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Conheça a história da dinastia Romanov, que forjou o Império Russo e acabou engolida pela própria o

Retrato do czar Pedro, o Grande, da Rússia, pintado por Paul Delaroche em 1838 - Foto: Domínio Público

O circo de anões, gigantes, “berrações” obesas, garotas de má fama, comediantes estrangeiros, mongóis nômades, negros núbios, bobos e integrantes do alto escalão da corte começa a farra, que costuma ir do meio-dia até a manhã seguinte. O gigante francês Nikolai e as gigantas finlandesas, como sempre, estão vestidos como bebês, enquanto os anões maquiados como velhos saem totalmente nus de dentro de bolos. É o desfile do sínodo de tolos e bêbados do czar, uma alcoolizada sociedade de comensais, parte do governo da Rússia, porque inclui ainda, obrigatoriamente, generais, almirantes e secretários da corte. O czar nomeia seu velho tutor Zotov ora como o príncipe-papa ora como o patriarca Baco (para ironizar católicos e ortodoxos). Usando um chapéu de lata alto, um casaco feito de cartas de baralho e montado num barril de cerveja, o príncipe-papa preside um conclave de 12 cardeais embriagados. Ele começa o banquete abençoando os convidados togados e ajoelhados. Depois, comanda o sínodo com uma carruagem puxada por bodes, porcos e ursos e seus cardeais cavalgam jumentos e bois. Todos os membros do sínodo ostentam títulos obscenos relacionados ao pênis e vestimentas com linguiças fálicas sobre almofadas.

O czar, com seus dois metros de altura, pula e toca tambores entre os convidados, manda soar as trombetas e lidera a companhia fora da corte para disparar a artilharia ou fogos de artifício.
Em seguida, volta para a mesa para outro prato antes de, mais uma vez, liderar a festa pulando num comboio de trenós, como faz também no Natal e na quaresma. Depois, o czar é apresentado pelo seu amigo Pedro Franz Lefort às freiras devassas do sínodo, cuja entusiasmada impudência como amantes contrasta com seu desanimado casamento com Catarina (que ainda será sua sucessora como a imperatriz Catarina I). 

Ele acaba de construir para Lefort um palácio de pedra com enorme salão de banquetes, que se torna a sede do sínodo de bêbados e sala de recepção real. Mas ai de quem pensar que a farra é voluntária. Todos os cálices devem ser esvaziados prontamente e os membros da corte são obrigados a se embebedar todos os dias e nunca ir sóbrios para a cama quando o sínodo for convocado. Quem desobedece ou tenta evitar um brinde é punido com o temido e volumoso Cálice da Águia transbordando conhaque. É essencial para ascender à corte uma grande tolerância ao álcool. O czar é dotado de metabolismo de ferro para o álcool e consegue acordar para trabalhar mesmo depois da maratona de brindes.



PEDRO, O GRANDE, PAI A RÚSSIA MODERNA

Parece invenção, mas essa farra toda era rotina na corte de Pedro I, ou Pedro, o Grande (1672-1725), um dos homens mais poderosos, cruéis e notáveis do seu tempo.

A festa, geralmente, era promovida para comemorar vitórias depois de sangrentas batalhas ou de execuções de rebeldes ou traidores. Autocrata visionário, ele percebeu que a Rússia estava técnica e socialmente atrasada e viajou para o Ocidente em busca de ideais europeus de progresso. Trabalhou por quase dois anos como marinheiro em estaleiros, estudou anatomia ao dissecar cadáveres, visitou reis, museus e galerias de arte. Quando voltou, construiu a primeira frota da Rússia, militarizou o seu império e fez dele uma potência que assombrou o mundo, principalmente, os temidos otomanos.

É considerado o pai da Rússia moderna por ter ocidentalizado o império e construído a mais europeia das cidades russas, São Petersburgo (que ainda seria chamada de Petrogrado e Leningrado, e voltaria ao seu nome original depois de ser capital da Rússia por dois séculos). A cidade foi erguida ao longo do Rio Neva, no Mar Báltico, e fundada em 1703. Planejada por arquitetos e artistas europeus, teve como mão de obra basicamente o trabalho escravo de milhares de soldados suecos que os exércitos de Pedro derrotaram na chamada Grande Batalha do Norte. A ocidentalização, entretanto, provocou a revolta do seu primogênito e herdeiro, Alexei, que acabou acusado de traição pelo pai e morreu em consequência de longos açoites. As farras eram paliativo para amenizar a tensão permanente na corte de Pedro.
Assim foi até sua morte com gangrena na bexiga, em 8 de fevereiro de 1725, depois de 43 anos de reinado.

