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Artigo: Guilherme Mansur, o poeta mineiro que 'ensacou' a poesia

Quadrado de estrelas para Gutemberg, poema visual em cartão-postal impresso em 1990: imagem e texto se fundem num signo único - Foto: Guilherme Mansur/Reprodução


Há um acúmulo de tempo expressivo e uma semelhança entre contextos sociopolíticos que tornam a aparição de Guilherme Mansur, na série Editando o editor, volume organizado por Simone Homem de Mello, muito oportuna. São 40 anos já desde que o ouro-pretano, em plena ditadura – agora atualizada em chave jurídico-midiática – começou a investir a poesia brasileira de um estranhamento inquietante, de uma sutileza crítico-política sem precedentes.

Seu gesto inaugural, em 1977, não foi um livro, mas um saco de poesia, inúmeros sacos, uma sacada – em todos os sentidos. Saindo do lugar-comum em estreias na poesia, Mansur, com os sacos do projeto Poesia livre, uma das referências mais significativas da chamada Poesia Marginal, trouxe, num suporte inusitado, uma rebeldia coletiva pela via da edição.

Daquele momento até 1985, ensacando e distribuindo poesia e afins de autores diversos, Mansur, enquanto poeta, tornou-se referência de poesia como evento, tal qual postulado por Alain Badiou no seu O ser e o evento, como aquilo que rompe com a verdade estabelecida num determinado segmento. No caso, a verdade estabelecida no segmento literário, segundo a qual a poesia é coisa letrada, restrita ao suporte livro, ou mesmo a outros suportes tradicionais ou eletrônicos, que reproduzem o princípio ordenador do livro: revista, jornal, CD, computador etc.

No meio desse evento, nunca no seu começo ou no seu fim, não está um poeta, no sentido da máscara postulado por Octavio Paz, mas um fabro, um artífice, o mais instigante, sem dúvida, de uma geração seduzida pelo horizonte “inter” – intersemiótico, intermídia, interarte –, que raras vezes se permitiu colocar em xeque premissas conceituais tecnológicas, interessantes, em termos retóricos, mas muitas vezes ideológicas, falsas, em termos poéticos.

O dado fundamental desse evento artístico, abrangente, que integra linguagens diversas – da poesia à dança contemporânea, da pintura à escultura, da fotografia à arquitetura, da música à performance, do artesanato ao cinema, do design à canção –, é a sua anacronia estratégica, seu salto qualitativo, transversal, para fora do tempo presente imediato, que o coloca, em contrapartida, numa posição espontaneamente crítica, digamos, em relação ao agora, ao presente “absolutizado” como totalidade temporal.

O partido da tipografia, a instância “alfabetizadora” de Mansur, segundo ele mesmo, que levou Haroldo de Campos a batizá-lo de “tipoeta”, implica, há décadas, uma percepção aguda do contemporâneo, que só recentemente, no início deste novo século, difundiu-se no Brasil, no espaço cult, não só acadêmico, a partir de Giorgio Agamben: o contemporâneo não é o que está à vista, escancarado no tempo presente, mas o que se esconde, que está no fundo das aparências.

Mansur soube ver naquilo que se considera velho em termos de recursos gráficos, de tecnologia de composição, impressão e acabamento – tipografia,  linotipia, costura –, um dispositivo eficaz para trazer o novo em sua materialidade, como substância, forjando formas-conteúdos consistentes, capazes de comover porque são reveladoras da ação humana como resistência a meras contemplações supostamente humanas, que é o que se encontra nas poéticas desmaterializantes disseminadas com o que Pierre Levy chamou um dia de “novas tecnologias da inteligência”.

Na contramão de um tempo e espaço cada vez mais desumanizados em razão do deslumbramento com as possibilidades de virtualização, de desmaterialização das relações, o que culminou no “euísmo” fascistoide das chamadas redes sociais, Guilherme Mansur forjou uma poética da materialização, no rastro de Amilcar de Castro, que tem seu “élan” decisivo, seu impulso radical, no trabalho, no empenho de forças orgânicas, configurando um processo em que o corpo é a agência, a instância, produtora de sentido.

A obra em Mansur não resulta de um frio trabalho intelectual, laboratorial, não é cosa mentale enquanto índice de pureza, embora seja, evidentemente, marcada por um nível elevado de racionalização. Resulta de um trabalho corporal, braçal, manual, orgânico, como vemos claramente em instalações como Quadriláxia (BH, 1991), em performances como Eu estou (Berlim, 2011), e em esculturas como a recente Batuque (câmpus do Instituto Federal de Ouro Preto, 2014), mas que está evidente em toda sua produção gráfica.

Constitutivas de uma autenticidade inimitável – pode-se falar numa assinatura-Mansur –, as marcas humanas, que alteram a ordem natural e injusta dos sentidos, revelam a centralidade do trabalho humano na obra desse fabro, dispondo-a como evento crítico em si da esmagadora maioria dos produtos da indústria cultural.

