Entrevista: 'tipoeta' Guilherme Mansur fala sobre seu flerte com diferentes linguagens artísticas

Ouro-pretano atua desde a década de 1970 como editor e poeta, tornando indistinta a separação entre sua vida e seu exercício poético

por Pablo Pires Fernandes 03/08/2018 07:39

Orlando Azevedo/Divulgação
(foto: Orlando Azevedo/Divulgação)

Conde Kabel era alemão. Um tipo forte que se orgulhava de sua clareza enfática e de ser capaz de evitar qualquer aresta quando manifestava suas opiniões. Capitão Garamond era francês. A mãe, uma italiana de Roma, e o pai, navegador grego. Apesar da origem humilde, causava impressão pela forma elegante ao recitar poemas clássicos nas rodas da sociedade. Marília, donzela de beleza notável, fina e educada, fez ambos perderem a linha.

A história da apaixonada disputa entre Kabel e Garamond pela bela Marília é verídica. Se Picasso disse que “tudo o que você pode imaginar é real”, a disputa entre o conde e o capital ocorreu. Deu-se na imaginação de Guilherme Mansur, quando ele tinha 13 ou 14 anos. E está sugerida em um trecho do depoimento colhido por Simone Homem de Mello e publicado no livro da coleção Editando o editor, que relata a trajetória desse editor, poeta e inquieto pensador de Ouro Preto.

O jovem, ele conta, divertia-se com as caixas de tipos, movendo os personagens-letras até a caixa-alcova da amada Marília, uma das grandes figuras (de linguagem?) de Vila Rica. Os fabulosos encontros são uma das mais belas passagens do livro-depoimento, registro de um testemunho aberto e sincero da obra e das linhas traçadas por este tipoeta. Ao olhar a cidade histórica pela janela, Guilherme Mansur segue fabulando. Incansável, sonha criar um instituto tipográfico na cidade. Enquanto o sonho não se realiza, segue fazendo chover poesia colorida pelas torres barrocas de Ouro Preto.



Como a convivência com a tipografia, desde a infância, determinou seu rumo na poesia?
A descoberta da tipografia propriamente dita, dentro da tipografia dos meus pais, teve fundamental importância na minha formação como poeta e na minha busca inventiva como tipógrafo. O tempo de criança na tipografia foi de experimentos e descobertas. Posso ilustrar a minha fala com uma pequena lembrança: no primário, eu tinha um colega nordestino que tocava Asa branca no acordeon. Quando ele se mudou de Ouro Preto, compus e dei-lhe um cartão impresso: ASA BRANCA, assim, em caixa-alta. O detalhe é que as quatro letras A eram letras V de cabeça pra baixo (asas de passarinho). Naturalmente que esse olhar sobre o entorno e a natureza, traduzido em tipogramas, foi-se desenvolvendo com os estudos e o passar dos anos.

A materialidade dos tipos, que ocupam espaço e formam uma massa não linear, imagética. A partir disso, como se constituiu sua relação com a palavra e a imagem? 

Pois é. Isso também me remete ao tempo de descoberta da tipografia. O fato de ter sido alfabetizado por uma caixa tipográfica me levou a enxergar a letra, a palavra com outros olhos. Quando pisei na escola pela primeira vez, tive um estranhamento com o giz riscando o quadro-negro, porque a letra para mim era tridimensional, um objeto que tinha cheiro e peso e que se poderia montar para formar palavras como casa, uva e gato. Esse convívio com a matéria tipográfica acabou por desencadear uma série de trabalhos que exploram o lado escultura da letra, e posso citar aqui a composição Tatibitotem e a escultura de aço Batuque, entre outras. Já o poema linear, tradicional, esse foi sendo escrito ao lado dos matéricos, sem conflito algum.

O que é palavra para você?

Li que a escrita foi inventada para atender ao mercado. Daí, você tem uma boa noção da força da palavra. Imagina a babel de idiomas? O semi árido verbal. Isso me faz lembrar o signo pierciano e o objeto flor. Pois a palavra flor é um signo gerado pelo signo matriz – a flor. E não importa em que escrita esteja grafada, será sempre flor, seja um girassol da Toscana, seja uma rosa de Cabul. Os neologismos ou as interjeições pertencentes ao campo semântico das histórias em quadrinhos são também outros signos que me enchem de interesse. Outro dia, por curiosidade, busquei na internet o significado de “palavra” e li algo assim: unidade da língua escrita entre um e outro espaço em branco. Uma definição veramente tipográfica.

De onde vem e como vê seu papel como editor?

O editor veio a reboque do poeta. O exercício de editar poesia me fez estudar poesia. Mas essa história começou lá atrás, em 1977, quando inventei o saco Poesia livre. Na época, o jornalista Angelo Oswaldo, recém-chegado de Paris, onde foi colaborador da editora Gallimard, tinha assumido a Secretaria de Turismo e Cultura de Ouro Preto e costumava reunir em torno de uma grande mesa na sua casa alguns pretendentes a escritor, e espalhava sobre a mesa Apollinaire, Rimbaud, Ponge, Villon, Verlaine, mais os nossos modernistas e contemporâneos. Era uma aula fabulosa. Esses encontros me influenciaram a editar poesia. Não sei se existia em mim um instinto de editor. Costumava editar textos com os quais tinha uma afinidade qualquer. Outro convívio literário que me marcou foi com Maria do Carmo Ferreira, que vejo como a maior poeta brasileira viva, mas não quer mais saber de poesia – uma poeta da recusa, diria Augusto de Campos. Tive o prazer de fazer edições com poesia dos Ávilas, Sylvio Back, Augusto e Haroldo de Campos, Décio Pignatari, Alice Ruiz, Paulo Leminski, Júlio Castañon Guimarães, Ricardo Aleixo entre outros tantos. Hoje, porém, o meu trabalho de editor está todo voltado para as chuvas de poesia, um happening que acontece nas torres e adros das igrejas de Ouro Preto com alguma periodicidade.

Que lugar e, sobretudo, que papel tem a poesia hoje no Brasil e no mundo?

Eu diria que a poesia tem o lugar de poesia no Brasil e no mundo. Ela chegou antes da escrita. Primeiro, foi falada e cantada e depois escrita. Desde Zoroastro, na Pérsia, no ano de 1200 a.C. que a poesia dá as cartas ou as caras. No nosso tempo, pode ser vista/lida também em novos meios tecnológicos como o Instagram. E a vasta confraria de leitores de poesia, espalhada pelos quatro cantos do mundo, está sempre em busca de novos poetas. Não dá para nos imaginar sem poesia.

Como ser ouro-pretano se reflete na sua obra? Faz sentido? 
Dizem que Minas Gerais é terra de escritores. No caso de Ouro Preto, por estar há tantos anos aqui, penso que a cidade possa estar de alguma forma tatuada na minha poesia, às vezes de forma explícita, outras não. Faz sentido, terra é algo muito forte.