O circo de anões, gigantes, “berrações” obesas, garotas de má fama, comediantes estrangeiros, mongóis nômades, negros núbios, bobos e integrantes do alto escalão da corte começa a farra, que costuma ir do meio-dia até a manhã seguinte. O gigante francês Nikolai e as gigantas finlandesas, como sempre, estão vestidos como bebês, enquanto os anões maquiados como velhos saem totalmente nus de dentro de bolos. É o desfile do sínodo de tolos e bêbados do czar, uma alcoolizada sociedade de comensais, parte do governo da Rússia, porque inclui ainda, obrigatoriamente, generais, almirantes e secretários da corte. O czar nomeia seu velho tutor Zotov ora como o príncipe-papa ora como o patriarca Baco (para ironizar católicos e ortodoxos). Usando um chapéu de lata alto, um casaco feito de cartas de baralho e montado num barril de cerveja, o príncipe-papa preside um conclave de 12 cardeais embriagados. Ele começa o banquete abençoando os convidados togados e ajoelhados. Depois, comanda o sínodo com uma carruagem puxada por bodes, porcos e ursos e seus cardeais cavalgam jumentos e bois. Todos os membros do sínodo ostentam títulos obscenos relacionados ao pênis e vestimentas com linguiças fálicas sobre almofadas.
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PEDRO, O GRANDE, PAI A RÚSSIA MODERNA
Parece invenção, mas essa farra toda era rotina na corte de Pedro I, ou Pedro, o Grande (1672-1725), um dos homens mais poderosos, cruéis e notáveis do seu tempo.
É considerado o pai da Rússia moderna por ter ocidentalizado o império e construído a mais europeia das cidades russas, São Petersburgo (que ainda seria chamada de Petrogrado e Leningrado, e voltaria ao seu nome original depois de ser capital da Rússia por dois séculos). A cidade foi erguida ao longo do Rio Neva, no Mar Báltico, e fundada em 1703. Planejada por arquitetos e artistas europeus, teve como mão de obra basicamente o trabalho escravo de milhares de soldados suecos que os exércitos de Pedro derrotaram na chamada Grande Batalha do Norte. A ocidentalização, entretanto, provocou a revolta do seu primogênito e herdeiro, Alexei, que acabou acusado de traição pelo pai e morreu em consequência de longos açoites. As farras eram paliativo para amenizar a tensão permanente na corte de Pedro.
A saga de Pedro, o Grande e as de outros 19 czares e czarinas estão detalhadas na obra Os Romanov – 1613-1918 (The Romanovs), do londrino Simon Sebag Montefiori, historiador, professor e doutor em filosofia pela Universidade de Cambridge, na Inglaterra. Alguns eram marcados pela genialidade, outros pela loucura, mas todos inspirados pela autocracia sagrada, que acreditavam ser desígnio de Deus, e pela ambição imperial, fruto do seu êxito e de sua derrocada. Do frágil Mikhail (1596-1645), o primeiro czar entronado em 1613, a Nicolau II, destituído pela Revolução de 1917, os Romanov reinaram por 304 anos. Montefiori sustenta que, ao contrário de quem aponta uma maldição sobre o destino dos Romanov, eles foram a mais bem-sucedida dinastia dos tempos modernos e chegaram a governar um sexto do planeta. “Governar a Rússia era uma missão imperial sagrada quanto um cálice envenenado: seis czares foram assassinados e toda a dinastia viveu sob constante ameaça até a destruição em 1917”, conta Montefiori, um dos convidados da Feira Literária Internacional de Paraty (Flip), de 25 a 29 de deste mês.
IVAN, O TERRÍVEL, O CZAR COROADO
A dinastia Romanov tem origem no reinado de Ivan IV, conhecido como Ivan, o Terrível (1530-1584), que era da dinastia Riúrik e foi o primeiro governante coroado como czar, título adotado pelo seu avô, Ivan III, grão-príncipe de Moscou, que derrotou canados mongóis em 1480 e, após a queda de Bizâncio para os otomanos islâmicos, reivindicou o manto de líder da ortodoxia ao se casar com a sobrinha do último imperador bizantino. A união permitiu que ele se apresentasse como herdeiro dos imperadores romanos. Daí o título de césar, que ganhou a forma russa czar.
Ivan, o Terrível, fez seu reino prosperar ao marchar para o Sul da Ásia numa cruzada cristã ortodoxa para derrotar tártaros islâmicos, descendentes de Genghis Khan. Triunfante, acabou enfrentando rebeliões e traições internas devido ao seu comportamento ensandecido. Teve oito esposas, três que teriam sido envenenadas e outras assassinadas por sua ordem, e vários filhos. Acredita-se que tenha matado Dmitri, seu preferido, com uma pancada na cabeça com seu bastão de ferro durante um acesso de fúria.
Quando Anastassia Romanov, a esposa preferida de Ivan, morreu aos 29 anos, talvez por envenenamento, ele criou um temível regimento de seguidores ambiciosos, os opritchniki, que montavam cavalos negros ornamentados com vassouras e cabeças de cães para simbolizar seu caráter incorruptível e lealdade feroz, e estabeleceu um reino de terror.
