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Livro da argentina Selva Almada mistura aspectos documentais e ficcionais para narrar e investigar

Andrea Danne, de 19 anos, apunhalada enquanto dormia. Maria Luisa Quevedo, de 15, estuprada e estrangulada. Sarita Mundin, de 20, encontrada morta à beira de um rio. A escritora argentina Selva Almada ficou um tempo com essas histórias na cabeça antes de escrever Garotas mortas. Especialmente a história de Andrea Danne, original da mesma cidade da autora, Entre Ríos, ao norte de Buenos Aires. Quando menina, Selva ouvira falar do assassinato. Depois vieram outros, muitos outros. Tantos que, em outubro de 2016, espantadas com a brutalidade do assassinato de Lucía Perez, as argentinas pararam o país em uma greve de uma hora. Foram mais de 200 mulheres assassinadas entre janeiro e outubro daquele ano.

No Brasil, no mesmo ano, foram mais de 800.
- Foto: Todavia Livros/Divulgação
Segundo a Organização das Nações Unidas, o Brasil ocupa o quinto lugar em países com maior número de feminicídio no mundo. Selva nunca encontra resposta para a pergunta “por que matar uma mulher exclusivamente pelo fato de ser mulher?” e foi um pouco dessa inquietação recorrente que nasceu Garotas mortas.

Escrito de forma documental, mas muito afetivo e com recursos da ficção, o livro conta a história de três feminicídios ocorridos na Argentina nos anos 1980. Selva vasculhou em registros oficiais, documentos de investigação, reportagens de jornal e empreendeu, ela mesma, uma pesquisa que incluiu dezenas de entrevistas com testemunhas, familiares, amigos e conhecidos das vítimas para reconstituir os últimos passos das três mulheres e para refletir sobre o fato de os crimes nunca terem sido solucionados. Também autora do romance O vento que arrasa (Cosac Naify, 2015), Almada escreveu Garotas mortas um pouco para lidar com a perplexidade, um pouco para entender como a vítima acaba sendo julgada, para compreender o que leva um homem a matar uma mulher, e ainda como manifesto político para sacudir o leitor.

ENTREVISTA/Selva Almada
escritora


O Brasil tem um dos maiores números de feminicídios do mundo. O que, na sua opinião, leva uma sociedade a esse estado?
A raiz da violência de gênero sempre é cultural: na América Latina, na maioria dos nossos países, a cultura misógina e patriarcal dá permissão para matar. Os homens veem a mulher como um objeto de sua propriedade, do qual podem dispor inclusive tirando-lhe a vida simplesmente porque sim. Em nossas sociedades predomina a cultura do estupro (da qual pouco se fala porque é um tabu): a violência de gênero está naturalizada. Como disse Rita Segato, cada vez que um homem assassina uma mulher, ele está advertindo todas as outras. É preciso reverter essa cultura. Temos que revisar a maneira como estamos criando nossos homens, temos que revisar e colocar em questão esses padrões misóginos.
Enquanto não o fizermos, as estatísticas seguirão sendo assustadoras.

Falamos o suficiente desses fatos?

Na Argentina, há alguns anos, falamos um pouco mais desse tema. Ele está na agenda dos meios de comunicação e das políticas de Estado, mas, muitas vezes, de maneira deficiente: os meios não têm um protocolo para tratar dos feminicídios e, muitas vezes, o que fazem é seguir alimentando preconceitos (por exemplo, colocando em questão o julgamento da vida e do comportamento da vítima). E o Estado fica em campanhas e políticas sem o reforço, por exemplo, de profissionais especializados. Os serviços de ajuda à mulher não contam com os meios materiais para fornecer uma solução efetiva ou apoio à mulher que denuncia. Há leis maravilhosas, com a Lei do Feminicídio, sancionada em 2012, mas que não é cumprida.

A oralidade dos seus personagens é uma coisa sobre a qual os críticos falam muito. Isso é importante? Por quê?
Gosto muito de trabalhar com a matéria da língua oral, incorporada em meus textos, transformá-la em poéticas. Não há uma intenção documental, e sim, sobretudo, poética. Como soa uma palavra, que música, que ritmo ela toma em um relato escrito.
Gosto de encontrar isso como leitora e de trabalhá-lo como escritora. Quando li Meu tio o Iauaretê, de Guimarães Rosa, foi uma comoção para mim. Acredito que esse relato definiu também meu trabalho com a oralidade.

O que a levou a escrever Garotas mortas?
Por um lado, a história de Andrea, que sempre esteve na minha lembrança. Por outro lado, um interesse no tema, que foi se aprofundando em mim com o tempo: como é possível que uma mulher pudesse ser assassinada por ser mulher?. A sucessão de casos desse tipo que fui vendo na imprensa, acumulando-se, muitas vezes sem resolução, em que se apresentava a história da vítima, onde ela acabava sendo julgada, buscando argumentos que explicariam sua morte, em vez de se perguntar por que um homem mata arbitrariamente uma mulher e por que, como sociedade, naturalizamos isso.

O que pensa da maneira como a sociedade trata a violência contra a mulher? São frequentes as denúncias para as quais as autoridades não dão atenção….
Sim, às vezes há boas intenções, como estimular a mulher a denunciar, mas se nada se faz em termos de proteção, então essa mulher que se atreveu a denunciar fica totalmente exposta. É frequente que mulheres sejam assassinadas e tenham, em sua bolsa, uma ordem de restrição contra seu agressor. Não é suficiente expedir uma ordem para que o agressor não se aproxime da vítima. Não é suficiente anotar uma denúncia se não se dá a essas mulheres alguma proteção. De alguma maneira, parece que o tema não foi realmente levado a sério.

E na literatura, há pouca quantidade de livros sobre o tema?
Na Argentina, o movimento de mulheres adquiriu uma enorme visibilidade nos últimos anos e é bastante recente que falemos de violência de gênero e feminicídio. Creio que esse tipo de texto começa a aparecer e a circular acompanhando esses processos novos; que mais cedo ou mais tarde também estará refletido na literatura.

Por que dar a Garotas mortas uma característica documental?
Gosto de chamar de romance de ficção.
Interessava-me que fosse documental porque é também uma espécie de manifesto do que acredito em relação ao tema, é uma tomada de decisão política. E me interessava também pela memória das meninas. Queria que ficasse bem claro para o leitor que essas meninas existiram, que não eram personagens de ficção, que tudo que se conta ali aconteceu e acontece diariamente. Acredito que não se trata de ficção é também uma sacudida para quem está lendo, é como dizer: isso aconteceu de verdade.

Como o fato de ter crescido em Entre Rios é importante para sua escrita e suas histórias?
Sem que eu quisesse, isso moldou a minha escrita. Não me parecia um dado importante quando vivia lá, mas quando me mudei para Buenos Aires começou a ser cada vez mais importante para mim o lugar de onde eu vinha, onde havia passado metade da minha vida, em que geografia e em que linguagem me havia criado. Em um país tão centralizado em Buenos Aires, ser das províncias e do interior também é uma tomada de posição, ressignificar essa origem é uma decisão política também.

    

GAROTAS MORTAS

• De Selva Almada
• Todavia Livros
• 128 páginas
• R$ 44,90 (livro) e R$ 29,90 (e-book)
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