Confira entrevista com Aldyr Garcia Schlee, criador da camisa canarinho

Jornalista, escritor e desenhista gaúcho tinha 18 anos quando venceu o concurso para o uniforme da Seleção Brasileira

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Aldyr Garcia Schlee, Chilê, pronúncia aportuguesada, nasceu em 22 de novembro de 1934, em Jaguarão (RS), pequena cidade no extremo Sul do Brasil, na fronteira com Rio Branco (no Uruguai). É jornalista, tradutor, livre-docente, aposentado pela Universidade Federal de Pelotas (RS), onde lecionou direito, além de ser desenhista e escritor, com vários livros publicados. Encontrei-me com Schlee em sua casa, em Pelotas, em maio de 2017, às 10h de uma segunda-feira fria. O que seria uma entrevista passou a se configurar como uma conversa, uma prosa que, a seu convite, estendeu-se até o Mercado Central de Pelotas para o almoço, onde pude perceber ainda mais o quanto o Aldyr é uma pessoa elegante, simples e de uma erudição admirável, atributos que igualmente se aplicam à sua literatura. Neste extrato da conversa, o enfoque é a criação do desenho do uniforme da Seleção Brasileira de futebol.


Gostaria de falar sobre o seu desenho do uniforme da Seleção Brasileira de futebol, criado em 1953 para o concurso que elegeria os novos trajes para disputa da Copa do Mundo de 1954, na Suíça. Assisti ao seu filho dando um depoimento no curta-metragem Gaúchos carinhos (2007), e ele falava: “Meu pai nunca deu importância para isso”. É isso mesmo?
É isso sim, pois só agora estou dando mais importância à camisa que criei. O segundo colocado do concurso era desenhista da Casa da Moeda e tinha criado o cartaz da Copa de 1950, ultraprofissional, o que me enche de razão: “poxa, ganhei desse cara, né? (risos), me tira qualquer dúvida. O meu trabalho era profissional, apesar de guri, de ser um cara de 18 anos.

Como foi você, em 1953, novinho, morando no Sul, vencer o concurso no meio de tantos desenhos?

Uma coisa curiosa que há sobre a camiseta é que, infelizmente, não tem a relação de todos que concorreram. Soube que, desde o início, foram 301 candidatos, 100 deles não corresponderam às exigências do regulamento. Ficaram, então, 201, que certamente cumpriram com os requisitos, o que também acho que incluiu muito amador. Fiz um trabalho muito cuidadoso e me orgulho desse desenho, um desenho feito sobre uma plataforma de cartão 30cm x 40cm, colorido, e bem colorido, porque utilizei a figura de um jogador em ação, o Índio, do São Cristóvão, que saiu em preto e branco numa fotografia publicada na contracapa do Esporte Ilustrado no primeiro semestre de 1953.

Como era o concurso?

Primeiro, não ia participar porque achei que era muito exagero quatro cores. A ideia que me ocorreu ao ler o regulamento, logo, foi a de que quatro cores tinham que estar na camiseta. Não havia nenhuma camiseta no mundo com quatro cores, nem o futebol africano com camisetas incríveis. As camisas eram muito bem comportadas a partir do modelo original inglês. Não havia nada que pudesse admitir quatro cores numa camiseta de futebol, não existia. Fui ao Rio para fazer reportagens – eu era redator – e, num sábado de tarde, fomos ver um jogo, não me lembro de quem, com a Portuguesa carioca, no Maracanã. Quando entra em campo a Portuguesa carioca, ela estava de camisa verde e, atenção, calção vermelho (risos). Como calção vermelho? Só havia calção preto, que ficava logo cinza, calção de zuarte que durava, e branco. Aí, eu me dei conta: é só usar uma cor no calção e fazer uma combinação boa de verde e amarelo. Primeiro, fiz cento e tantos bonecos com as mais absurdas relações entre as cores. Então, eu me senti à vontade pra trabalhar o verde e o amarelo como cores fundamentais e botar no calção e na meia as cores complementares. Eu me dei conta de que, ao contrário da bandeira nacional, que é verde, e o amarelo é só o losango, era possível criar uma camiseta representativa do Brasil: amarela com detalhes apenas em verde, porque o amarelo com azul ficava muito bonito. Nesse momento, eu me senti habilitado pra fazer o desenho. Copiei a figura do Índio, marquei as sombras e todos os detalhes da musculatura da perna, do braço, da cara do jogador. Só botei um bigodinho depois pra descaracterizar o jogador, era a época do bigodinho, mudei um pouco o cabelo dele e pronto. Daí eu colori o jogador fiz todo o fundo do Maracanã em sépia. O resultado foi um desenho muito bonito, muito bonito. Tive um grande prazer em fazê-lo. Sinto muito orgulho, até, se é possível a gente alimentar orgulhos, por ter ganho o concurso. E o resultado foi aceito com muita alegria também pelos organizadores, houve unanimidade.

E a premiação na época foi o quê?

Quarenta mil. Hoje, podemos pensar que seria o equivalente a um carro pequeno. Foi um bom dinheiro, que entreguei para o meu pai, todo, sem nada; e um estágio no Correio da Manhã, na área de ilustração. Então, fui pro Rio e comecei a desfrutar do prêmio do Correio da Manhã.