A saga de Pedro, o Grande e as de outros 19 czares e czarinas estão detalhadas na obra Os Romanov – 1613-1918 (The Romanovs), do londrino Simon Sebag Montefiori, historiador, professor e doutor em filosofia pela Universidade de Cambridge, na Inglaterra. Alguns eram marcados pela genialidade, outros pela loucura, mas todos inspirados pela autocracia sagrada, que acreditavam ser desígnio de Deus, e pela ambição imperial, fruto do seu êxito e de sua derrocada. Do frágil Mikhail (1596-1645), o primeiro czar entronado em 1613, a Nicolau II, destituído pela Revolução de 1917, os Romanov reinaram por 304 anos. Montefiori sustenta que, ao contrário de quem aponta uma maldição sobre o destino dos Romanov, eles foram a mais bem-sucedida dinastia dos tempos modernos e chegaram a governar um sexto do planeta. “Governar a Rússia era uma missão imperial sagrada quanto um cálice envenenado: seis czares foram assassinados e toda a dinastia viveu sob constante ameaça até a destruição em 1917”, conta Montefiori, um dos convidados da Feira Literária Internacional de Paraty (Flip), de 25 a 29 de deste mês.



IVAN, O TERRÍVEL, O CZAR COROADO

A dinastia Romanov tem origem no reinado de Ivan IV, conhecido como Ivan, o Terrível (1530-1584), que era da dinastia Riúrik e foi o primeiro governante coroado como czar, título adotado pelo seu avô, Ivan III, grão-príncipe de Moscou, que derrotou canados mongóis em 1480 e, após a queda de Bizâncio para os otomanos islâmicos, reivindicou o manto de líder da ortodoxia ao se casar com a sobrinha do último imperador bizantino. A união permitiu que ele se apresentasse como herdeiro dos imperadores romanos. Daí o título de césar, que ganhou a forma russa czar.

Ivan, o Terrível, fez seu reino prosperar ao marchar para o Sul da Ásia numa cruzada cristã ortodoxa para derrotar tártaros islâmicos, descendentes de Genghis Khan. Triunfante, acabou enfrentando rebeliões e traições internas devido ao seu comportamento ensandecido. Teve oito esposas, três que teriam sido envenenadas e outras assassinadas por sua ordem, e vários filhos. Acredita-se que tenha matado Dmitri, seu preferido, com uma pancada na cabeça com seu bastão de ferro durante um acesso de fúria.

Quando Anastassia Romanov, a esposa preferida de Ivan, morreu aos 29 anos, talvez por envenenamento, ele criou um temível regimento de seguidores ambiciosos, os opritchniki, que montavam cavalos negros ornamentados com vassouras e cabeças de cães para simbolizar seu caráter incorruptível e lealdade feroz, e estabeleceu um reino de terror.

Entre espasmos de massacres e fornicações, ninguém estava a salvo. Enlouquecido, ele expurgou ministros, decepou narizes e genitais, empalou e pendurou gente por ganchos cravados nas costelas, matou mulheres, crianças e populações inteiras. O czar Fiódor, filho de Ivan, morreu em 1598 sem deixar herdeiros, e depois de longo período de guerra civil, Mikhail, sobrinho-neto de Anastassia, se tornou o primeiro czar com sangue Romanov, para um reinado de turbulências e defecções, aplacado em parte na corte de seu filho Alexei, que se tornou um religioso czar  e proibiu orgias na corte. Ele foi pai de Pedro, o Grande.



A IMPERATRIZ QUE ARREMESSAVA ANÕES


Em 20 de abril de 1730, a corpulenta Anna Romanov, neta de Pedro, o Grande, assumiu o trono da Rússia com uma coroa com mais de 2,5 mil pedras preciosas e 28 diamantes, conta Simon Montefiore. Seu reinado foi marcado pela guerra frequente aos otomanos. Mas ela não tinha apego à política e delegava poderes a seus auxiliares favoritos, que, na prática, governavam a Rússia. Era solteira e sem filhos e gastava dinheiro com roupas, carruagens e todo tipo de ostentação. Não tinha limites para jogos cruéis. Ela compensava a sua abstinência alcoólica comandando um circo de “aberrações”, com corcundas anões e pessoas com outros tipos de deficiências.

