem que isso diga respeito, exatamente, a uma recorrência a flashbacks (embora isso também aconteça).
É como se a narrativa, em vez de apenas se referir a acontecimentos passados, estivesse livre no tempo, à disposição para se ressituar aqui e ali.

Quais as principais diferenças de Eufrates para seus livros anteriores?

Não creio que haja grandes diferenças. Talvez meus três primeiros livros tenham uma linguagem mais desbragada, mas os temas principais (família, deslocamento, inadequação, finitude) estão lá desde o começo. Quanto à forma como trabalho esses temas, e conforme respondi acima, Eufrates é um desdobramento dos esforços realizados em dois romances anteriores – Como desaparecer completamente e Terra de casas vazias. Talvez haja, da minha parte, uma tentativa de adensamento dessas estruturas dispersas e fugidias. Citando o nada velho Godard, quanto mais o organismo é complexo, mais ele é livre.

Por que você acredita que amizade é a palavra-chave do livro? Poderia citar outros romances, nacionais ou internacionais, que têm a amizade como principal tema?
Porque o eixo do romance é a amizade entre Moshe e Jonas, seus protagonistas. E porque vivemos um momento no qual a inimizade (para usar um eufemismo) parece dar o tom da nossa existência. Embora muito utilizado, o termo “amizade” mereceria um maior aprofundamento. Lembro-me de sua importância na Ética a Nicômaco, de Aristóteles, especificamente nos livros 8 e 9. Também não poderia deixar de citar a Ilíada: a philia é um ponto importantíssimo em todo o poema homérico. Em se tratando de romances, creio que haja inúmeros exemplos.
Neste momento me ocorrem Thomas Pynchon (Mason & Dixon), Saul Bellow (O legado de Humboldt) e Bernardo Ajzenberg (Gostar de ostras). Não digo que a amizade seja “o” tema desses livros, mas acredito que ela se faça presente neles de uma forma ou de outra.

“O mundo é bem maior que Perdizes, bem maior que São Paulo.” É o que você tenta mostrar em seus romances? Sair dos limites geográficos e afetivos da vida urbana em uma grande metrópole?

Não apenas dos limites geográficos, mas sobretudo dos existenciais. Olhar as coisas de outra perspectiva, menos “aterrada”, menos imediata. Ter uma noção menos alzheimeriana das coisas, olhando e compreendendo a vida (nossa e alheia) de forma mais expansiva, com maior generosidade, com mais cuidado.

“A mágoa ali. Intacta.” Concorda que sentimentos represados, como ressentimentos, marcam a jornada de alguns de seus principais personagens? E eles tentam, cada um da sua maneira, enfrentar a solidão?
Acho que esse tipo de (res)sentimento marca a jornada de todos nós, bem como a solidão – seja eventual, seja crônica. Logo, sim, é uma boa chave para ler e circular pelas histórias que escrevo. E buscar o outro, o próximo, é sempre um esforço saudável e muito bem-vindo.

Escrever também é sair “no encalço de sombras”, como faz Jonas, um de seus personagens?

Acho que escrever é, sim, uma tentativa de alcançar e delinear essas sombras que nos rodeiam, individualizá-las, conhecê-las, ouvi-las, compreendê-las. Quando elas deixam de ser sombras, quando eu as enxergo assim individualizadas, há uma chance maior de uma convivência saudável comigo mesmo e com os outros, não importa o quão diferentes de mim eles sejam – ou, no meu entender, quanto mais diferentes, melhor.

“As pessoas não ouvem. As pessoas são loucas.” Essa passagem, um flashback, aplica-se também ao Brasil de 2018? A leitura poderia ser uma forma eficiente de enfrentar a surdez e a loucura nacional em tempos de posições políticas extremadas?
Sim, é perfeitamente aplicável ao momento atual. E, sim, a leitura pode ser uma forma eficiente de ressituar o outro, de nos ressituarmos em relação ao outro, de compreendermos o nosso lugar e o lugar do outro, de criar um espaço comum, onde seja possível aquela convivência saudável de que falei acima.
A leitura exige certo grau de ensimesmamento e, ao mesmo tempo, possibilita uma abertura para o que está fora e é diverso de nós.

Por que e para quem você escreve?

Escrevo para qualquer pessoa que esteja disposta a olhar para si e para o outro com um mínimo de interesse, cuidado e generosidade. Escrevo porque sim, e este “sim” não é um “sim” qualquer – é o “sim” que se abre a tudo o que está aí fora, o “sim” de quem se coloca desarmado diante do mundo. É o “sim” de Molly Bloom (personagem de Ulysses, de James Joyce).


LEONES POR LEONES

O autor apresenta seus livros anteriores

• Hoje está um dia morto
(Record, 2006)

"Meu primeiro romance se passa inteiramente na cidade em que fui criado, Silvânia, no interior de Goiás. Estão nele a tibieza católica que trava corações e mentes, a falta de perspectivas da juventude, o suicídio como reação plausível e a literatura como resposta possível. Ganhou o Prêmio Sesc de Literatura e virou filme, Dias vazios, premiado em festivais e que chega ao circuito em 2019."

• Paz na terra entre os monstros
(Record, 2008)

"Oito contos e uma novela, escritos antes, durante e após o Dia morto. Os temas se repetem, mas começo a falar mais baixo e experimentar outras formas de desenvolvê-los. Às vezes funciona."

• Como desaparecer completamente
(Rocco, 2010)

"O primeiro romance-coral, em que várias histórias e personagens se cruzam. Este se passa em São Paulo e é sobre relações amorosas e familiares no começo da nossa atual era de autismo
afetivo e político."

• Dentes negros
(Rocco, 2011)

"Romance pós-apocalíptico, em que uma misteriosa epidemia devasta a maior parte do país. Há quem sobreviva e tente recomeçar a vida. Não chega a ser uma distopia, até porque ela perderia fácil para a vida real."

• Terra de casas vazias
(Rocco, 2013)

"Outro romance-coral. Brasília, São Paulo, Jerusalém. O tema que (des)une as histórias e os personagens é a perda. E o Brasil é mesmo esse luto constante, o enterro interminável de todos e cada um de nós."

• Abaixo do paraíso
(Rocco, 2016)

"Um road novel. Um tarefeiro vive de fazer servicinhos sujos para um político. Após uma ocorrência imprevista (para dizer pouco), ele se vê obrigado a fugir. A indistinção entre o mundo político e o submundo criminoso dá o tom da primeira parte do romance. Já a segunda é sobre voltar para casa."   

• EUFRATES
• De André de Leones
• José Olympio
• 392 páginas
• R$ 57,90

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