Corrupção é um tipo de patologia política que degrada a confiança que temos uns nos outros, desagrega o espaço público e inclui o furto de tudo que pode ser definido como o bem comum – e isso inclui roubo do dinheiro público. Não é um fenômeno recente, nem é uma exclusividade brasileira. Corrupção se manifesta em qualquer época histórica – não pode ser atribuída a um tempo histórico, um sistema econômico, uma forma de sociedade, ou a um regime político. No Brasil, a primeira e mais completa denúncia sobre o fenômeno da corrupção política aconteceu ainda no período colonial e assumiu a forma de um panfleto desabusado, anônimo, escrito em versos, e que circulava na capitania de Minas Gerais desde o final da década de 1780 – as Cartas chilenas.
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Os colonos mineiros repudiaram a autoridade da Coroa portuguesa, adotando a tese de que ela era leniente com a usurpação de poder da administração colonial – e, nesse caso, a estrutura administrativa do Império, em si mesma, tendia à corrupção. Identificar a marca da corrupção era fácil; muito mais difícil foi definir o que precisava ser feito para deter o seu rápido progresso e esse era o ímpeto político das Cartas chilenas.
Escritas provavelmente entre 1786 e 1789 e compostas em versos decassílabos brancos, as Cartas chilenas são de autoria atribuída a Tomás Antônio Gonzaga e, muito possivelmente, contaram com uma demão de Cláudio Manuel da Costa e Alvarenga Peixoto na fixação de alguns temas e no aprimoramento dos versos. O panfleto foi construído sob a forma de poemas, circulou clandestino pela capitania e parte do manuscrito se perdeu ou foi destruído por Gonzaga – as Cartas 6 e 7, por exemplo, estão incompletas, e da Carta 13 só sobraram 29 versos. O panfleto tinha também um alvo preciso: o exagero de abusos e fraudes cometidos pelo governador Luís da Cunha Menezes.
Cunha Menezes não foi evidentemente o único funcionário do rei disposto a encher os bolsos na colônia para desfrutar vida tranquila no regresso a Portugal. A Coroa simplesmente fechava os olhos às falcatruas cometidas por seus agentes desde que não atentassem contra as receitas régias e, de preferência, praticassem a gatunagem de maneira discreta, através de testas de ferro escolhidos, em geral, entre criados ou comerciantes locais. Mas até mesmo para os padrões permissivos da cultura política do Império português Cunha Menezes exagerou – ele fez por merecer as Cartas chilenas. Tão logo chegou a Vila Rica, entrou em rota de colisão com o ouvidor – no caso, Tomás Antônio Gonzaga em pessoa – e com o intendente, a propósito do lucrativo sistema de arrendamento das entradas na capitania, fonte dos impostos sobre toda mercadoria que entrava em Minas.
Cunha Menezes talvez não fosse menos corrupto do que outras autoridades de nomeação régia ou alguns membros da Câmara de Vila Rica, mas tinha pressa de enriquecer e quebrou uma regra fundamental da Coroa – agir com um mínimo de discrição. Ele atuava descaradamente: envolveu seus áulicos na tarefa de monopolizar a lucrativa rede de contrabando de diamantes do Distrito Diamantino, removeu a elite econômica e cultural das Minas dos postos lucrativos da administração, distribuiu patentes militares em troca de suborno e passou a recolher diretamente os proventos correspondentes aos custos e às remunerações legais que cabiam à magistratura.
Gonzaga deu o troco. As Cartas chilenas desenharam um retrato feroz dos desmandos do governador; e elas significaram, igualmente, um acerto de contas dos letrados e da elite local com as arbitrariedades e prevaricações de Cunha Menezes. O panfleto, porém, sacava de um fundo de denúncias mais sólido para dar voz às denúncias de corrupção e ao desmascaramento da hipocrisia da Coroa: expunha o argumento de que a lógica perversa que permitia a uma autoridade régia transgredir os limites da lei e do direito, a fim de satisfazer sua ganância, não podia ser compreendida fora dos parâmetros do Estado português. Cunha Menezes não era uma excrescência; a lógica que sustentava seu furor e seu arbítrio estava inscrita no próprio funcionamento do sistema de administração do Império. Era essa inscrição que facultava ao mais alto representante da Coroa nas Minas fazer uso da estrutura administrativa, militar e fiscal da capitania em proveito próprio e no de seus apaniguados.
Nas Cartas chilenas, o autor parece interrogar os moradores de Vila Rica, hoje Ouro Preto, para indicar ao seu destinatário o jogo, a máscara, a bufonaria, a burrice satisfeita, por trás, acima, além dela... É como se o poeta avisasse ao seu leitor: tudo o que é dizível é público, é distorcido, e é ambíguo; por trás do que é visto, está o que se cala e o que se esconde. Para cumprir o efeito de desmascarar, as Cartas chilenas são, afinal, o momento de zombaria de Gonzaga. Mais precisamente, elas são o momento em que o poeta tratou de explorar as conexões entre o riso e o desprezo, herdados da cultura retórica italiana renascentista, e de atingir com o ridículo tudo aquilo que, nas Minas, pretendia impor-se unicamente por meio da força e da autocracia.
O riso proposto pelo panfleto é, basicamente, uma expressão de sarcasmo e de escárnio diante de coisas ridículas.
Diante da suspeita de que a corrupção da autoridade da lei se estava tornando manifesta dentro do Império e assumindo sua própria voracidade nas Minas, por intermédio dos representantes da Coroa, o panfleto parte à procura de remédios. Mas não há remédio algum – não existe maneira de remediar a corrupção. É preciso destruí-la para que tenha lugar uma nova e verdadeira ordem política. Gonzaga talvez não tenha se dado inteiramente conta do que havia dito e do poder transformador de suas palavras, mas, nas Cartas chilenas, a corrupção era um jeito de governar o Brasil.
Heloísa M. Starling é historiadora e cientista política, professora titular da UFMG, integra o grupo de pesquisa Projeto República/UFMG, é autora de Os senhores das Gerais (Vozes, 1986), Lembranças do Brasil (Revan, 1999), Brasil: uma biografia, com Lilia Moritz Schwarcz, entre outros. O texto publicado pelo Pensar é um desdobramento do seu mais recentre trabalho.
SER REPUBLICANO NO BRASIL COLÔNIA – A HISTÓRIA DE UMA TRADIÇÃO ESQUECIDA
>> De Heloisa M. Starling
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