Conde Kabel era alemão. Um tipo forte que se orgulhava de sua clareza enfática e de ser capaz de evitar qualquer aresta quando manifestava suas opiniões. Capitão Garamond era francês. A mãe, uma italiana de Roma, e o pai, navegador grego. Apesar da origem humilde, causava impressão pela forma elegante ao recitar poemas clássicos nas rodas da sociedade. Marília, donzela de beleza notável, fina e educada, fez ambos perderem a linha.
A história da apaixonada disputa entre Kabel e Garamond pela bela Marília é verídica. Se Picasso disse que “tudo o que você pode imaginar é real”, a disputa entre o conde e o capital ocorreu. Deu-se na imaginação de Guilherme Mansur, quando ele tinha 13 ou 14 anos.
O jovem, ele conta, divertia-se com as caixas de tipos, movendo os personagens-letras até a caixa-alcova da amada Marília, uma das grandes figuras (de linguagem?) de Vila Rica. Os fabulosos encontros são uma das mais belas passagens do livro-depoimento, registro de um testemunho aberto e sincero da obra e das linhas traçadas por este tipoeta. Ao olhar a cidade histórica pela janela, Guilherme Mansur segue fabulando. Incansável, sonha criar um instituto tipográfico na cidade. Enquanto o sonho não se realiza, segue fazendo chover poesia colorida pelas torres barrocas de Ouro Preto.
Como a convivência com a tipografia, desde a infância, determinou seu rumo na poesia?
A descoberta da tipografia propriamente dita, dentro da tipografia dos meus pais, teve fundamental importância na minha formação como poeta e na minha busca inventiva como tipógrafo. O tempo de criança na tipografia foi de experimentos e descobertas. Posso ilustrar a minha fala com uma pequena lembrança: no primário, eu tinha um colega nordestino que tocava Asa branca no acordeon.
A materialidade dos tipos, que ocupam espaço e formam uma massa não linear, imagética. A partir disso, como se constituiu sua relação com a palavra e a imagem?
Pois é. Isso também me remete ao tempo de descoberta da tipografia. O fato de ter sido alfabetizado por uma caixa tipográfica me levou a enxergar a letra, a palavra com outros olhos. Quando pisei na escola pela primeira vez, tive um estranhamento com o giz riscando o quadro-negro, porque a letra para mim era tridimensional, um objeto que tinha cheiro e peso e que se poderia montar para formar palavras como casa, uva e gato. Esse convívio com a matéria tipográfica acabou por desencadear uma série de trabalhos que exploram o lado escultura da letra, e posso citar aqui a composição Tatibitotem e a escultura de aço Batuque, entre outras.
O que é palavra para você?
Li que a escrita foi inventada para atender ao mercado. Daí, você tem uma boa noção da força da palavra. Imagina a babel de idiomas? O semi árido verbal. Isso me faz lembrar o signo pierciano e o objeto flor. Pois a palavra flor é um signo gerado pelo signo matriz – a flor. E não importa em que escrita esteja grafada, será sempre flor, seja um girassol da Toscana, seja uma rosa de Cabul. Os neologismos ou as interjeições pertencentes ao campo semântico das histórias em quadrinhos são também outros signos que me enchem de interesse. Outro dia, por curiosidade, busquei na internet o significado de “palavra” e li algo assim: unidade da língua escrita entre um e outro espaço em branco. Uma definição veramente tipográfica.
De onde vem e como vê seu papel como editor?
O editor veio a reboque do poeta. O exercício de editar poesia me fez estudar poesia.
Que lugar e, sobretudo, que papel tem a poesia hoje no Brasil e no mundo?
Eu diria que a poesia tem o lugar de poesia no Brasil e no mundo. Ela chegou antes da escrita.
Como ser ouro-pretano se reflete na sua obra? Faz sentido?
Dizem que Minas Gerais é terra de escritores. No caso de Ouro Preto, por estar há tantos anos aqui, penso que a cidade possa estar de alguma forma tatuada na minha poesia, às vezes de forma explícita, outras não. Faz sentido, terra é algo muito forte..