Era colecionadora de anões e a principal diversão de sua corte era arremessá-los. Para demonstrar sua “bondade”, ela permitia que um anão que sobrevivesse aos jogos de sua corte recebesse tratamento médico.
Seu favorito era Pedrillo, violinista napolitano. “Um dia, perguntado por um auxiliar de Anna se sua mulher grávida era tão feia quanto um bode, o anão convidou a imperatriz e a corte a irem à sua casa, onde o encontraram na cama com uma cabra lactante de camisola”, conta Montefiore. Perversa, Anna reduziu os aristocratas ao status de bobos e obrigou príncipes e condes a integrar sua corte de bobos. Um deles, Golítsin, sempre se fantasiava de galinha e se sentava num cesto de palha durante horas cacarejando diante da corte. O circo de “aberrações” foi a marca do seu reinado de 10 anos, até sua morte por infecção na bexiga, aos 46 anos.



CATARINA, A GRANDE, DÉSPOTA ESCLARECIDA

Montefiori diz que os Romanov produziram dois gênios políticos, os Grandes Pedro e Catarina. Com um golpe político estupendo que levou à morte o marido, Pedro III, Catarina (1729-1796) se tornou a czarina Catarina II aos 33 anos, e reinou por 34 anos. Curvilínea, encantadora com seus olhos azuis, conquistou Ucrânia. Polônia e Crimeia. Pedro, o Grande, expandiu o império para o norte. Catarina, para o sul, ao fundar a estratégica Sebastopol, no coração da Crimeia, e instalar uma portentosa frota no Mar Negro para intimidar os otomanos.

Mas ela precisava sempre ter amantes. E teve dois principais que levaram a Rússia ao status de potência. Grigóri Potemkin, que mais tarde daria o nome ao famoso encouraçado, símbolo da revolta dos marinheiros em 1905, foi o mais importante. Coube a ele o êxito do reinado de Catarina. Além das referências no livro Os Romanov, Montefiori escreveu Catarina, a Grande, & Potemkin – Uma história de amor na corte Romanov, no qual também conta o esplendor do reinado.

Além das vitórias sobre grandes inimigos, ela foi chamada de “désposta esclarecida”, ao tentar incorporar os ideais iluministas da Revolução Francesa e por trocar correspondências com os chamados philosophes Voltaire, Diderot e D’Alembert, além da “anglomania” pela pintura, arquitetura e jardins ingleses, que levou para a Rússia. Chegou a instalar a republicana Comissão Legislativa, com 500 delegados eleitos entre nobres, camponeses e gente de São Petersburgo, para ajudá-la a governar, mas logo perdeu a paciência. Foi em seu reinado que a peste bubônica assolou principalmente Moscou, que chegou a matar 500 pessoas por dia. Quando morreu de derrame, a Rússia era uma potência respeitada na Europa e na Ásia.



O IMPERADOR QUE DERROTOU NAPOLEÃO


Alexandre I (1777-1825), neto de Catarina, a Grande, é um dos mais importante czares, mas subestimado pela história. Foi coroado em 1801, após a morte do pai, o czar Paulo, trucidado por súditos e nobres pelo seu despotismo intolerável em apenas cinco anos. Quando ele se tornou czar, Napoleão Bonaparte começava a impor seu vasto império. De início, trocaram amabilidades e chegaram a se encontrar em uma balsa em território prussiano em 1807 para fazer a partilha da Europa, em um dos encontros mais famosos da história. Meses depois, chegaram a se hospedar juntos 18 dias e promover banquetes, shows teatrais e caçadas. “Se ele fosse uma mulher, acho que eu o faria meu amante”, chegou a dizer Napoleão em carta à sua segunda mulher, Maria Luísa. Alexandre, por sua vez, ficou impressionado ao conhecer o gênio de sua época.

Mas o jogo duplo de Alexandre I com a França e com adversários de Napoleão (Inglaterra, Prússia e Áustria) irritou o imperador corso. Em 1812, com a Europa dominada, Napoleão invadiu a Rússia com um exército de 615 mil homens. A Rússia tinha 215 mil. Alexandre não era estrategista e sempre delegava poderes militares. E foi graças à ousadia do seu comandante-chefe, Mikhail Kutuzov, que o Império Russo se salvou.

Enquanto Alexandre I ficou na capital, Petersburgo, e antes que Napoleão chegasse, Kutuzov evacuou os 500 mil habitantes de Moscou, fazendo a população fugir desesperada levando apenas pertences, e mandou incendiar a cidade, que ardeu em chamas por seis dias. Quando Napoleão chegou, se surpreendeu com a destruição e ao ser saudado apenas por professores franceses, atrizes e bandos de saqueadores nas ruas da cidade. E cometeu o maior erro de sua vida. Ficou um mês no Kremlin esperando a rendição de Alexandre. “Prefiro deixar de existir a fazer acordo com um monstro que é o flagelo da humanidade”, afirmou o czar, já decepcionado com as atrocidades cometidas pelos franceses.

