Ana Paula Maia é uma das principais escritoras do país que estreou na virada dos anos 2000, com o livro O habitante das falhas subterrâneas (7 Letras), dando início a um tipo de literatura que sempre retratou homens rudes, realizando trabalhos que ninguém parece notar, mas que são imprescindíveis. A escritora, desde o início, voltou seu olhar para um microcosmo muito peculiar, através de personagens deslocados, em cenários longe dos centros urbanos, normalmente bastante utilizados na prosa contemporânea brasileira.
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Neste pequeno road movie, eles se deparam com figuras inescrupulosas, médicos mafiosos que querem comprar os corpos para fins diversos. Acompanhamos a saga dos dois para dar um fim digno aos mortos, como se a alma dos que já partiram precisasse desse final de ciclo para, enfim, descansar.
No trajeto de trabalho também existem algumas pedreiras de calcário que são explodidas três vezes ao dia, liberando gases tóxicos e contaminando o ar, prejudicando a saúde das poucas pessoas que moram lá. Não é por acaso que um padre excomungado esteja vivendo justamente neste local, pagando os próprios pecados, mas dando a extrema-unção aos que estão perto de partir e o sacramento dos mortos para os que já faleceram. Ali, eles estão próximos do céu e também do inferno. O aspecto religioso neste livro, inclusive, é presente de uma forma transviada, com alguns pastores andarilhos tentando conquistar as almas que restam naquele local, com promessas vazias de significado, dando banho de purificação nos que aceitam a renovação do ser.
Edgar, por exemplo, é um homem de fé, mas não da forma tradicional. Ele é religioso à sua maneira. Sobretudo naquele local ermo, que, para ele, parece ser o fim do mundo.
“Depois de caminhar por alguns metros, Edgar Wilson percebe ao longe a carcaça de um animal. Segue pela estrada de terra batida, que fica deserta a maior parte do tempo e é usada como atalho pelos motoristas que conhecem bem as imediações. Edgar fora atraído para esse trecho por causa de uma revoada de abutres. Assim como a podridão os atrai, os que se alimentam dela atraem Edgar. Tanto as aves carniceiras quanto ele se valem dos próprios sentidos para encontrar os mortos, e ambas as espécies sobrevivem desses restos não reclamados”.
O romance (ou novela) é bastante inquietante, com poucos personagens convivendo num ambiente afastado, em que não resta mais nada, somente eles próprios, convivendo no limite possível da sanidade. O protagonista está ainda mais sombrio e reflexivo nesta trama. Chegou até ali depois de ter passado por ambientes que reforçaram o seu caráter transviado.
A lupa da prosadora carioca é sempre focada um tom abaixo do mainstream literário atual, personificando figuras praticamente invisíveis, excluídas, que estão vagando no limbo, sendo levadas pelo destino. Como Edgar Wilson, um homem condenado pela vida, fazendo o serviço que apenas gente como ele é capaz de realizar.
Enterre seus mortos é ambientado nas rodovias desertas no interior do país, sem geografia precisa. O livro carrega na violência crua, no realismo que salta aos olhos, numa forma próxima dos romances policiais, tratando do fim da vida e da desolação em que se encontram as figuras incomuns presentes nesta história.
A prosa da autora se configura numa precisão estilística através dos gestos contidos dos personagens, nas falas pausadas e no silêncio. O enredo deste novo livro mais esconde do que revela, evocando imagens cruéis, na atmosfera quase fantasmagórica criada por Maia. Enterre seus mortos é feito com uma técnica que não deixa nada sobrar, nem faltar. Tudo é direto ao ponto.
Ana Paula Maia vai criando esses microcosmos que acabam se fundindo em um único e poderoso texto de ficção, que parece apenas retalhos costurados da espécie humana vivendo brutalizada nas sombras. Com Enterre seus mortos ela expande o seu rico universo de homens marginalizados, entregues à própria sorte.
*Ney Anderson é jornalista e editor do site de literatura Angústia Criadora (www.angustiacriadora.com)
TRECHOS
“Pensa nos animais mortos, tanto nos atropelados quanto nos sacrificados. Sangue por sangue. Toda cruz é feita de carne e sangue. Pendurado no espelho retrovisor há um rosário que carrega consigo há muitos anos, ora junto ao peito, ora diante dos olhos. Na ponta, uma pequena cruz, que ao mesmo tempo simboliza Deus e aflição; justamente tudo o que vê pelas estradas. Credo em cruz.”
“Costuma manter seus pensamentos em silêncio e longe dos outros. Não gosta de ser ouvido ou mesmo notado. Mantém-se num habitual estado de isolamento. Impenetrável.
ENTERRE SEUS MORTOS
De Ana Paula Maia
Companhia das Letras
136 páginas
R$ 34,90 (livro)
e R$ 23,90 (e-book)