Já na apresentação de O município de Tormenta: baseado em fatos reais (primeiro romance de Sérgio Fantini), Fernando Bonassi alerta que “por trás do bangue-bangue distópico de Sérgio Fantini está o retrato da tragédia brasileira, não uma fotografia de face e de perfil (...), mas algo lá de dentro, daquilo que formou e deformou nossos melhores sonhos e esperanças”. E segundo o próprio Fantini nos informa em nota anexada ao “documento”, esse retrato foi literalmente extraído a fórceps da realidade, uma vez que “todas as cenas de violência aqui editadas, foram publicadas originalmente em jornais de grande circulação em Belo Horizonte, em 2015 e 2016”. Mas nada é tão simples quanto parece.
Leia Mais
Exposição em BH destaca obras de artistas nordestinos e mineirosEspetáculo discute a relação entre filhos e pais na terceira idadeFestival reúne craques do piano em Belo Horizonte'O sertão como personagem é uma busca nos entender como pessoa e como nação', diz George Moura'Precisei ouvi-la e compreendê-la', diz Ronaldo Brito sobre protagonista de 'Dora sem véu'Protagonismo feminino é tema de livro de Ronaldo Brito e série de George MouraLivro e série investem em protagonismo feminino em ambiente dominado pelos homensQue destino é esse? O de seduzir leitores através da verossimilhança, até fazê-los notar que o município de Tormenta não é um lugar tão desconhecido assim, já que há algo nesse local (repleto de vigilantes, maconheiros, personagens com nomes esdrúxulos e evangélicos peritos em “conversão express”) que nos é bem familiar, sobretudo a violência, a substituição da fraternidade e da civilidade pelo suborno, ou a mania que alguns “tormentenses” têm de imitar a fala dos astros da televisão.
Jornalismo e literatura são, entre outras coisas, dois jeitos distintos de contar histórias, dois lados de uma mesma moeda que, no romance de Fantini, se entrecruzam até formar um corpo textual híbrido entre a crônica e a farsa, demonstrando que a objetividade e a imparcialidade são um mito, porque a verdade é um mito. Tudo é uma questão de versão dos fatos.
O narrador de Tormenta tem a dele; seu coloquialismo burilado, suas pistas falsas e suas explicações elegantes ultrapassam qualquer simplificação de linguagem e de estilo e sugerem, o tempo inteiro, uma participação cada vez maior do leitor. É quando este (atento) atinará para a matiz falsamente solene do romance, notando que o que Fantini quer inversamente construir é, além da denúncia, uma empatia total por suas personagens.
Aliás, os personagens e o cenário de Tormenta são caros a Fantini, que em mais de 40 anos de estrada nunca deixou de retratar toda a grandeza e a baixeza da vida cotidiana, com um interesse e um olhar cuidadoso que é tanto uma defesa dessa realidade quanto uma clara tomada de posição política. E aqui, chegamos à maneira como seu primeiro romance foi publicado.
Admirado por autores consagrados, Fantini decidiu, desde o início, abrir mão do circuito das grandes editoras e dos modismos, optando por publicar seus contos e poemas com editoras menores, para manter controle absoluto sobre aquilo que quer dizer, reafirmando uma ética pessoal e o papel do escritor em uma sociedade cada vez mais excludente.
A edição de O município de Tormenta é o gesto mais radical desse posicionamento. As 81 páginas do romance vêm soltas, atadas por um barbante, e dentro de uma pasta lacrada onde se lê “confidencial”.
Tadeu Sarmento é escritor, poeta, autor de E se Deus for um de nós (Confraria do Vento, 2016), entre outros..