Quem são Dora e Francisca, as protagonistas de seu novo romance? De onde elas vieram e o que as move?
Dora é uma mulher com quatro filhos, abandonada pelo marido. Numa grande estiagem ela decide procurar Juazeiro do Norte, onde o Padre Cícero acolhe, abençoa e orienta os que pedem sua ajuda. O padre está velho, vive seus últimos dias. Para conter os sertanejos miseráveis e famintos, o governo, os comerciantes e as famílias ricas criaram sete campos de concentração no Ceará, e ali aprisionam homens, mulheres e crianças. Dora aceita embarcar com os filhos pequenos para os seringais da Amazônia, fugindo a uma morte certa nos Currais do Governo. No porto de Mucuripe, em Fortaleza, o filho mais velho se evade num navio, que vai ao Recife. Francisca é uma socióloga, professora com mestrado, doutorado e pós, na França. Antes de morrer, o pai de Francisca pede à filha que ela resgate o seu passado, encontrando a avó Dora e os irmãos traídos.
Quais as principais diferenças entre Dora sem véu e seus romances anteriores?
Acho que o livro de contos Faca e o romance Galileia dialogam com Dora sem véu. Esses três são os livros em que mais me aprofundo nas descobertas de um sertão periférico, desencarnado, à margem da história e sobrevivendo na periferia das cidades grandes. Neles, não me envergonho de contar muitas histórias, escrever crônicas, ensaios e até ser didático, quando acho necessário.
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Quais os maiores desafios a serem vencidos ao escrever do ponto de vista de uma mulher?
Não pensava em escrever o romance na primeira voz feminina. Os esboços antigos tinham sido escritos na terceira pessoa. Mas já nas primeiras linhas Francisca se apoderou da fala e tornou-se a narradora. Precisei ouvi-la e compreendê-la. Senti covardia nesse lugar de mulher, confesso. Temi reações. Antes, já havia escrito como mulher e acho que me saí bem.
Como vê a consolidação de movimentos como #leiamulheres e o coletivo Mulherio das Letras, com a articulação de escritoras pela igualdade de gêneros na literatura?
Comemoro esses movimentos e desejo ler autoras que escrevam na primeira voz masculina.
Em determinada passagem, Francisca afirma que “não necessita de religiões, porque se preocupa com a ética e em fazer o bem”. Em outro momento, surge a afirmação: “O verdadeiro alimento é o sagrado”. Qual a importância e o sentido da fé no século 21?
É preciso esclarecer que essas afirmações são feitas por personagens diferentes. Acho que nos ressentimos do exílio do sagrado em nossas vidas. Mas a busca pela ética e o pelo bem representa um maior ganho para o homem, sobretudo quando pensamos no fanatismo de algumas seitas e religiões.
“No sertão ainda semeiam palavras. Poucas. De preferência em meio às pedras.” Como as palavras e as histórias ainda são preservadas no sertão?
Essa narrativa do personagem Bernardo, no romance, aconteceu comigo. As palavras e as histórias estão cada vez mais esfaceladas no sertão. Pensando melhor, o sertão nem existe. Quando o procuramos, damos de cara com as mesmas periferias de Rio e São Paulo. Há dez anos, quando lancei Galileia, proclamei essa transformação.
“O sertão mudou ligeiro demais e eu demoro a me acostumar.” Quais as mudanças que mais causam estranheza no sertão contemporâneo?
Na década de 1950, mais precisamente logo depois da Segunda Guerra, começa o abandono do campo. Antes, oitenta por cento das pessoas viviam da agricultura e da pecuária. Agora, pelos dados do IBGE, apenas 15%. Saiu-se de um mundo mítico e feudal, e ingressou-se na modernidade.
Quais os véus que ainda devem ser retirados da sociedade brasileira?
Precisamos nos desfazer das heranças do colonialismo e da escravidão. Continuamos um país violento, desigual, escravocrata, em que os mais ricos odeiam os mais pobres e não aceitam que tenham os mesmos direitos que eles. Às vezes, receio nunca chegarmos à civilização. Quem comanda o atraso e não deixa o país andar para a frente são os que detêm o poder e concentram as riquezas.
“As feridas só doem enquanto sangram, depois se transformam em páginas de livros, enredos de filmes e novelas.” Como transformar feridas, próprias ou dos outros, em literatura?
Vivi 40 anos dentro de hospitais públicos, trabalhando como médico. Cheguei a jornadas de mais de 60 horas por semana. Sempre que sentia as mãos atadas pela falta de recursos ou pela proximidade da morte, eu pegava uma cadeira, sentava junto dos meus pacientes e os escutava. Ouvi histórias de encher um livro como As Mil e uma noites, só que nada era mágico ou irreal. Tratava-se sempre de grandes dramas, sofrimentos e tragédias. Talvez a diferença de Dora sem véu para os meus outros romances seja a de que ele é o mais preenchido com relatos de pacientes. Um dos personagens principais do livro é inspirado num rapaz que acompanhei durante três meses, numa enfermaria de trauma. Uma pessoa admirável, de uma grandeza que me marcou para toda a vida. Num determinado trecho, ele toma a palavra e começa a narrar. Aí, as feridas se transformam em literatura.
“Sobreviver de medicina e dedicar-se à literatura significava um sonho para Afonso.” Você realizou esse sonho? Como a medicina irrigou a sua literatura?
Quando meu pai me acompanhou até a rodoviária e me pôs num ônibus para o Recife, onde eu faria o vestibular para medicina, ele me disse: “Estude e passe. Trabalhe e ajude seu pai a educar seus irmãos. Só garanto pagar seus estudos este ano”. Uma missão árdua, que cumpri estudando e trabalhando em medicina. Mais tarde fui ajudado por minha esposa, Avelina, com quem me casei muito cedo. Sofri achando que nunca sobraria tempo para o meu projeto de escritor. Engano. O exercício da medicina já era o meu laboratório de literatura. Como foi para Tchekhov, que sempre li e admirei. Hoje, deixar a medicina me parece um risco de perder a fonte alimentadora de histórias, a Sherazade de minha vida. Não me concebo um médico sem o escritor, nem um escritor sem o médico. Os dois se alimentam e justificam..