Quando se fala de Lúcio Cardoso, pensa-se imediatamente no escritor. Porém, além de romancista, poeta e cronista, Lúcio atuou em outras áreas da expressão. Foi também desenhista, pintor e autor de peças teatrais, tendo sido fundador do Teatro de Câmara. Escreveu, ainda, argumentos para cinema chegando a dirigir um filme com roteiro próprio, que acabou por não conseguir finalizar: A mulher de longe.
O projeto de Lúcio é o mesmo, mas os meios expressivos é que variaram. Sem dúvida, a escrita foi o principal deles e suas incursões pelo teatro, pelo cinema e pelas artes plásticas consistiram num desdobramento do seu projeto de escritura.
Quem conhece a obra de Lúcio é capaz de reconhecer nele, além de um delator do que há de mais escondido na alma humana, um sofisticado criador de imagens. Formas, cores, manchas, sombras, luzes, figuras, objetos, cenas, paisagens ocupam espaço nas entrelinhas do texto, transbordando para fora da página e explodindo diante das retinas estupefatas do leitor que é capturado por esse amálgama de texto, imagem, poesia, paixão.
É o próprio Lúcio quem revela de onde tira as imagens presentes na escrita, na pintura e nos desenhos. Em seu diário afirma que seu olhar é filtrado pela memória. Assim escreve: “as coisas para serem vistas por mim, têm necessidade de preexistirem no meu íntimo”. Se é possível afirmar que a obra é uma só e que o que varia são os meios utilizados para realizá-la, no caso de Lúcio pode-se também afirmar que a principal matéria que a compõe também é a mesma. O que a alimenta ou o principal elemento de composição dessa obra é a memória. Esta é para Lúcio alimento poético que colabora na atmosfera de suas criações. É das névoas imprecisas da lembrança que surgem as imagens que recria, filtradas pelas impressões de seus olhos de menino. As paisagens que encontra e com as quais se identifica não são por ele descobertas, mas, sim, reconhecidas, segundo suas palavras – “uma verdade que do lado de fora vem encontrar o seu eco (...), eco de uma verdade existente ou existida” – e que desperta alguma coisa remota retida nas retinas do menino. Em outro trecho do Diário, revelaria “O que olha por mim são sempre olhos de menino”.
Aos 50 anos Lúcio foi acometido por um derrame que o deixou afásico. Impedido de escrever, passou a se valer do desenho e da pintura como forma de expressão. A necessidade de criar o levou a encontrar nessa expressão, que já lhe era familiar, uma maneira de continuar a se inscrever na vida.
Após o derrame, por indicação do doutor Pedro Nava, Lúcio passa a frequentar a Associação Brasileira Beneficente de Reabilitação (ABBR), para tratamento por meio de fisioterapia, fonoaudiologia, musicoterapia e terapia ocupacional. Lindaura Portela, pintora e terapeuta ocupacional que cuidava de Lúcio, passou a pesquisar suas aptidões naturais, o que levou à redescoberta da pintura. Estimulado a voltar a pintar, agora com a mão esquerda, começa uma nova fase na vida.
Os trabalhos iniciais denunciam a dificuldade motora ocasionada pelo derrame, guardando semelhança com traçados infantis. Essa semelhança faz pensar numa relação com a fase que principiava como uma espécie de infância nesse renascer de uma nova vida que o aguardava. Essa relação simbólica parece denunciada num de seus primeiros desenhos em que se vê uma espécie de parque com uma roda-gigante e uma lona armada. O menino Nonô que o habita põe os olhos de fora e volta a criar imagens que residem num “entrelugar” entre o vivido e o imaginado.
Aos poucos o Corcel de Fogo – forma como Clarisse Lispector o chamava – vem surgindo montado em pelo por esse menino que não quer morrer. Surgem plenas de cor, de massa e de gesto paisagens e figuras que residem no seu universo interior feito do barro da lembrança e da paixão.
Suas estranhas paisagens e figuras, estejam elas nos romances ou nas pinturas, parecem pertencer ao “tempo do perdido”, expressão sua. Seu olhar, transformado pelo filtro da memória, é o que faz com que Lúcio componha sua obra com uma mesma matéria-prima de lembrança e paixão.
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Nos diários, Lúcio diversas vezes traz reflexões que são como que chaves de leitura para sua obra. Num determinado trecho afirma o seguinte: “Posso definir no entanto: o romance, por exemplo, não é para mim como uma pintura (abaixo os homens do pincel!) mas como um estado de paixão. Não quero que o meu possível leitor encontre tal ou tal árvore, tal ou tal banco, semelhante ao banco, à árvore que conhece. Quero – e com que violência – que ele depare em meus escritos com uma árvore e um banco recriados através de um movimento de paixão, e que assim designados, assim reconhecidos, possa situá-los em seu espírito como elementos da minha atmosfera de declive e tempestade”.
Nessa afirmação em tom de manifesto, Lúcio diz não querer que seu leitor depare em seus romances com uma árvore ou um banco reconhecíveis, mas que aqueles com os quais vai se deparar foram transformados, recriados, através de um movimento de paixão. Parece querer dizer que isso os diferenciaria de um banco ou de uma árvore pintados, diante dos quais é possível identificar-se pela semelhança de forma: banco, árvore. Embora reafirme a diferença entre o romance e a pintura, o primeiro uma obra a ser fruída no tempo e a segunda no espaço, esse desejo, porém, parece acompanhá-lo quando ele se lança a um trabalho de pintura, pois, as cenas, as paisagens e os personagens que encontramos nelas são tão subjetivos que é possível perceber se tratar de imagens recriadas pela paixão e colhidas de algum lugar entre as brumas da lembrança. Elementos de sua atmosfera de declive e tempestade.
De maneira geral seus desenhos e pinturas não são feitos a partir de uma referência. Como a observação direta de uma figura ou cena, ou uma fotografia, embora isso possa ocorrer ocasionalmente. Além de possuir certa liberdade composicional, percebe-se que as imagens que contêm fazem parte de um universo que não se encontra limitado à realidade.
Lúcio revela que suas paisagens estão relacionadas a um estado de alma, e isso fica evidente tanto na escrita quanto na obra plástica. O pesquisador Mario Carelli fala de um “influxo antropomórfico” presente nas paisagens de Lúcio, o que empresta às suas paisagens e aos elementos que as compõem algo que as relaciona a sentimentos e conflitos humanos. Há um pastel seu, por exemplo, que consiste numa estranha paisagem de árvores retorcidas. A impressão que nos causa é a de que estamos entrando num bosque do inferno de Dante, e que toda a paisagem se retorce sofredora, atormentada pela danação.
A capacidade de lidar com a plasticidade das imagens e de manipular elementos que participam intimamente do universo da expressão visual na composição de sua escrita — cores, traços, manchas, contrastes, luzes, sombras — ajudam a alinhavar os meios de que se valeu para se exprimir, e foram de grande importância quando precisou passar de escritor que pintava esporadicamente, para pintor que tentava se manter vivo, alimentando-se dos mesmos elementos que o levaram um dia a escrever. Entretanto, Lúcio não fazia literatura pintada, nem tampouco pintura verbalizada. Os elementos plásticos, poéticos e literários desempenharam cada qual o papel que lhes cabia de acordo como o meio em que foram usados.
Andréa Vilela é artista plástica, doutora em literatura brasileira (UFMG) e professora da Escola de Belas Artes da UFMG.