Secchin pertence a essa família moderna dos poetas-críticos, cuja escrita – em prosa ou verso – sempre toca um modo de pensar a poesia e seu lugar na vida e no mundo. Para muitos, trata-se de uma contradição em termos: o poeta, como crítico, nunca será mais que um diletante. Para outros, ao contrário, trata-se de uma inevitabilidade: “Todo verdadeiro poeta é necessariamente um crítico de primeira ordem”, escreveu Valéry (em causa própria).
Contraditório ou necessário, se não mesmo ambas as coisas, o poeta-crítico é uma figura em baixa nos dias atuais. A cultura do entretenimento é mais propícia ao poeta-relações-públicas, autoficcional e autoempenhado flâneur das redes sociais. Por isso aquele é mais oportuno, justamente por ser tão extemporâneo seu inconformismo. Aos três tapinhas nas costas, o poeta-crítico sempre acabará preferindo, como Maiakóvski, dar uma “bofetada no gosto público”.
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Contudo, ao afirmar uma concepção da poesia como “discurso da desordem consequente”, Secchin sem perceber aponta o nexo entre seus Percursos de crítico e sua “desdicção” como poeta. Na origem de tudo está um “leitor voraz e constante de bibliotecas públicas”, despertado por essa atração negativa das possibilidades desconformes. A face oculta do poeta-crítico pode ser entrevista nas “memórias de um leitor de poesia” que antecedem seus ensaios. Desdizendo o título, não são “da poesia brasileira” os percursos que vamos ler, e sim os de um leitor assíduo através de uma tradição dentro da qual ele acaba por se ver inserido.
Daí o autor não ter a menor pretensão de formar um tratado, nem de escrever uma história. Quem lê seus Percursos junto com Desdizer compreende bem as afinidades que motivaram as escolhas e as exclusões. Poeta surgido no Rio de Janeiro dos anos 1970, no contexto de uma virada subjetiva de resistência às vanguardas construtivas que se impuseram antes em São Paulo, o crítico não se anima a explorar, por exemplo, o concretismo e seus sucedâneos. Mas relê os “clássicos” do romantismo, com olhar dessacralizador, capaz de espanar a poeira que cobre as joias deixadas por Gonçalves Dias (como o Leito de folhas verdes), Álvares de Azevedo (É ela! É ela! É ela! É ela!), Fagundes Varela (Aurora) e outros.
Trocando de livro, o leitor achará os ecos de tanta leitura. Por exemplo, num poema como É ele!: “No Catumbi, montado a cavalo, / lá vai o antigo poeta / visitar o namorado”. Ou em muitos outros em que o poeta pode brincar com a biblioteca do crítico, ou para homenagear o “negro cisne” Cruz e Sousa ou para explorar em alexandrinos impecáveis a tríade do Parnaso nacional, formada por “Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac”, “Antônio Mariano Alberto de Oliveira” e “Raimundo da Mota Azevedo Correia” (salvo para a metrificação com o uso esperto de um trema tão improvável quanto proscrito).
Mas a maior parte dos Percursos está voltada para o impressionante elenco da poesia brasileira do século passado. À bem conhecida contribuição de Secchin à fortuna crítica de João Cabral de Melo Neto, aqui se acham também acréscimos relevantes às de Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, Vinicius de Moraes e outros. Ao contrário de tanta gente que lida com poesia na Universidade, Secchin (que por muitos anos foi professor da UFRJ) leva para a crítica a marca do leitor de poesia, que nunca aceitaria subordinar um poema à retórica de filosofemas supostamente teóricos, apinhados de soporíferas notas de rodapé.
Essa marca se combina com outra, muito nítida em Desdizer: o crítico aqui conhece os segredos do ofício. O poema – “este local do crime” – tem em Secchin um artesão eficaz, cheio de verve e uma agudeza malandra, que faz o apuro formal trabalhar na contramão de uma dicção pomposa. Por exemplo, em Disk-Morte: “Para acabar com angústias e tormentos, / conheça nosso lançamento inédito: / basta ligar para o 0-800 / e compre a morte no cartão de crédito”. Ou, nesse verso euforizante: “Matou o analista e foi a Miami”. Assim descomplicado, ele pode até vestir um chapéu de Carmem Miranda para comemorar a liberdade de compor: “Disseram que voltei muito mecanizado, / com ritmo correto, muita rima rica, / que não tolero nada que não seja aquilo / que seja exatamente o que Bilac dita”.
O êxito desses poemas deve muito ao lastro de leitura de que os ensaios são uma amostra restrita à tradição brasileira. Isso alinha Secchin junto com outros poetas de sua geração que pretenderam buscar uma correlação forte entre a poesia e a vida, mas sem ingenuidade a respeito de nenhum dos dois termos dessa equação irresolvível. O primeiro nome que vem à mente é o de Ana Cristina Cesar, sua colega na marcante antologia 26 poetas hoje, lançada por Heloisa Buarque de Hollanda em 1976. Mas, por todos os outros lados, ele é bem diferente dela, que se inclina mais para o conceitual do que para o artesanato.
Mais parecido é Paulo Henriques Britto, que também é capaz de versificar como quem fala ao telefone e sabe “desconcertar” sonetos, metrificando o tom coloquial. Ao lado desse outro artesão, cujo humor entretanto é mais amargo e melancólico, Secchin se distingue por uma espécie irônica de eutrapelia (palavra que o Houaiss define como “modo de gracejar sem ofender, zombaria inocente” – mas a ironia é por definição a perda da inocência). Por aí se entende melhor, sem maior mistificação, a frase forte que o leitor encontra no começo dos ensaios: “O poema é a doença da língua e a saúde da linguagem”.
Paulo Henriques é um dos contemporâneos comentados por Secchin, pelo seu “jogo de acolhimento e recusa do legado de João Cabral”, reprocessado “em desleitura”. Valeria a pena considerar se essas observações não servem também para elucidar a poética do ensaísta. Essa possibilidade, descoberta no final dos Percursos, põe sob suspeita tudo o que foi percorrido antes. Dizem que o poeta-crítico, seja qual for seu assunto, está sempre falando de fato sobre a própria obra poética. Mas isso – alguém duvida? – apenas aumenta a importância do ensaísmo de Secchin.
*Sérgio Alcides é crítico literário, professor da Faculdade de Letras da UFMG
PALESTRA E DEBATE
O poeta e pesquisador Antonio Carlos Secchin vem a Belo Horizonte na próxima semana para dois eventos. Na terça (4/9), às 14h30, na Faculdade de Letras da UFMG, dará a palestra “(Re)desdizer”, sobre sua trajetória poética, e na sequência autografará o livro Desdizer (Topbooks, 212 pág., 2017, R$ 50), com sua poesia reunida. Na quarta (5/9), às 19h30, participa do projeto Sempre um Papo no debate e lançamento do livro Percursos da poesia brasileira, no teatro da Biblioteca Pública Estadual (Praça da Liberdade, 21, Funcionários), com entrada franca.Sérgio Alcides é crítico literário, professor da Faculdade de Letras da UFMG e autor de Píer: poemas (Editora 34).
PERCURSOS DA POESIA BRASILEIRA – DO SÉCULO XVIII AO XXI
De Antonio Carlos Secchin
Autêntica/Editora UFMG
368 páginas
R$ 59,80 (livro) e R$ 29,90 (e-book)