ENTREVISTA
Sérgio Rodrigues
Elza, a garota surgiu por encomenda. Quando percebeu que a história dela poderia ser também uma de suas histórias?
Muito cedo. Mesmo na forma de um livro de não ficção, que era a ideia inicial da editora, me interessaria contar a tragédia da Elza pelo que ela expõe dos mecanismos de criação e ocultamento da história, da memória coletiva. Existe um componente metalinguístico incontornável aí: quem conta, o quê e como conta, por que conta. Isso sempre esteve no centro das minhas preocupações como escritor. Aconteceu que, logo no início do trabalho de pesquisa, o jogo virou.
Como as descobertas na pesquisa histórica alimentaram, ou atravancaram, a ficção?
As lacunas foram o motor da ficção. A ideia era que a imaginação preenchesse todos os buracos e criasse um quadro coerente usando as ferramentas da literatura, que acredito ser uma linguagem capaz de iluminar certos recantos escuros que o discurso historiográfico não alcança. A Paris do século 19 pulsa nos livros de Balzac, por exemplo, mais do que nos livros de história. Mas essa crença na, digamos, primazia da ficção não me levou a diminuir o rigor do trabalho de pesquisa, pelo contrário. Eu queria que as duas dimensões fossem igualmente fortes, que criassem uma tensão entre polos que ora se completam, ora se desafiam. A estrutura em contraponto do romance obedece a essa ideia também.
“Eu estou falando, falando, lembrando, lembrando, mas também inventando, inventando. Não tem outro jeito.” Chegou a cogitar outro jeito de contar essa história? Como chegou à estrutura polifônica, assim definida em entrevista à época do lançamento?
A estrutura foi surgindo ao longo do processo de escrita, como sempre acontece comigo. A forma é sempre uma imposição do material. No caso, justamente para superar a polarização ideológica que está no coração dessa história, eu queria dar voz a vários discursos, o da imprensa, o dos historiadores das mais diversas colorações, o dos escritores que nos deixaram suas memórias e também o discurso da lei, o dos autos do processo que condenou Prestes e os demais assassinos de Elza. Essa colcha de retalhos das partes não ficcionais do livro faz um contraste forte com a voz tonitruante e ordenadora de Xerxes, o velho militante fictício, que conduz a ficção. Por sua coerência e articulação, o velho parece mais confiável do que a história caótica e contraditória que emerge da pesquisa. A última volta do parafuso, claro, é a revelação de que também Xerxes não é quem parece ser.
“Uma prosa que, Molina já não tinha dúvida nenhuma, finalmente precisava ser escrita.” E como a história de Elza pode ser lida à luz dos confrontos binários que marcam o atual cenário político brasileiro? O que é possível aprender para evitar que sejam cometidos os mesmos erros?
O binarismo primário que vivemos hoje é uma grande decepção. Enquanto escrevia Elza, eu tinha plena consciência de me beneficiar de um momento politicamente mais arejado, mais desconfiado e hesitante, com certeza, mas menos dogmático e cheio de desculpas do tipo “os fins justificam os meios”, pós-Guerra Fria.
O livro se vale também das memórias de outros escritores – Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz – para reconstituir a dinâmica de atuação dos militantes comunistas no Brasil. Como você analisa a relação entre produção literária e engajamento político em nosso país?
São relações conflituosas, não poderia ser diferente. Toda literatura e toda arte são sempre políticas, mesmo quando não querem ser, mas submetê-las à lógica da política partidária nunca deu e nunca vai dar certo. Isso fica claro no Elza. Rachel e Graciliano comparecem com memórias muito vívidas daquele momento histórico. São contribuições bem distintas.
Em romance posterior, O drible (2013), o seu ponto de partida também é um fato histórico, o drible de Pelé no goleiro uruguaio Mazurkiewicz na Copa de 1970. Que outras conexões consegue estabelecer entre os dois romances? E as principais diferenças?
O drible é um exercício ficcional mais livre. A moldura histórica aparece ali, como aparece em tudo o que eu escrevo, mas as fronteiras entre fato e ficção são muito mais borradas do que no Elza. Sem que eu tenha planejado, é assim que sei escrever, é assim que escrevo desde meu primeiro livro, O homem que matou o escritor. Me interessa projetar a imaginação na tela da história, situar a narrativa num ambiente historicamente determinado, com as modas e os modos e as músicas de cada época, e também tomar emprestados da vida dita real alguns personagens e misturá-los com os que invento. Mas, veja bem, isso não significa subordinar a ficção aos “fatos”. É justo o contrário. Sou jornalista e adoro minha profissão, mas também sou escritor, o que é outro jogo completamente diferente. Não tenho nenhuma dúvida em declarar que o discurso da ficção é mais poderoso que o do jornalismo. Para mim, pelo menos, é. A palavra final nos meus romances será sempre da ficção, e no caso de O drible acredito que isso fique mais claro do que nunca. O personagem do craque Peralvo, que inventei, já foi tratado algumas vezes por aí como real, inclusive em textos publicados. Considero isso uma baita vitória da ficção sobre a realidade.
Elza, a garota é um romance político. O Brasil tem uma tradição de romances no gênero? Poderia citar alguns que considera marcantes?
“Romance político” não é algo de definição pacífica, mas concordo que Elza está nesse clube, desde que a gente deixe de fora da lista aqueles romances panfletários, datados, feitos de ocasião para dar conta de uma luta político-partidária. Esses morrem logo e nem chegam a ser propriamente literatura. Os subterrâneos da liberdade, o famoso tributo que Jorge Amado pagou ao stalinismo, é um bom exemplo desse gênero menor. Mas sim, Elza trata de temas e personagens da política, traz embutida uma discussão ideológica situada historicamente e apresentada de forma crítica. É isso que em geral se entende por “romance político” no sentido mais nobre da expressão, e não me parece que a literatura brasileira seja pródiga no gênero. Antonio Callado talvez seja nosso grande romancista político, mas é uma voz dissonante, tão dissonante que tem sido menos lido e estudado do que merece. Mas basta ampliar o foco da definição para o quadro mudar. Se entendermos “romance político” como aquele que faz um gesto político-estético, que traz dentro de si uma visão profundamente política da sociedade, aí temos uma fartura de romances. O maior deles, escrito por Graciliano Ramos, se chama Vidas secas.
Confira um trechodo livro:
"(...) Elza Fernandes é companheira do companheiro Miranda. A frase teve o efeito de uma tromba d'água despejada sobre uma fogueirinha de são João. Eu, neófito, não sabia quem era o companheiro Miranda, mas pelas caras que todos fizeram em volta da mesa quando o Antônio falou aquilo, uma mistura até engraçada de alarme, constrangimento e pressa de mudar de assunto, entendi que logo devia ser um mandachuva. Só depois o Luiz me confirmou que era isso mesmo. Eu não ficara sabendo, mas Miranda tinha acabado de ser eleito secretário-geral do Partido, na ascensão mais fulgurante da sua história (…). Talvez aquilo tenha aumentado minha curiosidade sobre a mocinha de cabelo curto e porte empinado, que andava como se tivesse mola nos sapatos.”
ELZA, A GAROTA – A HISTÓRIA DA
JOVEM COMUNISTA QUE O PARTIDO MATOU
• Romance de Sérgio Rodrigues.
• Companhia das Letras, 216 páginas. R$ 44,90.