Com 19 anos você já se sentia um profissional reconhecido...
Foi um achado eu ficar num hotel perto do trabalho. Isso pra mim foi muito importante. E, imediatamente, passei à concentração da Seleção Brasileira para o jogo com o Chile, que o Brasil ganharia por 1 a 0. Depois, houve denúncias de que havia muita safadeza no ambiente da Seleção. E havia mesmo, sou testemunha disso. Isso fez me decepcionar muito com a estrutura toda que mantinha o futebol profissional no Brasil. Depois, não quis ir à Suíça pra acompanhar a Seleção. Eu me sentia até com medo de alguns jogadores ou dos jogadores em geral. Eu era de formação metodista, imagina, um puritano. O resultado foi que me choquei muito com aquilo.

Safadeza era exatamente o quê?

Agora eu conto. Na concentração do Flamengo, os jogadores passavam a noite no quarto do Didi jogando carta. A fumaceira – nunca fumei – era insuportável. A fumaça saía por baixo das portas, no corredor mal iluminado, e um dos massagistas, Mário Américo, cuidava para que o supervisor, Paulo Amaral, que depois seria técnico, não aparecesse. Mas acho que o Paulo Amaral sabia de tudo e o técnico, Zezé Moreira, com certeza fazia que não sabia. Já em São Januário, os apartamentos eram para três, quatro pessoas. Fiquei com dois jogadores gaúchos, porque eu sou gaúcho. Depois, fomos para a mansão de um deputado, na Gávea. Os funcionários, os garçons e copeiros da mansão onde estávamos hospedados, ofereceram, como já tinham feito os funcionários de São Januário, mulheres pra atender às necessidades fisiológicas dos jogadores (risos). Resultado: às 14h, era hora da sesta e os santinhos iam sestear. Só que eles pediam para um cara como eu que aceitasse botar três mulheres ou saísse pra facilitar as coisas pra eles (risos). Nessas circunstâncias, havia constrangimento para mim e, ao mesmo tempo, um desgosto muito grande por ver como era a coisa. Não era apenas pelo comportamento, digamos, mau comportamento dos jogadores, era exigir muita coisa, era ter muito preconceito também, era como aquilo funcionava, à base da hipocrisia, do ocultismo. Então, o que aconteceu? Passei a ter uma visão por dentro da organização do nosso futebol, que já era péssima, e passei a tentar esquecer o significado que se pretendia dar à camiseta, até porque, lá em 1954, não funcionou. É engraçado: a famosa camisa não serviu pra nada em 1954... fomos um fiasco na Suíça. Com isso, nunca dei muita atenção à camisa.

Mas a camisa se tornou um símbolo...
Um jornalista escocês, Alex Bellos, que escreveu o livro Futebol: the Brazilian way of life (2002), tem um capítulo inteiro dedicado a essa questão do futebol brasileiro e da representação do futebol brasileiro por meio de um ícone indiscutível, nacional e internacional, hoje, que é a camisa. Ele me convenceu disso. “Você fez um símbolo brasileiro mais usado que a bandeira, está aí em tudo que é lugar. A camisa que você criou é um símbolo nacional.”

Você já foi reconhecido por isso?

Uma vez, há muito tempo, era professor de direito internacional e fui ao Rio de Janeiro para uma conferência das Nações Unidas. Era ditadura, um momento da maior perseguição. Quando terminou, o Armando Nogueira, diretor de esportes do Correio da Manhã, mandou que me perguntassem se não era oportuno mudar a cor da camiseta. Respondi: “É mais do que oportuno, tem que ser uma camiseta que corresponda à cor da situação que estamos vivendo”. “Qual cor?” “Marrom”. Não saiu no jornal (risos), mas o Armando Nogueira escreveu um artigo sobre isso. Claro que ele entendeu que marrom era aquele.

E como vê atualmente essa apropriação política da camiseta da Seleção?

A camiseta hoje representa a corrupção neste país, representa o golpismo neste país. O distintivo que ela leva, que felizmente não fui eu que criei, identifica um órgão que responde pelo futebol no Brasil e é o mais corrupto. A camiseta em si se tornou símbolo do golpismo neste país. Foi ostentando a camiseta que multidões foram às ruas apelando pela queda da presidente Dilma Rousseff, levando ao desastre do ponto de vista político, com a substituição da presidente, legitimamente eleita, por um grupo de ladrões que estão no poder. Aquilo foi resultado do golpe congressual, o golpe que se deu dentro do Congresso para esse grupo de gatunos, ladrões se manter no poder, graças ao jogo político que eles fazem, cedendo cargos, comprando cargos. Apesar de toda a onda de moralismo barato da pior espécie que se desenvolveu no Brasil, essas camisetas verde e amarelas não estão reaparecendo para a derrubada do bando de ladrões que aí está. Esse moralismo serviu pra sustentar, alimentar e definir o golpe, em nome de uma camiseta que eu detesto. Nesse sentido, não tenho nada a ver com ela, não quero ter nada a ver com ela, e acho que ela foi empregada de maneira safada.

Mas as apropriações dos símbolos mudam...
Sim, porque a camiseta agora, como símbolo nacional, parece que é inabalável. Isso é uma coisa curiosa. Está mais fácil mudar o governo, mudar até o regime do que mudar a camiseta, é uma coisa impressionante.


Giulia Piazzi é editora e mestra em estudos de linguagens pelo Cefet.

Gustavo Cerqueira Guimarães é doutor em teoria da literatura e literatura comparada pela UFMG e coeditor da revista FuLiA/UFMG.

 


A revista FuLiA/UFMG está disponível em https://bit.ly/FuLiA-UFMG-futebol-e-politica