A IMPERATRIZ QUE ARREMESSAVA ANÕES
Em 20 de abril de 1730, a corpulenta Anna Romanov, neta de Pedro, o Grande, assumiu o trono da Rússia com uma coroa com mais de 2,5 mil pedras preciosas e 28 diamantes, conta Simon Montefiore. Seu reinado foi marcado pela guerra frequente aos otomanos. Mas ela não tinha apego à política e delegava poderes a seus auxiliares favoritos, que, na prática, governavam a Rússia. Era solteira e sem filhos e gastava dinheiro com roupas, carruagens e todo tipo de ostentação. Não tinha limites para jogos cruéis. Ela compensava a sua abstinência alcoólica comandando um circo de “aberrações”, com corcundas anões e pessoas com outros tipos de deficiências.
Era colecionadora de anões e a principal diversão de sua corte era arremessá-los. Para demonstrar sua “bondade”, ela permitia que um anão que sobrevivesse aos jogos de sua corte recebesse tratamento médico.
CATARINA, A GRANDE, DÉSPOTA ESCLARECIDA
Montefiori diz que os Romanov produziram dois gênios políticos, os Grandes Pedro e Catarina. Com um golpe político estupendo que levou à morte o marido, Pedro III, Catarina (1729-1796) se tornou a czarina Catarina II aos 33 anos, e reinou por 34 anos. Curvilínea, encantadora com seus olhos azuis, conquistou Ucrânia. Polônia e Crimeia. Pedro, o Grande, expandiu o império para o norte. Catarina, para o sul, ao fundar a estratégica Sebastopol, no coração da Crimeia, e instalar uma portentosa frota no Mar Negro para intimidar os otomanos.
Mas ela precisava sempre ter amantes. E teve dois principais que levaram a Rússia ao status de potência. Grigóri Potemkin, que mais tarde daria o nome ao famoso encouraçado, símbolo da revolta dos marinheiros em 1905, foi o mais importante. Coube a ele o êxito do reinado de Catarina. Além das referências no livro Os Romanov, Montefiori escreveu Catarina, a Grande, & Potemkin – Uma história de amor na corte Romanov, no qual também conta o esplendor do reinado.
Além das vitórias sobre grandes inimigos, ela foi chamada de “désposta esclarecida”, ao tentar incorporar os ideais iluministas da Revolução Francesa e por trocar correspondências com os chamados philosophes Voltaire, Diderot e D’Alembert, além da “anglomania” pela pintura, arquitetura e jardins ingleses, que levou para a Rússia. Chegou a instalar a republicana Comissão Legislativa, com 500 delegados eleitos entre nobres, camponeses e gente de São Petersburgo, para ajudá-la a governar, mas logo perdeu a paciência. Foi em seu reinado que a peste bubônica assolou principalmente Moscou, que chegou a matar 500 pessoas por dia. Quando morreu de derrame, a Rússia era uma potência respeitada na Europa e na Ásia.
O IMPERADOR QUE DERROTOU NAPOLEÃO
Alexandre I (1777-1825), neto de Catarina, a Grande, é um dos mais importante czares, mas subestimado pela história. Foi coroado em 1801, após a morte do pai, o czar Paulo, trucidado por súditos e nobres pelo seu despotismo intolerável em apenas cinco anos. Quando ele se tornou czar, Napoleão Bonaparte começava a impor seu vasto império. De início, trocaram amabilidades e chegaram a se encontrar em uma balsa em território prussiano em 1807 para fazer a partilha da Europa, em um dos encontros mais famosos da história. Meses depois, chegaram a se hospedar juntos 18 dias e promover banquetes, shows teatrais e caçadas. “Se ele fosse uma mulher, acho que eu o faria meu amante”, chegou a dizer Napoleão em carta à sua segunda mulher, Maria Luísa. Alexandre, por sua vez, ficou impressionado ao conhecer o gênio de sua época.
Mas o jogo duplo de Alexandre I com a França e com adversários de Napoleão (Inglaterra, Prússia e Áustria) irritou o imperador corso. Em 1812, com a Europa dominada, Napoleão invadiu a Rússia com um exército de 615 mil homens. A Rússia tinha 215 mil. Alexandre não era estrategista e sempre delegava poderes militares. E foi graças à ousadia do seu comandante-chefe, Mikhail Kutuzov, que o Império Russo se salvou.
Enquanto Alexandre I ficou na capital, Petersburgo, e antes que Napoleão chegasse, Kutuzov evacuou os 500 mil habitantes de Moscou, fazendo a população fugir desesperada levando apenas pertences, e mandou incendiar a cidade, que ardeu em chamas por seis dias. Quando Napoleão chegou, se surpreendeu com a destruição e ao ser saudado apenas por professores franceses, atrizes e bandos de saqueadores nas ruas da cidade. E cometeu o maior erro de sua vida. Ficou um mês no Kremlin esperando a rendição de Alexandre. “Prefiro deixar de existir a fazer acordo com um monstro que é o flagelo da humanidade”, afirmou o czar, já decepcionado com as atrocidades cometidas pelos franceses.
