O primeiro trabalho de Guilherme Mansur com que tive contato foi a edição de Finismundo: a última viagem, de Haroldo de Campos, publicada pela Tipografia do Fundo de Ouro Preto em 1990. O longe desse poema haroldiano, em errático percurso odisseico, “transfinito”, encontrava seu avesso no tangível do livro, íntimo, com sua capa ocre e a vinheta vermelha em relevo, a lisura háptica do papel sobre o qual se grafava o escorregadio traçado da Garamond. Algo do teor inapreensível dessa última viagem a Finis terrae, paradoxalmente em mãos. Talvez essa primeira sensação – a do distante ao alcance – possa servir como imagem-guia de uma breve leitura da obra de Guilherme.
Só bem depois disso tive notícia das chuvas de poesia das torres das igrejas de Ouro Preto, happenings realizados desde 1993. Ou da participação de Guilherme no movimento da arte-correio, na segunda metade dos anos 1970. Ou da circulação, a partir de 1977, da revista-objeto Poesia livre, com poemas soltos dentro de um saco de papel. O fio condutor entre todas essas iniciativas parece ser o impulso de colocar a poesia ao alcance – e por meio dos veículos mais improváveis. O carteiro ou o vento como arautos da poesia alheia – o ato poético da disseminação da palavra de terceiros entre destinatários incógnitos, a esmo.
O texto editável por Guilherme pode se espalhar por cartazes (lembro-me de pelada, um cartaz A3 amarelo, dobrado duas vezes até o formato A5, uma composição multidirecional com poemas breves de Guilherme e fotos pictogrâmicas do fotógrafo – mais-que-precioso e pouco exposto – Dimas Guedes), ou a se fundir em metal (como o alfabeto Bamboletras (2011), em chapas de ferro de 14cm x 14cm produzidas por Ivar Siewers, ou o poema-escultura Batuque (2014), recortado de uma superfície de aço de 3m x 3m e instalado no câmpus do IFMG, em Ouro Preto), ou a impressão de composições com lixo tipográfico, como Quadriláxia, sobre cartões-postais.
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sol caindo de sola
lua alguma consola
A reiteração do “sol” no poema de restinga 2 (2003), (re)aparição tríplice em um dístico hexassílabo, é menos um jogo paronomástico de associação de sentidos por meio da sonoridade do que o reaproveitamento composicional de uma mesma sequência de letras/tipos (s%2bo l) em dois versos ao mesmo tempo consonantes e antagônicos. A ideia da escrita como jogo combinatório a partir de um conjunto reduzido de letras (ou tipos) se torna nítida em diversos poemas de Guilherme, revelando o gesto da composição tipográfica por trás da textualização.
o pulo do gato
os olhos de gato
o pulo nos olhos de gato
os olhos no pulo do gato
o pulo no pulo
os olhos nos olhos
Em O pulo do gato (1992), a combinatória se faz em nível frasal; e a recorrência de um número reduzido de palavras (apenas um artigo, duas preposições e três substantivos) descreve um percurso cênico, nos saltos de um vocábulo para o próximo e de volta para o anterior – e nos OlhOs dos gatOs. Esse uso da superfície da escrita como cenário para o desdobramento de uma imagem, recorrente na poesia concreta inicial, está presente em alguns outros poemas de Guilherme, como O som e o sino (1996)...
vai, som, e toca esse sino
vai e toca, som, esse sino
vai, e toca esse sino, som
e vai, som, toca esse sino
e toca, vai som, esse sino
toca esse sino, som, e vai
toca, som, e vai esse sino
... no qual a dinâmica combinatória perfaz o circuito sonoro dos sinos. A composição espacial na poesia de Guilherme parece, no entanto, advir menos de um movimento de reconstituição icônica do referente do que de um ato de montagem tipográfica, no qual a mobilidade dos tipos é infinita dentro dos limites da rama (do alemão Rahmen, moldura), “moldura de ferro ou aço usada para juntar e apertar em uma só fôrma a composição, os clichês e outros materiais tipográficos”.
Em trabalhos mais recentes, como Estalactites tipográficas (2012), uma série de composições de poemas do expressionista alemão August Stramm em tradução de Augusto de Campos, Guilherme lança mão do mesmo procedimento modular da tipografia de caixa, compondo os poemas letra a letra, só que digitalmente, por meio da montagem sequencializada de fotos de tipos de metal art-nouveau. Uma poesia que se compõe – conceitualmente – com base na mobilidade dos tipos, esse duplo corpóreo do alfabeto, coloca em evidência um estado potencial da escrita impressa, a ser montada e remontada ad libitum.
E, por fim, talvez ainda coubesse dizer que um dos motes originários da arte de vanguarda – o acaso –, ecoando desde Mallarmé até a música aleatória e além – também possa ser uma chave para ler a poesia de Guilherme Mansur. O acaso do achado como motor da poesia: o gesto dêitico de denunciar uma coincidência de formas torna-o ato inaugural da criação. E o movimento de gerar analogias por meio da similaridade formal é o mesmo que revela a disparidade entre os elementos enramados.
é manhãzinha
e embora
a lua não vá
embora
o sol já está lá
estalado
ovo só gema
é noitinha
e embora
o sol não vá
embora
a lua já está lá
estalada
ovo só clara
Em sol/lua (2009), o achado da separação do ovo em gema/sol e clara/lua se descortina em meio à oposição simétrica, em duas estrofes, entre as aparições contrassensuais da lua de manhã e do sol à noite.
No trabalho de Guilherme coexistem, portanto, transparência conceitual e imprevisibilidade associativa. Só esta última tornaria possível juntar Bené da Flauta & William Blake, Yoshiya Takaoka & Matzuó Bashô, Itacolomy & Fuji – o próximo distante, o globo inteiro em Ouro Preto. O substrato barroco que torna tais associações plausíveis, no entanto, não se manifesta em curvas de voluta, mas sim em encaixes de pedras de cantaria. Deixou na poesia de Guilherme algum, infinitesimal, rastro: talvez o mesmo que resida no oxímoro less is more (menos é mais).
*Simone Homem de Mello é escritora, tradutora e autora de Périplos (Ateliê Editorial, 2005), Extravio Marinho (Ateliê Editorial, 2010), Terminal, à escrita (Lumme Editor, 2015). É autora de Guilherme Mansur, novo volume da coleção Editando o editor (Edusp, 2018)..