A maioria desses produtos, comercializada como oeuvres d´art (num uso colonializante do passado artístico europeu), não só poéticos, literários, mas também plásticos, musicais (sob a forma de canção, de samba, no Brasil), cinematográficos, teatrais (sob a forma de teledramaturgia), performa-se, é claro, a partir de um horizonte de consumo, com notáveis facilitações da fruição por parte de um suposto grande público consumidor, supostamente incapaz de absorver coisas mais elaboradas, sofisticadas, tidas e havidas como difíceis pelo olhar capitalista mais bestial.


A centralidade do trabalho humano no processo artístico de Mansur é, em última análise, evidência de um sujeito que resiste à aplicação acrítica, no âmbito das artes, da lógica do lucro em detrimento de quaisquer outros valores – ético, cultural, estético –, uma permanente afirmação do célebre e belo poema-manifesto de Augusto de Campos: “NãomevendoNãosevendaNãosevende”. Assim mesmo é que o evento Mansur, em que o silêncio ativo é uma constante, constitui contribuição extraordinária à defesa da poesia como contraforça negativa às forças, ditas positivas, que a negam.

Os projetos Poesia Livre e Chuva de Poesia (lâminas-poemas coloridas atiradas das torres das igrejas de Ouro Preto a partir de 1993), que compõem as extremidades do processo de Mansur, afirmam a poesia como espaço de comunhão, de encontro, de celebração, como instância democrática. Isso significa dizer que se trata de ato insubordinado, subversivo, já que democracia, como argumenta Jacques Rancière, é, desde a Grécia antiga, um insulto aos autoritários, tirânicos – daí o ódio tão atual à democracia, que, em países como o Brasil, sempre significou, entre os elitistas, algo como poesia presa, seca de poesia.

No âmago dessa ideia democrática de poesia está a relação com a cidade, uma relação estruturante do evento Mansur, que demanda, solicita, não só o artista em Mansur, mas atua, de modo decisivo,  sobre a conformação desse artista, colocando-o no horizonte de artistas-urbanistas, movidos pelo desejo de produzir culturalmente a cidade, de dotá-la de elementos semânticos específicos, que tiram a cidade de uma condição de impróprio espacial e a afirmam como complemento de sujeitos específicos, como uma espécie de próprio territorial.

Diante da parafernália que é a obra de Mansur – livros, cartões, cartazes, fonte de letra, objetos, esculturas, performances, jornais, instalações, capas de livro, calendário, convites, vídeos etc. etc.

–, a interpretação óbvia, que é preciso sempre evitar, é aquela que parte das chamadas vanguardas históricas, do fim do século 19 até meados dos anos 1930, e das chamadas neovanguardas, dos anos 1950 aos 1970 do século 20, os muitos “ismos”, em especial o Dadaísmo, o Cubofuturismo e o Concretismo, considerando-se, com certa arbitrariedade, a ascendência da poesia sobre as demais artes nesse processo.

O evento Mansur, cuja referência de indecidibilidade (que Badiou postula como constitutiva do conceito de evento) é a forma-parafernália. Configura-se a partir do inespecífico, embora estimulado por referências específicas, a começar pela chamada poesia de vanguarda. O inespecífico é haurido não num livro ou num autor livresco, mas antes na cidade, na heterogeneidade que caracteriza a cidade, expressando uma indistinção, um caráter híbrido que está no fundo de Ouro Preto, bem como no fundo de toda cidade, fonte da complexidade do tecido urbano.

Selos editorias como Gráfica Ouro Preto e Tipografia do Fundo de Ouro Preto, através dos quais as edições de Mansur se tornaram célebres, são marcadores territoriais que contêm uma produtividade metonímica, digamos, extraordinária, jamais limitando a obra – não só a obra gráfica – a um determinado lugar, mas atualizando a questão geral da cidade a partir de uma cidade, aguçando o todo através da parte. Ouro Preto, no evento Mansur, é metonímia da aldeia global, um termo complexo de relação que o artífice opera sempre de modo criticamente sutil, surpreendente.

Enfim, penso que esteja na noção de operação, que Gilles Deleuze propôs como traço característico do Barroco, um dado produtivo para a interpretação do evento Mansur. Sua obra, sua parafernália criativa – que o aproxima de artistas também múltiplos, como Tunga e Jorge dos Anjos –, não é o acabado, o finalizado, mas sim o inacabado, o continuum, o movimento. Não há essencialismo, puritanismo, narcisismo; há sempre um gesto de cortar, dobrar, costurar, uma encantadora operação do enigma que é estar no mundo.


* Anelito de Oliveira, ex-editor do Suplemento Literário 
de Minas Gerais (1999-2003), é pós-doutor em teoria literária pela Unicamp, professor na Unimontes e autor, entre outros, de O iludido (ficção), Traços (poesia) e A aurora das dobras (ensaio).

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