O corso não percebeu que o rigoroso inverno se aproximava. Quando se deu conta e partiu, foi fustigado pelo frio rigoroso e por dois exércitos russos que o perseguiram. Perdeu número incalculável de homens. Mesmo assim, conseguiu fugir para Paris. Alexandre, desmoralizado no império pelo incêndio de Moscou, que não havia autorizado, marchou para a França com o apoio de exércitos ingleses, austríacos e prussianos, ocupou Paris, obrigou Napoleão a abdicar e foi então reverenciado em sua terra natal, até sua morte repentina aos 47 anos, em 1825.
NICOLAU II, DEVORADO POR REVOLUÇÕES
O derradeiro czar foi Nicolau II (1868-1918). Além da obra de Montefiori, seu reinado é detalhado no livro O último czar – Nicolau II, a Revolução Russa e o fim da dinastia Romanov, de Robert Service. Nicolau se tornou czar em 1894, mas não estava preparado para comandar o império. Homem tímido e religioso, acreditou até o fim que seu reinado também era desígnio de Deus e cometeu os mesmos erros de seus antecessores (Nicolau I, Alexandre II e Alexandre III). Condenava Pedro, o Grande por acreditar que havia rompido as tradições da Rússia, e ignorou solenemente as convulsões políticas e sociais que assolavam o império desde o início do século, quando os ventos da Revolução Francesa varreram o mundo.
Desde Alexandre I, que ironicamente combateu um déspota para libertar a França e a Europa e continuou agindo como um, pipocaram revoltas no império russo. A servidão sem fim, que massacrava a população miserável, principalmente milhões de camponeses, e a falta de percepção diante das profundas mudanças – como o liberalismo e o socialismo –, e das potências já industrializadas da Europa, tornaram um caos o reinado de Nicolau.
Distante da realidade do seu império, o czar era dominado pela mulher, Alexandra, neta da rainha Vitória, e foi envolvido ainda por uma figura ímpar que acreditou ser um enviado divino, mas acabou precipitando sua derrocada: o místico camponês siberiano Grigóri Rasputin (1869-1916), barbudo e de olhos penetrantes. Até ser assassinado por um príncipe que queria “salvar” a monarquia, Rasputin dominou totalmente a vida dos últimos Romanov. O poder de Rasputin sobre Nicolau tinha relação direta com o último herdeiro, Alexei, o caçula, que era hemofílico e “tinha melhoras” seguidas quando era “atendido” pelo misterioso místico. Recatado, Nicolau tolerou até mesmo as fornicações de Rasputin com mulheres da corte por acreditar que era um enviado de Deus à corte.
O último czar deixou que os seus inimigos crescessem em suas barbas, mesmo reprimindo com violência todas as revoltas, inclusive o motim de marinheiros de 1905. Mas, em fevereiro de 1917, não resistiu mais. Após mergulhar a Rússia na Primeira Guerra Mundial com armamentos defasados em relação às potências europeias, sua corte ruiu. Bolcheviques, mencheviques e outros revolucionários, além do campesinato e parte da nobreza e da corte, puseram fim à dinastia Romanov.
No próximo dia 17, fará um século que Nicolau, Alexandra, o caçula Alexei e as princesas Olga, Maria, Anastássia e Tatiana, após 16 meses de confinamento na Sibéria (ironicamente para onde ele havia mandado líderes revolucionários como Lênin e Trótski), foram trucidados por bolcheviques a tiros e golpes de baioneta, para que nenhum Romanov sobrevivente comprometesse a ascensão do comunismo na Rússia que culminou nas décadas de chumbo de um novo tipo de czar no século 20: Josef Stálin.
TRECHO DE OS ROMANOV
Enquanto os Romanov ceavam às oito da noite, o comandante disse a seus guardas mais graduados: “Hoje às noite teremos que atirar em todos eles”. Em seu escritório, reuniram o arsenal de catorze armas – seis pistolas e oito revólveres, inclusive duas Mauser. Eram onze vítimas, e Iuróvski convocou seu esquadrão da morte, mas “no último minuto dois dos letões recuaram”, negando-se a matar as meninas. “Não merecem isso” Ele ficou com dez ou talvez oito matadores – ekle mesmo, seu vice Nikúlin, Iermakov que chegou bêbado, mas dois guardas e uns quatro ou cinco outros, inclusive um de dezessete anos. (…) A ordem era “atirar direto no coração para evitar excesso de sangue e acabar depressa”.
(passagem em que o esquadrão se prepara para assassinar Nicolau II e sua família, extinguindo a dinastia, em 1918)
LEIA NA PRÓXIMA EDIÇÃO DO PENSAR:
Como a assombrosa conquista da Sibéria transformou o principado europeu de Moscou no gigantesco e temido Império Russo..