O corso não percebeu que o rigoroso inverno se aproximava. Quando se deu conta e partiu, foi fustigado pelo frio rigoroso e por dois exércitos russos que o perseguiram. Perdeu número incalculável de homens. Mesmo assim, conseguiu fugir para Paris. Alexandre, desmoralizado no império pelo incêndio de Moscou, que não havia autorizado, marchou para a França com o apoio de exércitos ingleses, austríacos e prussianos, ocupou Paris, obrigou Napoleão a abdicar e foi então reverenciado em sua terra natal, até sua morte repentina aos 47 anos, em 1825.



NICOLAU II, DEVORADO POR REVOLUÇÕES

O derradeiro czar foi Nicolau II (1868-1918). Além da obra de Montefiori, seu reinado é detalhado no livro O último czar – Nicolau II, a Revolução Russa e o fim da dinastia Romanov, de Robert Service. Nicolau se tornou czar em 1894, mas não estava preparado para comandar o império. Homem tímido e religioso, acreditou até o fim que seu reinado também era desígnio de Deus e cometeu os mesmos erros de seus antecessores (Nicolau I, Alexandre II e Alexandre III). Condenava Pedro, o Grande por acreditar que havia rompido as tradições da Rússia, e ignorou solenemente as convulsões políticas e sociais que assolavam o império desde o início do século, quando os ventos da Revolução Francesa varreram o mundo.

Desde Alexandre I, que ironicamente combateu um déspota para libertar a França e a Europa e continuou agindo como um, pipocaram revoltas no império russo. A servidão sem fim, que massacrava a população miserável, principalmente milhões de camponeses, e a falta de percepção diante das profundas mudanças – como o liberalismo e o socialismo –, e das potências já industrializadas da Europa, tornaram um caos o reinado de Nicolau.

Distante da realidade do seu império, o czar era dominado pela mulher, Alexandra, neta da rainha Vitória, e foi envolvido ainda por uma figura ímpar que acreditou ser um enviado divino, mas acabou precipitando sua derrocada: o místico camponês siberiano Grigóri Rasputin (1869-1916), barbudo e de olhos penetrantes. Até ser assassinado por um príncipe que queria “salvar” a monarquia, Rasputin dominou totalmente a vida dos últimos Romanov. O poder de Rasputin sobre Nicolau tinha relação direta com o último herdeiro, Alexei, o caçula, que era hemofílico e “tinha melhoras” seguidas quando era “atendido” pelo misterioso místico. Recatado, Nicolau tolerou até mesmo as fornicações de Rasputin com mulheres da corte por acreditar que era um enviado de Deus à corte.

O último czar deixou que os seus inimigos crescessem em suas barbas, mesmo reprimindo com violência todas as revoltas, inclusive o motim de marinheiros de 1905. Mas, em fevereiro de 1917, não resistiu mais. Após mergulhar a Rússia na Primeira Guerra Mundial  com armamentos defasados em relação às potências europeias, sua corte ruiu. Bolcheviques, mencheviques e outros revolucionários, além do campesinato e parte da nobreza e da corte, puseram fim à dinastia Romanov. 

No próximo dia 17, fará um século que Nicolau, Alexandra, o caçula Alexei e as  princesas Olga, Maria, Anastássia e Tatiana, após 16 meses de confinamento na Sibéria (ironicamente para onde ele havia mandado líderes revolucionários como Lênin e Trótski), foram trucidados por bolcheviques a tiros e golpes de baioneta, para que nenhum Romanov sobrevivente comprometesse a ascensão do comunismo na Rússia que culminou nas décadas de chumbo de um novo tipo de czar no século 20: Josef Stálin.


TRECHO DE OS ROMANOV


Enquanto os Romanov ceavam às oito da noite, o comandante disse a seus guardas mais graduados: “Hoje às noite teremos que atirar em todos eles”. Em seu escritório, reuniram o arsenal de catorze armas – seis pistolas e oito revólveres, inclusive duas Mauser. Eram onze vítimas, e Iuróvski convocou seu esquadrão da morte, mas “no último minuto dois dos letões recuaram”, negando-se a matar as meninas. “Não merecem isso” Ele ficou com dez ou talvez oito matadores – ekle mesmo, seu vice Nikúlin, Iermakov que chegou bêbado, mas dois guardas e uns quatro ou cinco outros, inclusive um de dezessete anos. (…) A ordem era “atirar direto no coração para evitar excesso de sangue e acabar depressa”.

(passagem em que o esquadrão se prepara para assassinar Nicolau II e sua família, extinguindo a dinastia, em 1918)

LEIA NA PRÓXIMA EDIÇÃO DO PENSAR: 
Como a assombrosa conquista da Sibéria transformou o principado europeu de Moscou no gigantesco e temido Império Russo.

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