Foram cinco os livros premiados na edição de 2017, todos lançados em abril, em edições primorosas: Chã, de Enoo Miranda; Nada consta, de Fred Caju; O velocista, de Walter Cavalcanti; Nem tudo cabe na paisagem, de Amâncio Siqueira; e Das tripas coração, de Ezter Liu, respectivamente: dois livros de poesia, um romance, e dois livros de contos. Vamos a eles.
Os poemas de Chã dialogam com a tradição, sobretudo, com certa tradição modernista que imprimiu, na forma literária escrita, as representações da oralidade. Só que a poesia, assim como a vida registrada com fluência nos poemas, não é algo necessariamente suficiente para Miranda, daí o poeta completar sua visão de mundo com um singular lastro de denúncia social: “minha casa é de pólvora / para o caso de inundar”; ou: “teu senhor / te deu troco / em bala”. O livro é dividido em quatro “quadras”, e é na terceira que essa interlocução com o legado modernista atinge seu ponto máximo, como nos versos de Outdoor: “anuncie / aqui/ &/ leia/ antes que queime”. Em seus poemas, Enoo Miranda trabalha a partir do conflito entre individualidade e coletividade, e entre militância política e crise existencial, conseguindo atingir certo ponto de equilíbrio entre eles.
Já em Nada consta, Fred Caju flerta com a poesia marginal e elege a coloquialidade e o caráter lúdico da escrita como modos de se debruçar sobre o próprio exercício poético. Seus poemas – à primeira vista desleixados e despretensiosos – têm, quase todos, traços provocativos e/ou humorísticos, e se concentram menos na reflexão e mais em uma espécie de translado confessional de experiências: “o poema escrito / é só a ponta do iceberg / do que sinto”.
O romance O velocista, de Walter Cavalcanti, é o curioso relato de um astronauta à deriva – tanto no espaço quanto em suas lembranças desconexas. O livro peca um pouco pelo excesso de experimentação formal e, a certa altura, torna-se cansativo, parecendo ter, como esquema programático, a abolição dos gêneros e da linearidade – em favor da colagem aleatória de impressões. Suas escolhas formais remetem a elementos da estética de vanguarda (pelo menos, eram vanguarda em 1922) como o hibridismo de gêneros, e, embora apresentados sem qualquer pretensão, são, em certo sentido, gratuitos. Ao abrir mão da subordinação e de elos entre ideias, o texto aparenta falta de coesão e deixa o leitor patinando e a ver navios. Quanto mais se avança na leitura, mais a história de O velocista não ocorre, antes, parece se contradizer em um sem número de impressões, algumas bem pueris. Essa falta de unidade pode frustrar um leitor pouco acostumado a ter que atravessar barreiras formais para atingir o secreto universo narrativo de um texto que quer se fechar em si mesmo, quando deveria querer se comunicar.
Quanto aos contos de Nem tudo cabe na paisagem, de Amâncio Siqueira, estes têm uma linha comum no registro da realidade e na observação de um cotidiano tão simples quanto verossímil, por vezes, aliando uma eficiência em contar histórias à mais completa imersão no mundo factual. É curioso notar a maneira como o escritor, pouco a pouco, indica um desdobramento trágico ou cômico bem ali, em um espaço em que a vida corriqueira dá a impressão de se desenvolver com naturalidade.
VENCEDOR TEM MULHERES EM DESTAQUE
Agora, o grande livro vencedor. Escolhido pelos jurados como o melhor entre os cincos, Das tripas coração, de Ezter Liu, de fato, faz jus ao pódio. Todas as protagonistas dos 18 contos do livro são mulheres, o que, à primeira vista, cede uma unidade temática ao livro. Ezter conta que quis mesmo construí-lo sobre essa unidade de temas, para que seus contos esparsos ganhassem um corpo mais compacto. São contos hiper-realistas, no sentido de criarem a impressão de uma realidade ampliada e intensificada pelo impacto que a linguagem concentra nas cenas narrativas.
Outra característica marcante do livro é sua linguagem cortante e direta. A substituição das vírgulas pelo ponto final deixa o texto mais reto, granítico, sem curvas musicais. No plano do discurso, tal recurso exige a subtração da conotação para atingir a materialidade quase rude e áspera da língua. Segundo a autora, essa escolha foi intencional, como um recurso para deixar todos os contos modulados no mesmo tom: “Mas tem uma questão, não é simples substituição, o processo de escrever sem pausa passa por enxugar muito o texto, porque a vírgula é um processo quase automático, como trocar de marcha num carro. A gente digita a vírgula e nem sente que digitou. A vírgula dá uma cadência, né? Um respiro. Então, sem vírgulas fica mesmo mais áspero, mais duro. E tem um detalhe que eu só saquei depois: na época, eu estava com crises fortes de ansiedade, sentindo muita falta de ar, meu fôlego estava curto mesmo, por isso agora eu assumo que escrevi com o fôlego que tinha”.
E é nessa velocidade aguda e ansiosa que as narrativas de Das tripas coração são contadas, proporcionalmente, à urgência que mobiliza as personagens. De corte cinematográfico, a linguagem parece produzir um contraste entre agressividade e reflexão quando, na verdade, constitui-se em um único golpe no qual ambas são desferidas sobre o mesmo ponto.
Nas suas primeiras cinco edições, o Prêmio Pernambuco distinguiu cinco romances, nove livros de contos e 10 livros de poemas.
No que se refere à quinta edição, é possível mesmo traçar uma régua que interprete a escolha do júri. De um lado, dois bons livros de poemas (dos quais Chã se destaca), com um percurso claro de aliar forma e conteúdo, na tentativa de violar o espaço entre tradição e modernidade, vida e arte, indivíduo e coletivo. No meio, um romance que, embora peque pelo exagero de uma vanguarda já envelhecida, apresenta um caminho a ser trilhado a partir da sua boa recepção em um prêmio de relevância. Na outra ponta, dois livros de contos de viés realista, cuja força humana dos personagens convence e causa empatia, com destaque para Ezter Liu, que conseguiu um resultado final mais coeso, além de uma sofisticação maior de linguagem.
*Tadeu Sarmento é escritor, autor de Associação Robert Walser para sósias anônimos, um dos vencedores do 2º Prêmio Pernambuco de Literatura (2014).
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